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ELOGIO HISTORICO DO CONDE DE FICALHO
ОглавлениеTOMO XI – PARTE I
SENHORA E EXCELSA RAINHA
ALTEZA REAL
ILLUSTRES CONFRADES
MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES:
A Academia em sessão solemne, e como que na presença de seu Regio Presidente e Protector, – pois que impedido de comparecer, por motivo felizmente destituido de gravidade, se acha para todos gratamente representado por Vossa Magestade e por Vossa Alteza Real – a Academia entende prestar hoje a homenagem em divida a um dos seus mais distinctos e assignalados membros – o fallecido socio Francisco de Mello, 4.º Conde de Ficalho.
Se attendermos a que tendo elle estado n'esta Academia inscripto na sua 1.ª Classe e incorporado na Secção de sciencias historico-naturaes, como especial cultor do ramo botanico, que distinctamente professou na nossa Escola Polytechnica, – a quem mais directamente caberia officiar n'esta solemnisação seria ao nosso preclaro collega D. Antonio Xavier Pereira Coutinho, que ao Conde de Ficalho succedeu na cadeira de Botanica.
Não tendo sido possivel arrancal-o ao seu conhecido retraimento, filho de uma imperiosa e irresistivel modestia – na grandeza só comparavel á do seu realissimo merito – na verdade, qualquer socio d'esta Academia, sem distincção de classe, poderia assumir a tarefa, visto que o Conde de Ficalho, á semelhança de Latino Coelho e de Corvo, illustradissimo em quasi todos os ramos da sciencia, foi tambem, mais do que simples cultor de boas lettras, escriptor consummado.
É assim que, como a qualquer outro poderia caber, sou n'este momento o porta-voz da Academia na glorificação do seu fallecido socio, sem outro especial motivo que não seja, para mim, a razão… academica, de que tendo elle, botanico, feito um dia n'esta mesma sala o elogio do chimico Antonio Augusto de Aguiar, a Chimica estaria de certa maneira em divida para com a Botanica…
É artificiosa esta invocação de um Deve e Ha de Haver em materia de panegyricos academicos?
Será. Mas amplamente corrigida fica pelo veridico, sincero, nada artificioso sentimento, que tão grato me torna prestar aqui, em nome collectivo, a um collega desapparecido, a homenagem do apreço e admiração que em vida todos lhe consagravamos, e que para mim se radicou em vinte annos de excellente camaradagem escolar.
O justo elogio do Conde de Ficalho surgiu, pode dizer-se immediato, por occasião do seu fallecimento, em todos os orgãos da imprensa, pois com elle desapparecera uma das personalidades de maior notoriedade da sociedade portugueza na ultima metade do seculo passado.
A sua complexa e brilhante individualidade pôl-a, tambem brilhantemente, em elegante relevo o elogio proferido em outro logar pelo Conde de Arnoso1, e na Tradição2, interessante publicação, a que o nosso consocio muito queria, e que viu a luz em Serpa, antiga villa-solar da Casa de Ficalho, um numero especial de homenagem lhe foi consagrado, com a collaboração de Ramalho Ortigão, D. Antonio Xavier Pereira Coutinho, Theophilo Braga, Conde de Sabugosa, Sousa Viterbo, e outros distinctos ornamentos da sciencia e das lettras portuguezas.
Chega mais tarde a Academia. Mas ainda não chega tarde, considerado o nosso já conhecido e descançado apego ao proverbial conceito de que quem tem pressa… vae devagar.
Mas quantos teem esperado mais… e continuarão a esperar?..
Da demora não terão, pois, á priori, de queixar-se os manes do nosso defuncto collega, se é que nas empireas regiões, onde pairam os espiritos evolados da Terra, os manes academicos ficam conservando interesse e gosto pelas coisas do nosso instituto.
Mas se essa mysteriosa telepathia atravez do Infinito existe de facto, e d'isso agora tremo, de receiar é então que, em vez do infundado reparo de demasiada demora, se justifique antes, em concilio dos academicos que nos precederam na grande e tenebrosa viagem, a conclusão de que melhor fôra demorar muito mais, como para outros, a consagração a que hoje nos propomos.
Se assim succeder, só minha será a culpa, pois que, aos olhos de todos, bem patente é que no Conde de Ficalho não falta materia prima para elogio, e não só para elogio, mas para bom elogio.
Largo poderia elle ser, tantos são os aspectos, todos elles distinctissimos, da sua tão especial e superior individualidade, e tantos são os trabalhos seus dignos de detido exame e louvor.
Mas a sessão de hoje não lhe pertence exclusivamente: tem de repartil-a com o sabio Theodoro Mommsen, a quem o nosso eminente confrade Sousa Monteiro logo erigirá em aureas palavras o condigno monumento. E assim cumpre resumir-me, o que aliás faço tanto mais gostosamente quanto sempre algum proveito poderei auferir de me acolher, embora por necessidade, ao horaciano preceito, que promette maior agrado aos discursadores que não abusem da attenção do auditorio.
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Posto isto, meus senhores, que hei de rapidamente referir da saudosa figura do Conde de Ficalho, como que presente ainda aos nossos sentidos?
Todos recordam n'este momento a sua tão esbelta figura, o seu tão donairoso porte, a sua esculptural cabeça e a fina linha do seu perfil, o seu intelligente, avelludado e piscante olhar, a sua bocca amoravel e espirituosa, a sua voz suave e clara, a expressão accentuadamente intellectualisada da insinuante physionomia, a aristocratica rescendencia de toda a sua pessoa.
Na lembrança de todos está tambem a sua singular, ou para melhor dizer plural, aptidão para tudo, e que lhe permittia desempenhar-se sempre distinctamente de quanto emprehendesse – litteraria, scientifica, artistica e mundanamente: o que, accrescido do seu saber scientifico e litterario e do peculio de noticias adquirido em visitas ás côrtes extrangeiras com os reis e principes portuguezes, tornava o seu convivio altamente interessante, sem embargo de, por vezes, com certa desegualdade de humor, que era o mas da sua normal affabilidade, se dar por seccado e falto de pachorra.
Ninguem esquece tão pouco, tão caracteristico era, aquelle patente e despreoccupado ar de satisfação, de si proprio e do seu exito na vida – de que estava longe de ser um vencido! – ar que nada se parecia com vaidade, e era apenas uma especie de joie de vivre, e de que tão natural e temperadamente usava, que longe de ferir quem quer que fosse, que em si proprio ainda mais gosto fizesse, a todos parecia corrente, e antes mais inclinava para se sympathisar com esse agradavel estado d'alma, embora alheio, do que para de elle murmurar.
E, finalmente, algum mais intimo d'entre vós poderá tambem recordar na sua saudade o que n'elle havia – a despeito da sua sorridente mascara de sceptico e de certo intencional egoismo, mais intencional do que real, com o qual como que achara commodo simplificar a existencia – o que n'elle havia, iamos dizendo, de fundamentalmente bom e carinhoso para os seus amigos e de compassivo para o que de compaixão era digno.
Com um tal conjuncto de predicados physicos e psychicos, estheticos e moraes, Ficalho – assim era uso fazer-lhe abreviada referencia – Ficalho constituiu em todos os meios da sociedade portugueza, quer entre varões, quer entre donas, – que não desestimava e de que não era tão pouco desestimado – uma personalidade á parte, de especial relevo e distincção, onde quer que apparecesse, e pelo quê bem se comprehende que tantas vezes fosse utilisado para representar o Rei e a Nação em cerimonias internacionaes da maior pompa e responsabilidade decorativa, no melhor e mais alto sentido da expressão o dizemos.
Mas para nós, academicos, o que avulta no nosso preclaro confrade não são todos esses dotes naturaes, de que era o feliz, mas irresponsavel portador e usufructuario, por condição, não de acção e vontade propria, mas de simples nascimento. O que principalmente nos cabe celebrar é o que representa, na consideração e notoriedade a que chegou, a sua iniciativa na ulilisação dos congenitos apanagios que da estirpe lhe provinham, e que como que o embalaram no seu dourado berço de senhor de Ficalho e de morgado de Serpa.
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Nas modernas sociedades, a maioria dos homens que hoje attingem situações culminantes na consideração publica veem de nada, ou de pouco. São self-made-men, na expressão ingleza. A necessidade é que os faz, é ella o inicial estimulo e factor do seu engrandecimento. Tal é approximadamente o caso de quasi todos nós.
Na lucta da concorrencia, ao contrario, os individuos das antigas classes aristocraticas, carregadas de glorias passadas, seculares e genuinas, mas constituidas em bases diversas das da illustração moderna, como que nascem com a atrophia das faculdades necessarias para o moderno combate e propendem a decahir.
No nosso consocio o caso é todavia differente: nasce aristocrata, fidalgo de grande linhagem, illustre já no berço, mas a essa illustração de herança accrescenta outra mais effectiva, que conquista com o seu esforço, na mais democratica competencia, no concurso e na publicidade das acções por que se affirmam o merito e o talento.
Não ha duvida que de boa linhagem vinha o Conde de Ficalho, boa não só no sentido nobiliarchico do termo, mas ainda no do essencial valor.
Os Ficalhos, Mellos de appellido, proveem de Mem Soares de Merlo, um dos esforçados cavalleiros das ordens de Santiago e de Aviz, que ajudaram Affonso III á conquista final do Algarve, e de Martim Affonso de Mello, guarda-mór de D. João I.
N'estes Mellos se enraizam as casas de Cadaval, Sabugosa, S. Lourenço, Ficalho, Mello e Murça, dando á nação portugueza galhardos capitães, viso-reis, governadores ultramarinos e distinctos homens de guerra e de côrte, atravez todo o cyclo da velha monarchia.
Ao despontar, porém, das idéas liberaes, ao passo que a massa da nobreza reage e se concentra na defeza das instituições seculares, os Ficalhos vemol-os logo precocemente abraçados á nova causa, batendo-se e padecendo por ella.
E pela causa não padeceram só os homens, os quatro filhos da condessa viuva de Ficalho, D. Eugenia – Antonio, que depois foi o marquez de Ficalho; Luiz, que foi conde de Sobral; José, que na armada se distinguiu; e Francisco, que morreu conde de Mafra. Soffreu ella propria, prisioneira do governo miguelino no convento do Grillo, sequestrada de todo o conhecimento do destino dos valorosos filhos, pelo unico crime… de ser sua mãe!
Assim, com Palmella, Terceira, Saldanha, Loulé, terminada a lucta, os Ficalhos, como constitucionaes que eram da vespera, e não de simples adhesão ao triumpho liberal consummado, constituiram o nucleo da nova côrte, onde sempre permaneceram nos mais altos cargos. A torturada mãe, nomeada camareira-mór da infantil rainha, foi feita marqueza e depois duqueza de Ficalho.
Distincta raça esta dos Mellos, que em tantas das suas vergonteas, sem menosprezo de seus pergaminhos, antes de reforço a elles, mostrou comprehender que os homens valem, acima de tudo, pelo seu merito proprio e pelo de suas obras, que não pelo de seus antepassados, que apenas lhes cumpre honrar, e se esforçou em affirmar e desenvolver o valor proprio, em harmonia com o progressivo criterio dos tempos.
1
Conde de Arnoso. —Elogio do Conde de Ficalho. Lido na sessão especial da Sociedade de Geographia de Lisboa, em 19 de maio de 1903.
2
A Tradição.– Revista mensal de ethnographia portugueza, illustrada. Vol. V, n.os 6, 7 e 8. – Artigos de: Ramalho Ortigão, D. Antonio Xavier Pereira Coutinho, A. R. Gonçalves Vianna, Conde de Sabugosa, Alberto Pimentel, Dr. Theophilo Braga, Dr. Sousa Viterbo, Dr. Candido de Figueiredo, Manuel Ramos, Conde de Arnoso, Dr. Graça Affreixo, Dr. Thomaz de Mello Breyner, D. João da Camara, Pedro A. de Azevedo, Julio de Lemos, Costa Caldas, José Orta Cano, D. Antonio de Mello Breyner, Dr. Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes.