Читать книгу Amor Crioulo vida argentina - Abel Acácio de Almeida Botelho - Страница 11
II
ОглавлениеO dia seguinte amanheceu para o Silveira outra claridade. Esta inefável sensação de calma, de liberdade, de plena posse de si mesmo, que as viagens em nós despertam, fazia-lhe querer a vida e sacudia-o num alviçareiro estímulo interior. De tudo quanto o rodeava crescia para êle o interêsse. Livre, pelo momento, de preocupações sôbre o futuro e assediado por todo um mundo de sons, aspectos, côres, idéas e coisas novas, todo o seu encanto de viver se resumia na hora presente, e a alma dilatava-se-lhe num voluptuoso apaziguamento sem têrmo, como essa lisa toalha imensa de mar, sem perfídias e sem cóleras.
A corneta chamara para o primeiro almôço. Fóra, pelo espaço, havia sol, havia luz, e o tépido acariciamento da brisa casava-se numa euritmía perfeita com o manso ronronar das águas. Neste plácido ambiente de espuma e oiro, as silhuetas saltavam nítidas, as tonalidades ganhavam valor, sentia-se mais amigo e mais próximo, mais potente, mais cálido, mais fecundo, o divino alento criador da Natureza: e, perante o olhar extasiado do Silveira, todo o bigarrado movimento de bordo se esmaltava de tintas de relêvo, de cânticos pagãos, de brados genésicos, de inusitados brilhos, e os seus mesmos companheiros de embarque lhe pareciam os habitantes dum outro planeta, onde as paixões fôssem mais fortes e a vida mais consciente e mais intensa. Saíndo, na direcção do refeitório, para o longo corredor, veio-lhe a viva lembrança dos seus ignorados, dos seus humildes correligionários da passada noite, e ia a demandá-los, com piedosa atenção, através a gradeada porta da masmorra que ali assim perto os mantinha a distância, quando uma outra solicitação mais empolgadora e mais instante lhe rompeu da alma em alvorôço: a imagem fugidía e alada da joven argentina, entrevista tambêm na véspera, no salão. Mas, por azar,—debalde o Silveira esperou!—nem ela nem ninguêm da família baixou a comer.
Não havia então remédio senão confiar do acaso o providencial milagre de a ver aparecer.—Mas quando? mas aonde?...—E aí sóbe êle de golpe no ascensor e vem atravessar o salão e faz o giro afanoso do barco, mirando em tôdas as direcções, perquirindo os bizarros grupos distribuidos preguiceiramente ao longo das cobertas, no alinhamento marcial das cadeiras de repouso. Absorto nesta preocupação essencial, o resto marcava zero para êle, nada mais via ou pretendia, de nada queria saber. Acotovelava insensível os arremangados homens do sport, cortava indiferente as interesseiras chalras de grossos burgueses, vestidos de fustão branco; por duas vezes houve que furtar-se, um pouco bruscamente, às louvaminheiras investidas do dr. Contreras, em termos de passar por malcriado; e por um triz não préga de bôrco sôbre o convés com uma barafustante paqueta baíana, magra, pequenina, ictérica, que comandava a poder de gritos e truanescas evoluções uma chusma de pequerruchos.
Por fim, essa adorável argentina ei-la que aí vem agora avançando... Vem só. Era alta, esguia, frágil e avançava leve e aérea, como um reflexo de si mesma, lembrando no porte e na frescura um dêsses longos, finos e erectos fustes da palmeira imperial, com o vértice perenalmente verde. Seguia breve e alheadamente, com uma simplicidade não isenta de nobreza, e foi sentar-se junto da mãe, uma repousada e aparatosa senhora que nos parecia forte da robustez peculiar que circunda certas mulheres e que denota honestidade. E de hora em diante o Silveira, feliz por aquela segurança de tranqùila contemplação que emfim conseguia, já não abandonava mais o alvo querido do seu cuidado e atento ia e vinha, e desdobrava arteiras pausas, disfarces e rodeios, para poder, sem que fôsse notado, entregar-se a esta viva e desbordante análise que a sua alma se comprazia em prolongar, porque ela respondia à excitação misteriosa que dentro de nós faz chispar o maravilhoso reflexo interior da simpatia.—Era curiosa, enternecedoramente curiosa, com efeito, esta linda desconhecida. Aparentava 20 anos, não mais. Farto cabelo castanho, mousseux, sem brilho, descendo em bandós singelos a juntar-se sôbre a nuca; pequenina testa espiritual, em triângulo; os olhos castanhos tambêm, de leve desenho mongol, as sobrancelhas erguidas e lançadas sôltamente; o nariz projectado direito e um pouco longo, toda a face alongada por igual, perfil grego, traçado num como que afinamento idealista e ingénuo; o queixo pontuado finamente, os dentes brancos, muito iguais, e a bôca breve, os lábios finos mas expressivos, resumindo o que porventura havia de vida e de paixão nesta criatura reservada e tímida. Nenhuma espécie de atavios: nem espartilho, nem jóias. Apenas na base do pescoço, ático e longo como um mármore da Jónia, um colar de corais napolitanos. As suas mãos, de dedos brancos e finos como longos estames, e mais claras que o tom mate do rosto, eram o prolongamento lógico de tôda a figura, lembrando os tenros rebentos duma árvore de sonho. E, quando sorria, os olhos perdiam-se-lhe no vago, enquanto na filigrana húmida dos lábios perpassava um frémito breve de emoção.
Na alma ardente do Silveira rompêra agora o desejo veemente, irreprimível, de mutuar impressões com a linda desconhecida.—Mas como consegui-lo, como chegar adonde a ela?...—considerava com afinco, instalando-se-lhe na frente, numa atitude de estudado abandôno, os cotovelos sôbre a amurada.—Tinha que haver uma apresentação, manobra táctica reconhecidamente difícil para o investimento cortês duma família como aquela, que êle não via comunicar-se com ninguêm, que ninguêm saùdava e que a ninguêm retinha, mantida mui deliberadamente no seu desprendido círculo de isolamento e indiferença. Assim, uma aproximação em condições favoráveis, segundo as regras do bom-tom, não era empresa vulgar.—O Silveira, de lábio pregado, reconhecia-o, e esta descoroçoadora evidência, longe de o desalentar, mais o enardecia.—Havia que buscar...—Numa fêvera crescente de impaciência, planizava estratagemas, ideava hipóteses, amontoava projectos, que, mal esboçados ainda, todos logo fracassavam. Então, em alternâncias de dulcíssima pausa, como um bálsamo, o áspero aguilhão do seu cuidado amolecia na contemplação deliciada e atenta dêsse baluarte suave de isenção e de virtude. Mas logo, mais despótica, mais tenaz, a sua amoruda obsessão voltava, por cada um destes venusinos exames trazida a um enternecido exacerbamento que mais lhe acicatava a vontade e lhe acendia o desejo.
Um momento veio então em que o Silveira notou que, um pouco mais ao largo, à ilharga e um tanto recuado das duas argentinas, um joven glabro e calvo, com o engerido busto dobrado sôbre uma destas pequeninas mesas portáteis de bordo, escrevia nervosamente. As garatujas do lápis seguiam numa carreira febril, dir-se-ia ao atropêlo cálido da improvisação, enchendo fôlhas sobre fôlhas sôltas, que a aba loira dum grande panamá protegia da aragem dispersiva. E, sempre no mesmo propósito exibitivo e grotesco, a intervalos o iluminado escriba parava na empolgante labuta e imobilizava-se, como que colhido em pausas de transcendente laboração interior, com os olhos vagos postos ao alto e o lápis erguido digitalmente sôbre o lábio sibilino. Depois, num ímpeto criador, um estremeção simiesco o sacudia, e, com um risinho envaidecido, êle recomeçava inflamadamente a escrever. Ora, aconteceu afigurar-se ao Silveira que, numa destas estases de espiritual concepção, o biltre encarára particularmente a adorável argentina, a criatura esfíngica do seu sonho... pareceu-lhe mesmo que cambiára com ela um qualquer familiar sinal de inteligência.—Talvez tivesse a sorte de a conhecer! Feliz até à insolência... Bem, mas então, nesse caso... havia que conhecê-lo a êle tambêm!—E forte nesta idéa, feliz por êste relâmpago de aproximação salvadora, o Silveira estudava agora com agrado e analisava mais de espaço a espaço aquele que presumivelmente ia ser o auspicioso traço iniciai à sua fortuna.—Era uma figura abortiva e grotesca, assim tortuoso, magrote, pequenino, com o seu bigodito loiro, raso à raíz dos lábios, com os seus olhos dum cobalto inexpressivo, com a cabeça tôda em tortumelos, romboidal, enorme, e, a partir do queixo para o coronal, aparada caricaturalmente em ponta, num dêsses estiramentos cucurbitáceos peculiares do Greco. E ainda o alongamento filiforme do pescoço sôbre a ladeira débil dos ombros mais acentuava o desliamento quebradiço e vacilante daquela estranha figura. Coisa curiosa: sôbre êste pescoço estriado, sôbre estas mãos nodosas, sôbre esta cabeça paradoxal que parecia recêm-saída dum cataclismo, não havia a epiderme rugosa e áspera que seria a condizer, antes se arredondava a macieza penujosa e clara duma pele de efébo, mate, adoçando os contornos, com transparências de aguarela e velaturas de arminho; a pele virginal e doce dum adolescente; a qual, entretanto, pelo mais irritante dos contrastes, passava súbito a uma rubefacção herpetizada e adusta no revestimento crassoso das desertas grimpas do cránio luzidío.
Vestia um jaquetão negro de lustrina, colete e calça de flanella créme, sapatos brancos, peúgas rôxas, a camisa mole ajourée, e a farta gravata de sêda negra caída e sôlta num desmanchado laço de artista. Um mixto de pedantismo e inconsciência, de garridice e desmazêlo. Propunha-se o Silveira abordá-lo, quando um pequeno incidente surgiu, a cortar-lhe o propósito e colocá-lo num passo difícil... Era o conde Améglio que passava, mais a mulher, e que apenas avistou o «grande fidalgo português e seu não menor amigo», logo de acercar-se-lhe, expansivo, sorridente, num afectuoso desbarato de gestos e mimadas atenções, pouco mesmo faltando para lhe acarinhar com a mão, familiarmente, o queixo. E assediava-o com perguntas, com propostas, ofertas, lembranças, solicitudes.—Que fazia ali assim? porque não vinha com êles?...—A adorável irlandesa, numa sublinha cativante, sorria tambêm. O Silveira tinha calafrios, colhido assim de improviso, de súbito posto à prova na duplicidade egoísta dos seus instintos. Gaguejava de embaraço, não acertava com uma posição, as palavras não lhe acudiam. Tomava-o uma espécie de embrutecedora raiva interior, ao ver-se assim entaliscado estúpidamente entre essas duas solicitações, qual delas mais viva e mais tenaz, do seu desejo. Ardia por fazer-se notar, por fazer-se admitir ao convívio da linda americana, cuja linha patrícia e esquiva tanto o intrigava; e muito lhe agradava por igual Mrs. Edith, cujas bôas graças não queria perder, mas junto da qual tambêm não lhe convinha fazer demasiado ostentiva parada de atenções, neste momento. Defendia-se por monossílabos, numa grande instabilidade de movimentos, còrando como um colegial e mirando de escape, numa idiota solicitação de escusa, a bela argentina, que nem dava por êle. Por fim, ante a insistência pegajosa dos dois, cortou a dificuldade prometendo que breve iria, a estibórdo, ter com êles; e tornou a còrar mais forte quando o conde, já longe e ao dobrar a esquina do deck, se voltou num gesto afável, acenando-lhe convidativo com a cabeça.
Daí a instantes, liberto do arreliativo pesadelo, acercou-se dissimulado do incansável rabiscador, o qual, no momento justo, arredára, num desvio brusco do antebraço, a grande aba do panamá protector de sôbre as tiritas de papel, que logo desparramaram ao acaso, como arvéloas, pelo espaço. E logo tambêm o Silveira, agarrando o pretexto, acudiu solícito, baixando-se e ajudando o desconcertado escritor a recolhê-las.
—Un millón de gracias, caballero.
—De nada...—obtemperou, amável, o Silveira; e com discreta atenção:—São produções inéditas?
—Apuntes del natural,—tornou singelamente o outro, sempre em espanhol,—esquissos, impressos, simples notas do momento, fugazes como êste instante de vida em que voamos.
—Deve ser interessante.
—Não vale nada...—derivou o iluminado anotador, num gesto desprendido.—Um modo inofensivo de matar o tempo.
Convidou o Silveira a sentar-se e acercavase-lhe, solícito, insinuante.—Sem dúvida era português? Pelo modo, pelo acento, via-se logo... Muito folgava! Êle era andaluz. Um pouco periodista e um pouco homem de negócios.—Impingia-lhe o seu cartão de visita, impresso em tipo gasto e vulgar, modestamente.—Ramón Alvarez, tout court.—Mas, sôbre a caligrafia tôrpe dos caracteres, um empenachado elmo luzia heráldicamente, mais tôrpe ainda.—Êle era duma família da mais antiga linhagem, família de cronistas, de poetas, de galans... e tivera sempre um grande fraco pelas letras. Tinha dois livros em preparação, uma novela e um poema épo-histórico, e tambêm um drama prestes a ser pôsto em scena pela Maria Guerreiro.—Oh, os intelectuais!—exclamou o incompreendido escriba, desarticulando o busto, rolando os olhos em êxtase e, num bravo arranque de entusiasmo, atirando a enormidade paradoxal da cabeça sôbre a nuca.—São a flor por excelência, a suprema exaltação da terra!—Infelizmente, êle vivia... viviam os dois, que lhe perdoasse se tomava a liberdade de o dizer... mas lá como cá... viviam numa peste de países de analfabetos, onde por via de regra os pensadores, os génios, os grandes eleitos do talento e do saber, morriam de fome. De sorte que, assim, havia que ser-se ao mesmo tempo um pouco prático.—Que remédio!—com enfado soberano rematou. E iludia o seu prosaico mistér de caixeiro viajante num vago eufemismo, dizendo «que vinha à Argentina estudar o país».
—E conhece argentinos?—logo o Silveira indagou com calor.
D. Ramón meneou negativamente a cabeça.
—Alguma das famílias que vão aqui a bordo?
—Tampouco.
—Nem aquelas senhoras, ali assim, à nossa direita?
Essas menos do que nenhuma. Alvarez não conhecia nem tinha ganas de conhecer.—Muito cheias de prosápia. No le gustaba.—E franzia o nariz com displicência. Na irritação do desapontamento, o Silveira é que teve ganas de lhe bater... Entretanto, na sua abundosa loquela, o Alvarez insistia que nunca podéra aturar gente pretenciosa. Ele queria-se com gente alegre, comunicativa, franca, sencilla, gente à moda do seu país, da sua terra... com pessoas que nos põem à vontade, no fraternal empenho de nos fazerem sentir que são nossos iguais, em vez de parecer que nos querem impôr uma humilhante adoração.—Olhe! como aquilo.
E apontava, de olhar incendido, uma linda morenita, mui viva e coquetona, tôda de branco, que justo lhes passava na frente. Ia ladeada por dois outros tenros amorinhos, e as três realizavam o mais delicioso grupo etrusco, assim caminhando rítmicamente, sôltas e leves, as cintas enlaçadas, os bustos dançando, o cabelo ao vento.
—Què monada! Aquilo, sim... Veja! Veja!
Dizendo, o desengonçado Ramón exagerava a sua abominável aparência fetal, ao erguer-se, todo dobrado, sôbre a mesa, para corresponder às provocadoras saùdações que, passando, a rapariga lhe fazia com a cabeça, com os olhos, com o leque, com as mãos, batendo forte o tacão, bolinando os quadrís lascivos. E quando a perturbadora visão se desvaneceu, êle, familiarmente:
—Prometi-lhe um soneto e neste momento mesmo o terminava. Quere ver?
Procurou, com a pupila febril, nas tiras sôltas, e erguendo uma por fim entre os dedos trémulos, leu então, enfáticamente, com cabotina audácia, como sua, o puro decalque duma das líricas mais inferiores de Manuel Palácio. Contára antecipadamente o seu instinto com a iletrada ignorância do Silveira, o qual, tomando naturalmente por original a cadenciada toadilha, em marretadas de admiração vislumbrava agora nas insondáveis cavernas cerebrais do Alvarez tubérculos autênticos de génio. Porêm já êste, num lume de vaidade, colhendo presto a papelada:
—O meu amigo perdoará... mas ocasiões destas não se podem perder. La muchacha con seguridad espera-me. Está impaciente... Hay que aprovechar, por Dios!
E, arredando brusco a mesa, partiu de abalada, pequenino e torcido sob a aba descomunal do panamá, como um chaparro anémico.
Desapontado, o Silveira quedou-se uns segundos sentado ainda e imóvel, na sua atitude de irremediável lamecha, o busto abatido, as mãos pendendo tristes entre os joelhos. Depois, tendo enviado um derradeiro olhar de desconfortado apetite sôbre a espalda esquiva da linda argentina inabordável, ergueu-se e partiu tambêm, sacudidamente. Mal tinha dado a volta para estibordo, quando viu que a êle se dirigia o seu afável comensal, Euclides Pereira, ladeado por dois graves e idosos senhores, que deviam ser ingleses, a avaliar pelos cómicos desmanes em que êles buscavam amávelmente contrafazer a sua imperturbável e habitual tesura. O joven brasileiro apresentou:—The Right Honorable the Earl of Horrowby—The Captain John Stayton. Este segundo tartamudeou umas curtas frases guturais, que o Silveira não percebeu, lardeadas de profusas reverências; e o tenente Euclides explicou então que vinham pedir-lhe a honra de consentir em fazer parte do grande Sports and Entertainment Committee, e ao mesmo tempo convidá-lo a assistir à reùnião preparatória, que devia realizar-se, aquele dia mesmo, no salão de 1.ª—the Social Hall,—ás 9 p. m. Erguido e dobrado numa atitude de nobre aquiescência, o Silveira agradeceu, no íntimo envaidecido. E como que sentindo-se crescer, importante, alegre, seguiu com afectada indolência direito ao conde Améglio, que de longe observára e compreendera a scena, e por isso o acolhia agora entre atencioso e mordaz, num risinho de conformidade patusca.—Êle tinha adivinhado... muito bem! muito bem! Fizeram o que deviam fazer, era de esperar.—E todo em aprovativas mesuras:
—Sim senhor! muitos parabens.
—Very, praiseworthy,—completou Mrs. Edith, com o seu cândido sorriso. Mas, encolhendo, modesto, os ombros, o Silveira:
—Uma simples amabilidade. Nem eu esperava. Que valor pode isto ter?
—Ah, pois então não tem! Êles bem sabem a quem escolhem...—acentuou, lisonjeiro, o conde, com ar convicto; e maliceiramente rematou:—Olhe, a mim não me convidaram êles.
—Mas, é que o devem convidar!—corrigiu com amável intimativa o Silveira; e, num generoso assomo de importância:—Se o conde quere, logo à noite lembro o seu nome.
—Oh, não, não... por amor de Deus! Essas honras, aqui, não trazem senão incómodos e maçadas. Para o efeito, sou da plebe, prefiro que me considerem um anónimo, um zero. Não, não... Muito obrigado!
Trocaram depois uma meia dúzia de frases banais sôbre a monotonia da vida de bordo, a extensão fatigante da viagem, a vulgaridade chocante dos passageiros, a má comida, o calor, o belo tempo que fazia. O conde tinha no regaço um livro copioso,—L'Argentine telle qu'elle est, de Paulo Walle,—cuja leitura recomendou ao seu amigo; mas a êste interessava-o mais a silhueta ateniense, o abandôno repousado e lânguido da irlandesa,—sôbre a armchair, frente à luz, estendida longamente, com os pèsitos brancos traçados fóra, no ar, deixando a divina modelação da perna a descoberto bastante acima do artêlho, com uma cadência suave e tranqùila na ondulação rítmica do seio, os braços em ansa, as mãos inertes em concha sob a nuca, e os grandes olhos de veludo mirando vago, ao longe, reflectindo não sei que molhado encanto, da ardósia fluida das águas, e parecendo seguir o vôo dalguma quimérica visão na claridade material do espaço.
O toque para o lunch veio cortar brusco êste primeiro ensaio de flirt, com o qual a alma oblíqua do conde não parecia aliás preocupar-se... Em baixo, à mesa, a conversação arrastou-se monótona, cortada e dispersa, como se cada um daqueles cinco fortuìtos comensais trouxesse agora por distintas e opostas coisas dividida a atenção e solicitado o espírito. Apenas, com familiar insistência, se falou dos próximos festejos, sendo o Silveira e o tenente Euclides felicitados cordialmente por fazerem parte do grande Committee directivo; e tambêm o abstruso Mackenna se desatou num panegirismo entusiasta daquela aparatosa francesa cuja identificação moral e social trazia todos a bordo intrigados, graças à mirabolância equívoca das toilettes, e à suporífera mansidão e à consciência não menos letárgica do presumido marido.—Helena d'Ellery se chamava ela, já conseguira saber... mas, jurava! ainda havia de saber-lhe tambêm práticamente a biografia.—O flácido marquês di Mafiori teve um risinho enigmático, imperceptível; ao passo que, na sua libidinosa querença, o outro:
—É deliciosa! Tem o chic, o aperitivo acre do escândalo. Hay que gustarla!!
E na gulosa antecipação dêsse defeso prazer sonhado atacava furiosamente o pires das azeitonas.
A interminável sucessão da tarde arrastou-a o Silveira enfastiadamente, em grande parte pelo braço solícito do tenente Euclides, que não se cansava de o apresentar às numerosas famílias suas compatriotas. E assim andaram deambulando amávelmente de grupo para grupo, sem que o Silveira conseguisse dominar a impaciência e vencer o tédio. As jovens brasileiritas, algumas bem interessantes, com as suas meigas expansões e a sua vivacidade ingénua não logravam entretanto cativar-lhe o espírito, enleado teimosamente naquele obsessivo empenho de se aproximar da argentina; os homens, êsses sem maior atenção, mal trocadas as primeiras saùdações, logo reatavam o interesseiro diálogo interrompido, não falavam senão em cotações da borracha e do café, perseguiam miragens de fortunas fabulosas, desfiavam cálculos que davam vertigens, denunciavam burlas que pediam galés, antecipavam quebras iminentes, todos ávidamente engrenados no travamento egoista e brutal dos negócios, a que durante tôda a sua vida o Silveira, por temperamento e por educação, se mantivera sempre altivamente alheio. Nada disto o satisfazia, nada o interessava, nem por momentos o prendia sequer. Então, num dos seus vagos e atoados giros de bordo, atingiu o Silveira o têrmo da coberta, à prôa, mesmo sôbre o amontoamento heteroclito e sórdido dos seus vizinhos da cabine, em baixo, aquela pobre gente da 3.ª classe. No trecho luzidío e nu do convés que a projecção do grande tôldo gris deixava a descoberto, êle viu que vários bigarrados e mansos grupos subiam e desciam ao acaso, num constante vaivêm, pelo sujo rasgão duma espécie de negra fossa, a um canto, e vinham em cima amadornar-se, plácidos todos e delidos como um sol de outono, todos na mesma calma resignada e humilde, apagados, doces, tranqùilos. Os homens, pelo geral, em camisola e arremangados, a cabeça nua, alguns descalços, estremavam-se segundo as afinidades de raça, e fumavam, assobiavam, rilhavam fruta, falavam tímida, espaçadamente, como que narcotizados por aquele embalo monótono da vida que, durante dias e dias, havia de baloiçá-los entre a água e o céu. Muitos, num confiado abandôno animal, dormiam. As mulheres, acocoradas, remendavam-se, preparavam tisanas, amamentavam os filhitos de colo ou catavam os mais crescidos. Numa clareira de escasso prazer, ao centro, e de roda do mesmo incansável e folgazão harmonium, passava numa tropeada cantante um círculo folião, dançando,—cujas atitudes pagãs uma loira e delgada touriste ia esquissando a correr no seu carnet, deliciadamente. E o Silveira fazia a aproximação mental desta suave chusma humana, na sua conformidade evangélica, na sua inconsciência fatalista, na sua plácida singeleza e passiva sujeição ao destino, com os gestos duros, a pupila metalizada, a frase breve e a sôfrega ardência dos seus insatisfeitos companheiros de 1.ª... e achava aqueles mais felizes.
Tocava o sol o ocaso, e o Silveira como que via agora, de roda de si, a uma outra luz, os homens e as coisas, cujos contornos se debuxavam numa agonia de tôda a sua vida exterior, acendidos em tons violentos num esfumaçado fundo de tristeza. Encarou numa instintiva interrogação o céu e surpreendeu, no seu desdobramento esfusiante, êsse maravilhoso e deslumbrante scenário cuja amplidão magnificente tanto lhe haviam encarecido.—Era com efeito uma imensa, uma transcendente e apoteótica sarabanda de luz, que mais que aos olhos lhe falava à alma, e que em parte nenhuma como ali, em pleno oceano, podia abranger-se íntegra na sua avassaladora majestade, na sua incomparável beleza, tomando totalmente meio céu, descendo suavemente do frio azul mineral do zénite a um loiro cálido de paixão, para depois, à raíz do mar, inflamar-se em sanguíneas vigorosas, esbrasear-se em línguas de incêndio. Na difusão ofuscante desta auréola de sonho, as walkirias fantásticas de nuvens, encapeladas cêrca do horizonte, debruadas por aquela gama infinita de côres, facetadas nas mais atormentadas e imprevistas formas do relêvo, tinham movimento, tomavam volume, intenção, vida, alma, carácter, improvisavam grupos que eram símbolos, formavam cruas oposições, saltavam em rondas caprichosas; e por fim tôda essa manante claridade sideral despenhava-se, como um Niagara de oiro, macia, translúcida, impecável, sôbre a imensa alfombra rútila das águas. Aí, na linha molhada do horizonte, o mar era fogo líquido, e nesta enorme brasa, crespa e fluída, a granada quáse extinta do sol estrelava-se ainda para o alto num imenso leque de violeta e oiro, que a algodoada capela das nuvens contornava, e cujas últimas trepidações vinham, crepitantes e dispersas, morrer pelas silhuetas errantes, pelas escaiolas claras, pelas arestas vivas do navio arfando... ao passo que já, pelo diáfano e desbotado azul da metade oposta do céu, da penumbra vaga do oriente, o plácido véu da noite vinha subindo.—Era tôda uma revelação esta soberba e inimaginável orquestração aérea de aspectos, de formas e de tintas; convertia num absurdo a impassibilidade tradicional do céu, fazia-nos crêr na clássica sublimidade da vida olímpica dos deuses, dava-nos como que a sensação viva do Infinito.
Seguia o Silveira desta hora doce e imensa a magia incomparável, quando sentiu um toque familiar no ombro, que o fez estremecer. Era o pomposo Norberto Mackenna, que com um gesto alto e desdenhoso:
—Então, que faz aqui assim, tam só, meu caro?... Admirando o pôr do sol, não é verdade?
—É lindo!
—Ya lo creo.
—É maravilhoso!
Mas, num rebarbativo freio a êste entusiasmo ingénuo, o joven chileno:
—Sim, é bonito, é... mórmente para quem o contempla pela primeira vez. Mas não nos podemos ficar por aqui!—E ante a muda interrogação do Silveira, com infatuado ar, esclarecia:—Ora! Nas minhas primeiras viagens, fartei-me de fixar colisões de côres como estas; mas não passavam de cópias servís, hoje não lhes atribuo importância nenhuma.—Plantava-se com intimativo vigor diante do Silveira, que começava a imaginá-lo maluco.—Porque isto de pintura, meu caro amigo, tem que progredir, como tudo o mais; tem que radicalmente mudar de processos, entende-me?... Os valores éticos e estéticos actuais são uma lástima... adstritos como ainda andam à passividade idiota e servil de gastas formas milenárias. Temos que fazer mais do que ficar-nos a objectivar interminavelmente as vélhas concepções convencionais da beleza e do amor. Hay que poner patas arriba a tôdas essas fórmulas mesquinhas. Oh, seguramente Picasso, Boccioni, Metzinger, Matisse, estão na razão! Há que derribar por completo, que arrancar pela raíz tôda essa floresta vazia e pedante do Passado. Pois se nós temos de roda de nós, flagrante, inexplorada, imensa, uma nova maneira de criar e de sentir... Temos que renovar ao mesmo tempo o instrumento e a música.—E movendo desordenado a cabeça, os nervosos dedos arranhando inspiradamente o espaço, a grenha revôlta ao vento:—Há que fixar o movimento, a velocidade, a conquista do espaço, o delírio da carreira, a embriaguez do vôo, as palpitações do éter e as vibrações anímicas, todo êste travamento volátil e febril da vida, tôdas as grandes conquistas arrancadas últimamente pelo génio humano à Natureza inerte e hostil... Não lhe parece?
—Sim, acho que sim...—aventurou maquinalmente o Silveira, que o escutava indiferente, sem perceber nada, como quem ouve chover.
Entretanto, diante do seu olhar deslumbrado e absorto, e como um eterno protesto à vacuìdade insolente daquelas palavras, continuava a desenrolar-se a beleza perenal dessa agonia de luz dulcíssima, salpicando de brilhos fugazes a capela rasteira das nuvens, que como que se abriam agora em magnólias, hortênsias, lótos, orquídeas e outras flores maravilhosas, semelhando um imenso fogo de artifício imobilizado, no seu fulvo esplendor e no seu rasgo alado.
Breves horas depois, no Social Hall, a prefixada reùnião do Committee directivo de sports e festas decorreu serena e rápidamente. Para ganhar tempo e facilitar trabalho, o secretário leu um programa de diversões já préviamente elaborado, o qual foi aprovado sem discrepância. Procedendo-se em seguida à distribuìção das respectivas funções pelos membros do Committee, João da Silveira veio a saber, com verdadeiro regosijo, que não lhe competia mais do que o encargo de fazer entre os seus compatriotas de bordo a quête voluntária para as despesas.—E que não se aceitavam donativos superiores a uma libra.—Por outro lado, a tarefa era-lhe um tanto ou quanto fastidiosa. De portugueses, a bordo, o Silveira não se dava conta de mais que alguns, poucos, pequenos proprietários e comerciantes, seguramente republiqueiros... bastava vê-los. Não lhe era nada agradável tratar com essa ordem de gente. Mas, em suma, por uma vez e como eram poucos, a coisa resultava fácil, afinal. Era um alívio!
Daí a pouco, sôbre uma das mesitas do smoking-room, iniciava êle o seu trabalho, passando ao papel os nomes daqueles que já conhecia, quando súbito se lhe interpõe arreliativamente à luz a figura abundosa e afável do dr. Contreras.—Não sabia se vinha molestarlo...—Tinha um risinho solícito, de pretendente, ao explicar:—Êle estava cêrca, ali assim, vendo jogar, quando deu conta dêle.—E apontava uma mesa de brigde, em que eram parceiros o Mafiori, o Mackenna, um inglês engelhado e esguio como um arenque sêco, e aquele misterioso e derrancado acólito de M.me d'Ellery, a qual, complacente, se lhe sentava ao lado, de perna traçada e fumando, num à vontade petulante. O Contreras continuou:—Estava vendo jogar, por ver... Não que fôsse aficionado. Más bien le gustaba tratar com as pessoas de verdadeira distinção. Oh, sem favor nenhum! Por isso tomára aquele atrevimento.
E levemente incrédulo, dobrando-se para o Silveira, com o olhar astuto:
—Es usted republicano?
O Silveira teve um gesto solene de protesto. E servilmente o outro:
—Ora! via-se logo... Podia lá lêr por semelhante cartilha un caballero tam distinto! Eu, que sou eu, p'r'aqui um pobre come-meajas, e com republicanos tambêm nunca quis nada. No parto buenas migas con ellos. Gente sem modos, sem educação... Nem a rèpública, meu caro sr., é para nós.—Dogmáticamente confirmava, arregalando os olhos:—Veja o que ela durou em Espanha!—E, com dulcerosa expressão, batendo a espalda do Silveira:—Pois, meu caro amigo, faço votos para que êsse grande dia da restauração lhes venha breve.
O Silveira poisára a pena e erguera uns grandes olhos de esperança para o generoso interlocutor, seguro senhor agora da sua grata simpatia, e que com abandôno familiar, sentando-se:
—Diga-me, meu amigo... êlea rèpública portuguesa sempre suprimiu as condecorações?
—Suprimiu tudo!
—Es lástima...—comentou, de pálpebra murcha, o Contreras; e depois duma pausa, coçando a barba, tímidamente:—Eu muito gostava de ter uma condecoração portuguesa!
—Sim? Pois deixe estar, que quando a coisa volte...
—De seguro, promete?
—Alcanço-lhe uma... a Conceição, por exemplo. Palavra!
—Ah, que agradecido eu lhe ficarei!—lamuriou o Contreras, enternecido, de mãos erguidas.—En cambio tambêm prometo fazer-lhe un regalo, un regalo precioso...
Achegou-se e com afável intimativa, muito em segrêdo:—Dou-lhe uma das carabinas apreendidas aos monarquistas portugueses, de que me fez presente el alcalde de Vigo, grande amigo meu... É uma carabina autêntica de Toledo, como aquelas que os jornais disseram que o govêrno espanhol havia vendido para o Paraguay...—Aqui ria grossamente, mostrando a rala devastação dos dentes:—Para o Paraguay, hein... Não foi má broma essa!
E outra vez sério, e com um encarecimento hipócrita, premindo o pulso ao Silveira:
—Uma preciosidade, uma verdadeira peça de museu... Era do Paiva Couceiro.