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El-rei D. Luiz
ОглавлениеEscrever dos reis, quando elles vivem ainda, é pelo menos um pouco arriscado: póde parecer adulação. Mas escrever de um rei que já não existe, e contar lealmente os altos favores pessoaes que d'elle se receberam, é mais do que gratidão—é justiça.
Eu estou n'este caso para com el-rei D. Luiz. Nunca o disse em publico durante a sua vida, para afastar de mim a suspeita de lisonjeiro, mas não perdia occasião de dizel-o em particular. Muita gente o ouviu da minha bocca, muitos o sabem; porém outros o ignoram. Para estes escrevo.
O que eu vi sempre menos na pessoa do senhor D. Luiz I foi o rei, o principe, o astro da côrte. O que n'elle sempre me captivou, desde o primeiro dia em que tive a honra de lhe falar, foi o homem illustrado e complacente, o amigo dos que trabalhavam, o protector dos que rudemente luctavam pela existencia.
O rei podia desagradar alguma vez ao capricho das{10} paixões politicas, que em torno d'elle se debatiam. O homem era sempre o mesmo para todos: bom, compassivo, affectuoso.
Chegava a causar assombro que um principe, tão preoccupado de negocios e até de distracções, pudesse seguir tão attentamente o fio de tantissimas pretensões particulares, de que elle, e ás vezes só elle, possuia o segredo.
No conjunto das massas populares havia centenas de biographias que el-rei D. Luiz conhecia pagina a pagina, e que acompanhava dia a dia.
A sua consciencia devia sentir-se satisfeita com o galardão de si mesma quando, na turbamulta de uma festa ou de um espectaculo publico, o rei divisasse, perdidas humildemente na multidão, as phisionomias de muitas pessoas que occultamente havia protegido e felicitado.
Estou certo de que um sorriso ou um olhar quasi furtivo d'essas pessoas agradaria mais ao seu espirito do que os discursos officiaes e as lisonjas cortezãs que por toda a parte o perseguiam.
De mais a mais o rei tinha essa memoria inexcedivel de todos os principes da sua familia: fixava facilmente as phisionomias e as datas, de modo que não perdia nunca mais de vista a pessoa a quem alguma vez houvesse falado.
Muitas vezes, nos actos solemnes e ostentosos da côrte, el-rei D. Luiz me avistou na posição pouco evidente em que sempre procurei collocar-me, e o seu olhar perspicaz, quando não era o seu sorriso amavel, correspondia de longe ao meu cumprimento respeitoso, mas quasi subtil.
Posto isto, que me nasce da abundancia do coração, eu direi em singelas palavras como foi que desde 1873 tive a honra de me aproximar de el-rei D. Luiz I.
Quando cheguei a Lisboa, na menos prospera situação burocratica que ainda assim vi com alegria cair do{11} céu, tinha eu publicado recentemente um livro, A Porta do Paraiso, chronica do reinado de el-rei D. Pedro V.
Os regeneradores estavam no poder, e o governador civil do Porto, Bento de Freitas Soares, que se me affeiçoára, dera-me uma carta de apresentação para o ministro do reino, Antonio Rodrigues Sampaio.
Fui ao seu gabinete entregar a carta, e Sampaio recebeu-me immediatamente com a bonomia familiar que elle tinha para com toda a gente.
Sampaio, apesar da ante-sala estar repleta de homens politicos e de pretendentes, demorou-se bons tres quartos de hora conversando comigo. Falou-me da sua origem obscura, da sua lucta pela existencia, da perseguição aos Cabraes, do Espectro, e na sua palavra, ás vezes demorada, havia um doce tom de familiaridade verdadeiramente captivante.
Terminou perguntando-me o que eu queria.
Respondi a Sampaio que desejava apenas ser apresentado a el-rei para lhe offerecer um exemplar do livro que acabava de dar a lume. Acrescentei que era eu a primeira pessoa a reconhecer o nenhum valor litterario do meu livro, e que de modo algum ousaria offerecel-o a el-rei, se não se tratasse casualmente de uma novella baseada em factos do reinado do senhor D. Pedro V; que, portanto, o meu livro, se não podia prender, como obra de arte, a attenção de el-rei D. Luiz, teria comtudo para sua magestade o interesse que resultaria naturalmente de todo e qualquer escripto que dissesse respeito a uma pessoa da familia real.
Sampaio disse-me logo que o meu pedido seria satisfeito; que no dia seguinte, uma quinta feira, havia despacho no Paço; que estivesse eu, á uma hora da tarde, na secretaria do reino, por que me levaria na sua carruagem, e me apresentaria a el-rei antes do despacho.
No dia seguinte, á hora indicada, partimos do Terreiro do Paço para a Ajuda, na mesma carruagem, e dez{12} minutos depois de chegarmos ao Paço, el-rei, que logo tinha recebido Sampaio, mandava-me entrar para uma das salas interiores.
Quando ali entrei, com a timidez de um homem que arrisca os primeiros passos nos tapetes da côrte, el-rei, encostado ao vão de uma janella, e fumando charuto, com as mãos mettidas nos bolsos de um veston, conversava com o ministro do reino.
Sampaio apresentou-me em termos excessivamente amaveis, e el-rei disse-me palavras tão obsequiosas, que augmentaram ainda mais a minha confusão.
Depois de trocadas estas formulas de cortezia, el-rei falou-me logo no livro que eu lhe ia offerecer. Disse-me que já o tinha lido. Referiu-se a muitos factos a que eu alludia, principalmente as viagens que elle proprio fizera com el-rei D. Pedro V. Depois, como aproveitando um relampago da sua felicissima memoria, recordou que eu tinha biographado Julio Diniz. Falou muito d'este mallogrado homem de lettras, perguntou-me se eu o havia tratado intimamente, e apreciou, com grande segurança de critica, os seus romances, acceitando a minha opinião de que Julio Diniz seguia principalmente no romance a escola ingleza.
E como eu, segundo a etiqueta, tivesse despido a luva da mão direita—o que Sampaio me advertira—el-rei, certamente por ter reconhecido que eu fumava, abriu a charuteira, e offereceu-me um charuto.
Inclinei-me agradecendo, mas recusando. E el-rei, sorrindo, observou-me:
—Não póde negar que fuma; nem eu. E fumo muito.
Conservando a charuteira aberta, insistiu no offerecimento.
Lembrei-me de repente d'aquella anecdota de lord Stairs, que acceitou uma vez ser o primeiro a entrar na carruagem de Luiz XIV, allegando que resistir ao offerecimento de um rei era descortezia imperdoavel.
Sorrindo, acceitei o charuto, mas como estivessemos{13} falando de escriptores portuenses, fingi-me distraído, não o accendi. Nem me era facil saber como havia de accendel-o. Eu não tinha phosphoros comigo, Sampaio não fumava; só o rei estava fumando.
Mas sua magestade, vendo que eu não accendia o charuto, offereceu-me lume.
Aqui, n'este lance, começou a minha tortura. Eu fumo desde os quinze annos desesperadamente—mas cigarro. O charuto estontea-me. Basta ás vezes o seu fumo para incommodar-me.
O leitor calcula pois a repugnancia molesta com que eu, acceitando o lume que el-rei me offerecia, accendi o charuto, que de mais a mais era fortissimo.
A fim de evitar que o charuto me estonteasse, deixei-o apagar a breve trecho, propositadamente. Mas el-rei, reparando que o meu charuto se havia apagado, tornou a offerecer-me lume. Felizmente, quando eu estava no apogeu da tortura, fôra el-rei avisado de que chegára o presidente do conselho de ministros, Fontes Pereira de Mello, e a audiencia terminou um pouco abruptamente com estas palavras de el-rei:
—Procure-me sempre que precisar de mim. Mas faça-o sem acanhamento.
Isto fez-me suppôr que el-rei havia attribuido a acanhamento o facto de eu ter deixado apagar o charuto.
Tive que esperar que o despacho terminasse. Á saida, Sampaio apresentou-me a Fontes Pereira de Mello, e aos seus collegas no ministerio. Uma vez entrados na carruagem, contei a Sampaio a historia do charuto, que elle ouviu rindo ás gargalhadas, e pedi-lhe licença para fumar um cigarro, a fim de restabelecer-me pelo systema homoepathico:—similia similibus curantur.
As minhas relações com el-rei D. Luiz dataram d'esse dia.
Depois d'isso voltei algumas vezes ao Paço para offerecer a el-rei um exemplar dos livros que ia publicando.
El-rei dizia-me invariavelmente:{14}
—Procure-me sempre que precisar de mim.
De uma das vezes contei-lhe a historia do charuto, el-rei riu expansivamente, e mandou-me fumar cigarro. Mas, porque estivesse fumando charuto, soprava ao fumo para o afastar.
Um dia... um dia tratava-se do pão quotidiano, do bem-estar da minha familia. Eu vegetava, havia dez annos, amarrado a um obscuro logar de amanuense. Muitas vezes, mas sempre baldadamente, havia procurado melhorar de situação. Iam reformar-se os serviços da camara dos pares; creavam-se logares de redactores. Mas as pretensões, e algumas d'ellas fortemente apadrinhadas, fervilhavam em torno de Fontes. Desejando um d'esses logares, mas não dispondo de influencia que pudesse dar-me probabilidades de ser attendido, lembrei-me do repetido offerecimento de el-rei.
Metti-me n'um trem, fui ao Paço. Cinco minutos depois era recebido por sua magestade, que me ouviu com a amavel benevolencia que sempre me dispensou. E, tendo-me ouvido, disse:
—Esteja certo de que eu vou pedir com o maximo empenho. Havemos de ir até onde pudermos. É muito justo que lhe dêem alguma folga aos seus incessantes trabalhos litterarios. Não se póde aguentar por muitos annos um trabalho d'esses.
No dia seguinte, ás duas horas da tarde, falei a Fontes Pertira de Mello, que, logo que me viu, me fez esta pergunta:
—Diga-me uma coisa: que empenho teve para el-rei?
Reconheci que sua magestade havia tratado immediatamente do meu pedido com a maior pressa e solicitude. Desde essa hora julguei-me despachado.
—O meu empenho, respondi eu a Fontes, vai decerto surprehender v. ex.ª
—Diga lá.
—O meu empenho... fui eu só.
Contei então a Fontes tudo quanto se passára.{15}
E Fontes limitou-se a dizer-me:
—El-rei tem o maior empenho no seu despacho.
Corri logo ao Paço da Ajuda a agradecer a el-rei. Sua magestade, apenas me viu, perguntou-me:
—Ha alguma novidade a respeito da sua pretensão?
—Não ha, meu senhor. É que eu venho agradecer a inexcedivel diligencia de vossa magestade. Acabo de falar com o presidente do conselho.
—Eu falei-lhe hontem mesmo.
Isto disse o rei, e mudou logo de assumpto.
Os jornaes propalavam boatos a respeito de nomeações para a camara dos pares. O meu nome nunca foi lembrado pelos jornaes. A politica interveio n'este negocio, como em todos: disse coisas falsissimas. Mas a minha pretensão triumphou, graças á protecção do rei.
Quando o despacho appareceu, e lh'o fui agradecer, el-rei dignou-se abraçar-me dizendo:
—Tenho hoje um dia de satisfação. Agora descance um pouco. Era justo. Era justo.
Eu senti lagrimas nos olhos; mas el-rei tambem não tinha os seus enxutos.
Desde então mantive com el-rei as mais gratas relações, não direi de amizade, mas de franqueza.
Entre os seus papeis ha de haver uma longa carta minha sobre assumptos que não eram pessoaes.
Ainda é cedo, porém, para fazer a historia d'essa carta. Ha quem conheça a carta, e possa contar a historia um dia, querendo.
A ultima vez que me demorei conversando com el-rei foi para lhe fazer o pedido de alguns brindes da familia real para um bazar de Setubal. El rei disse-me logo que pela sua parte podia considerar como satisfeito o meu pedido, mas que a rainha estava ainda invisivel, e que o principe real estava estudando as suas lições, motivo por que transmittiria á rainha e ao principe aquella solicitação.
N'essa mesma tarde parti para Setubal, e ao caír{16} da noite recebia eu n'aquella cidade um telegramma do sr. D. Pedro Arcos participando-me que tanto a rainha como o principe mandariam brindes para o bazar.
El-rei D. Luiz morreu, e a sua morte deixou no meu coração uma saudade indelevel pelo homem bom, pelo desvelado protector, que tanto me ajudou a desbravar o aspero caminho da vida. Se os bons são premiados além da campa, o rei de Portugal deve repousar no seio de Deus n'uma eternidade bem aventurada. Quanto á minha gratidão, será eterna, porque eu ensinarei a meu filho, para que elle o ensine á sua familia, que a tranquillidade do meu lar resultou de um acto magnanimo de el-rei D. Luiz I.
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