Читать книгу Historias Brazileiras - Alfredo d'Escragnolle Taunay Visconde de Taunay - Страница 6
CAPITULO II
ОглавлениеA primeira semana correo para Alberto alegre e animada. Desapparecêra de todo a febre, e elle se sentia como que retemperado pelo socego do retiro em que vivia.
De manhã muito cedo sahia para a caça e só voltava quando o sol ia alto e que o calor apertava, trazendo sempre pesada enfiada de passaros, uns notaveis pelo tamanho, outros pela plumagem.
A essa hora, Ierecê tinha por costume esperal-o com uma cestinha de fructas da terra, bananas, mamões e jaracatiás, ou outros mais incultos como o mureci dos cerrados, a marmelada do campo, a guabiroba ou a uvaia, que, apezar do sabor agreste agradão bastante ao paladar.
Apenas chegada a caça, a india a depennava com ésmero antes de entregal-a aos cuidados de Florindo que tomára a si o preparo da comida, no que mostrava algum talento bem que usasse, para os misteres da cozinha, da gordura geralmente empregada em Matto-Grosso: a graxa de boi.
Á tarde, depois de abundante e sã refeição, Alberto ia conversar com Morevi e tomar lições de lingoa chané, com cujas palavras mais notaveis procurava coordenar um ligeiro vocabulario.
Se, entretanto, o principiante mostrava alguns progressos, erão todos elles devidos ás indicações de Ierecê que se admirava muito dos esforços que aquelle branco empregava para vir a fallar como se fôra indio.
Ella parecia um tanto triste, indifferente sobretudo.
Na choupana ao lado, o avô continuava em suas praticas de devoção e vivia completamente estranho ao casal.
No fim da primeira semana de estada no Hetagati[10]—assim se chamava o lugar—foi o soldado Florindo despachado para a villa de Miranda, afim de, com a necessaria discrição, ir buscar alguns meios de conforto, fructos seccos, conservas, diversos córtes de fazendas e tudo quanto podesse ser de mais immediata necessidade para a estada e alguma demora n’aquelle local.
Entre os objectos encommendados, não forão esquecidas duas garrafas de agoardente de canna e varias braças de bom fumo goyano que erão destinadas ao complacente Morevi.
Com a chegada de uma peça de chita franceza, Ierecê deixou o trajo nacional e primitivo e cobrio o esbelto corpo de um vestidinho que Alberto deo-se ao trabalho de cortar e preparar, dirigindo o trabalho da costureira, tão desageitada em seus movimentos, quão impaciente por terminar e poder envergar aquella roupagem nova.
Não perdeo ella, com isso, em graça; pelo contrario, mais alta e vistosa parecia com a saia escorrida e a camisinha alva que lhe cahia dos hombros, repellida pela rebeldia dos seios.
Seo genio era a realisação fiel do que exprimia logo a physionomia: muita brandura, tristeza e alguma curiosidade.
A principio Ierecê considerára Alberto como um ente de natureza superior, a quem devia obediencia céga, emquanto lhe servisse de méro passatempo; depois foi-se possuindo de admiração e sobretudo reconhecimento ao vêl-o tão occupado de tudo quanto podesse lhe realçar a natural belleza ou agradar ao seu espirito.
Como ella se contemplava ao espelho, radiante de orgulho e alegria, quando aquelle portuguez[11], de fronte alva e espaçosa, lhe arranjava com singular paciencia os abundantes cabellos, formando caprichosos e sempre novos penteados?!
Como ouvia attenta, com os bellos olhos arregalados e a boquinha entre-aberta de admiração, as narrações, umas reaes, outras phantasticas que elle á tarde lhe contava, quando, deitados ambos sobre a relva diante da choupana, vião o sol se esconder por detraz da matta e a noute subir da terra para os céos?!
N’essa hora, tudo é tristeza para a alma que as sombras da natureza parece quererem tambem invadir. Entretanto era quando o coração de Ierecê pulsava com mais segurança e calma, embóra o pio aterrado da jaó acordasse melancolicos os échos da floresta, embóra o bacuráo atirasse aos ares as plangentes notas da aspera garganta.
A sua faceirice natural e innocente era ajudada por intelligencia vivida e pela delicadeza de instinctos: assim para logo desterrou do rosto e braços as pinturas que costumava traçar com urucú e genipapo; deixou de cuspinhar, como fazem a cada momento os indios e de comer rapida e vorazmente, empenhando-se emfim por merecer applauso pelo abandono prompto d’este ou d’aquelle habito menos conforme com o modo de viver civilisado.
Além d’isso, apenas foi avisada por Alberto, occultou com modestia os seios, trazendo sempre diante do peito um lenço preso á cintura por duas pontas e atado pelas outras ao pescoço.
O que era bom e poetico, ella conservava; assim, frequentemente entretecia capellas e collares de flores para os cabellos e braços e todos os dias renovava a elegante palma ou a folha de samambaia mimosa que, segura por delgado cordão, lhe acariciava a fronte como verdejante pennacho.
Em principio Ierecê a custo sahia do silencio: depois, observando a bondade com que a tratava Alberto, arriscou algumas palavras em chané, logo após em portuguez, e não tardou muito que ficasse garrula a mais não poder, papagueando o dia inteiro, ora em sua lingua, ora na outra, que ella entendia perfeitamente, por isso que fôra criada na aldêa do Bom Conselho, perto de Albuquerque, onde recebêra das mãos do missionario frei Marianno de Bagnaia as aguas do baptismo e o nome christão de Sylvana.
Das praticas e orações religiosas que aquelle virtuoso capuchinho lhe ensinára na aula de catechismo, só conservára o signal da cruz, symbolo que nunca deixava de fazer pela manhã ou á noute, quando ia se deitar.
Uma vez quebrada a barreira de constrangimento que a separava de Alberto, nasceo no espirito da india o desejo de tornar-se agradavel e bemquista. Então por uma combinação de cuidados graciosos e lembranças felizes, ora ornava o interior da choupana de flores e de festões de folhas, ora contava historias de sua tribu, n’um portuguez muito atravessado e custoso, ora trabalhava com afinco em tecer uma faixa com desenhos de variegadas côres para ser atada á cintura de quem a possuia, ora porfim mostrava-se repentinamente amuada para logo voltar ás boas com um excesso nunca visto de momices e caricias.
Não raras vezes, ao esperar o moço que voltava de suas excursões pela matta, occultava-se Ierecê por traz de alguma arvore possante e cahia de chofre sobre elle com o fim de assultal-o.
Erão então gargalhadas francas, sonoras, argentinas, como solta um peito que não sente cuidados.
Em começo, a india mal deixava os arredores da choupana, chegando quando muito até o ribeirão. Depois alongou os passeios, só com o fim de ir apanhar passaros que tivessem pennas mais formosas e brilhantes do que os que trazia o caçador. Com visgo natural que tirava da mangabeira para armar arapucas e com bagas de succo inebriante, conseguia ella agarral-os vivos, e voltava, então, pulando de contente deposital-os nas mãos de Alberto depois de ligar-lhes as azas ao corpo por meio de uma embira larga.
Era de vêr-se o seo ar de importancia e ufania, um arsinho seductor, irresistivel.
Se havia prazer em prender os mimosos volateis, maior, sem comparação possivel, experimentava ella quando Alberto lhe pedia a liberdade para os prisioneiros.
Soltal-os era uma festa que se fazia quasi sempre á tarde, com luz bastante para que os passarinhos podessem ir buscar os seus pousos de querencia. Ierecê os ia beijando com carinho, ao passal-os um por um a Alberto, que era quem desatava o cordel que lhes impedia o vôo.
O animalsinho disparava palpitante de medo com direcção á matta, e Ierecê seguia-o quanto podia com a vista, descansando, ao volver a cabeça, os olhos carregados de amor n’aquelle mancebo tão bondadoso para com todos os filhos da natureza.
Os dias correrão rapidos, e, bem que Alberto começasse a achar a vida que levava um tanto monotona, não podia eximir-se da satisfação suave que em todos produz a extrema quietação. Entretanto, ao observar os progressos da paixão que accendêra no peito da indigena, sem querer entristecia-se e procurava arredar da lembrança a necessidade de em breve dar fim áquella ligação passageira.
O amor de Ierecê era inventivo. Tudo quanto podesse sorrir ao espirito do moço, tratava ella, na medida de suas forças, de conseguir logo: plantas raras e curiosas, ou que lhe parecião tal; mineraes coloridos, conchas do rio e insectos, objectos emfim mais ou menos approximados pela côr e fórma a qualquer outro que Alberto houvesse fitado com mais attenção e que immediatamente a ella servia de typo para as amorosas pesquizas.
Então como se pagava de um olhar de agradecimento, de um sorriso, um gesto?! Seos olhos inquietos estudavão a impressão que a physionomia do mancebo lhe havia de denunciar.
As narrações que Alberto fazia da vida e dos esplendores do Rio de Janeiro excitavão-lhe vivamente a imaginação. A descripção do trajo das mulheres e da mudança continua das modas sobretudo a encantava de um modo singular.
—Ah! se eu tivesse tudo aquillo! disse ella uma vez com fundo suspiro.
—Você quer ir para lá? perguntou-lhe o moço.
—Nhôr-não: Ierecê ficava feia perto das portuguezas tão alvas e bonitas. Eu nasci para o matto. Depois na cidade minha gente morre toda de bexigas.
Florindo dava-se muito bem com a india: ella o ajudava no preparo da comida; ia buscar fogo; corria a encher no ribeirão a bilha d’agua; respigava para a cozinha gravetos bem seccos, tudo com tamanha espontaneidade que o soldado, apezar da fleugma natural, deixava-se levar a lhe querer muito bem, o que manifestava a Alberto, respeitando na mulher a posição do seu camarada.
—Ó vossa senhoria,[12] dizia elle, esta dona parece mesmo, com sua licença, filha de feiticeiro. Nunca vi uma creatura, com perdão da palavra, de melhores modos. Prende deveras o coração da gente.
Alberto Monteiro jamais se sentira, senão tão feliz, pelo menos tão calmo. Nada lhe perturbava a paz do espirito, e como a saúde voltára completa, vivia sem consciencia exacta do tempo que passava.
A paizagem que o cercava era restricta, mas amena. Densa cintura de matta virgem limitava logo o horizonte; em compensação, porém, os olhos erão obrigados a parar demoradamente nos grupos de buritys e taquarussús que acompanhavão o percurso do corrego e que mais se condensavão em torno de uma bacia larga e natural em que as agoas se espraiavão sobre um fundo de areias prateadas.
Ahi era o banho de Ierecê.
Ás vezes, alta noute, o velho Morevi rompia o silencio do valle com um canto lugubre, cortado de notas agúdas e desafinadas. Para essas barulhentas vigilias é que se trajava do modo em que o encontrára Alberto no dia de sua chegada a Hetagati: sáia toda enfeitada de lentejoulas, presa á cintura por um talim bordado a contas de côr e corpo riscado de urucú e genipapo. Os complementos de sua vestimenta sacerdotal erão um espanador grande de pennas de ema, ornado de desenhos caprichosos e um chocalho que sacudia pausadamente, ao passo que percorria, a avançar e recuar, um couro sem pello estendido diante da porta.
Erão as conferencias do feiticeiro com o acauan, especie de gavião pequeno que solta guinchos finos, accentuando as syllabas que lhe derão o nome—a-ca-uán—passaro agoureiro no dizer dos indios e com cujas consultas podem os padres descortinar o futuro.
De madrugada, o canto de Morevi soffria uma parada longa: de repente ouvia-se muito ao longe o grito do milhafre a que o velho respondia com voz de supplica afim de chamal-o para mais perto. Assim parecia acontecer. Os pios vinhão se tornando cada vez mais distinctos e afinal os ares estrugião com um estridente hymno de triumpho em que o rouquejar do velho casava-se com o vozear do passaro adivinho.
Ahi começavão as revelações.
Alberto, a principio, pela singularidade da cousa e pela perfeição com que era imitado o gritar do acauan, foi observar o velho e ouvir-lhe as descompassadas cantigas; entretanto, ao depois, ficava impaciente por ser interrompido no melhor do somno.
Ierecê, então, foi ter com o avô e taes argumentos empregou, apoiados em dadivas e promessas, que nunca mais aquella grita dissonante perturbou a tranquillidade das noutes. Se continuarão as consultas ao acauan, forão sem duvida feitas com toda a modestia em voz muito baixinha, para não incommodar o portuguez.
Em compensação, se, para socego dos ouvidos, calava-se Morevi, a netinha cantava melodias de sua nação, sempre no mesmo tom e com as mesmas notas, mas com voz tão suave e pura, que ouvil-a conciliava um somno doce e enervador. Ella cantava como cantão os passarinhos que para unica musica tem só duas ou tres modulações que Deos lhes poz na garganta para o seu passatempo... mas assim mesmo não agrada tanto ouvil-os?!
Quando Alberto lhe pedia alguma canção, Ierecê cheia de alegria, mas tolhida de vexame, principiava toda a corar e a empallidecer, balbuciando e murmurando: depois, firmava a voz e desprendia do peito notas repassadas de uma ternura indizivel e que vibravão como partidas das cordas do coração.
Era, com effeito, o pobre coração que estremecia e alçava preces de amor a quem o captivára.
Uma noute, o luar era brilhante: tudo resplandecia de luz branda e azulada.
A matta, ao redor, formava uma linha escura, e o ribeirão parecia desdobrar-se em laminas de prata. Pontos scintillantes corôavão a folhagem compacta das palmeiras, por entre cujos troncos a luz, coando vivamente, estendia pelo chão compridas sombras que semelhavão columnas derrubadas por terra.
Ierecê preparára uma sorpresa.
Fôra, de manhã, á aldêa do Agaxi convidar diversas indias kinikináos para virem passar a noute no Hetagati.
Á hora aprazada, chegarão de facto seis bellas raparigas, vestidas com a tradicional julata que lhes deixava descobertos os seios pequenos e empinados. O typo era o mesmo que o de Ierecê; mas esta, no meio das companheiras, parecia uma deusa cercada de nymphas. Tinha pórte mais altivo, physionomia mais expressiva e intelligente.
Alberto, ao vêr chegar o gentil bando, adiantou-se ao seu encontro.
A guaná o mostrou com orgulho, e, tomando pela mão a visitante que lhe pareceo mais bella, caminhou para o mancebo: então, entre risonha e medrosa, disse-lhe que d’ora avante se considerava vencida em formosura e cedia o seu lugar a quem mais o merecia.
A recusa immediata não mostrou offender a kinikináo e mais exaltou a alegria de Ierecê.
Um dos caracteristicos das raças selvaticas é estarem os seus individuos sempre dispostos para comer. Foi por isso que, havendo Florindo sido avisado de antemão e preparado lauta refeição de porco do matto, palmito amargoso e pirão de milho, poderão as recem-chegadas sem demora satisfazer a sofreguidão do appetite.
Acabada a ceia, forão todas ao corrego e banharão-se com grande e festivo ruido.
Já então havia Ierecê espalhado diante da choupana uma ramagem fresca e odorifera, sobre a qual estendeu um panno alvo, afim que Alberto se deitasse, e mais a gosto podesse assistir aos dansados que ella e as companheiras ião executar.
Morevi deo o signal batendo n’um tambor de pelle de anta e entoou uma canção de andamento vivo.
Ao ouvirem as primeiras pancadas, as indias se puzerão em linha e n’essa disposição avançárão e recuárão diversas vezes com passo fingidamente tropego: depois, soltando as mãos, compozerão varias figuras ou em grupos de tres, ou correndo em circulo umas atraz das outras, antes de reformarem a linha primitiva. De vez em quando uma d’ellas parava e unia a sua voz á do rouquenho cantor para animar o dansado que se accelerava e mais calor e vivacidade tomava com os gestos elegantes e posições voluptuosas, quasi lubricas, das bailarinas.
Depois da dansa, cantarão todas juntas um côro, que peccava, não pelo afinado das vozes, mas pela falta absoluta de variedade, razão pela qual Florindo observou com graça que aquella musica havia de agradar muito quando a gente estivesse a dormir.
Á hora em que o cruzeiro vai virando no céo, Ierecê deo por finda a funcção.
Alberto se distrahira mediocremente, mas julgou caso de polidez e justa condescendencia mostrar-se plenamente satisfeito e divertido.
Quem não cabia em si de contente era a guaná. Sem contestação dansára com mais graça do que as outras, provocando sempre os applausos do branco, cujos sentimentos de delicadeza começava a comprehender e a partilhar, tanto assim que não deixou ninguem vir dormir na sua choupana e foi levar as visitantes a fazerem companhia pelo resto da noute ao velho Morevi.
Este não teve remedio senão ceder lugar ás jovens kinikináos e, puxando para fóra o couro que lhe servia de leito, dormio sem mais ceremonia ao relento.
De manhã, antes que o sol rompesse, retirárão-se as indias, levando os presentes que mais podião lhes agradar: sal, chitas, espelhos, contas, agulhas, e os restos do banquete da vespera.
Ierecê foi acompanhal-as até certo ponto do caminho, mas não quiz chegar até a aldêa.
No entretanto os dias e as semanas havião passado, e Alberto não dava mostras de perceber isso.
—Sabe V. S., perguntou-lhe um dia Florindo, quanto tempo faz que estamos aqui?
—Talvez um mez, não é?
—Já lá vão dous, rectificou o soldado.
Foi com verdadeiro espanto que Alberto verificou ser exacta a conta.
—Mas então, disse elle, Julio Freitas ha muito deve estar de volta!... Como é que não appareceo por cá?
—É que o Sr. capitão frechou direitinho de Nioac para Miranda pelo Lalima. Fazia V. S. na cidade e foi para lá em rumo certo.
—Então de Nioac ha outro caminho que não este?
—De Nioac, nhôr-não. Da Forquilha, dez legoas mais arriba. Ahi ha uma estrada que vai de parelha com o rio Miranda.
—O que você diz é certo. Julio Freitas deve estar á minha espera. É preciso que eu chegue até a villa. Amanhã.... talvez....
No dia seguinte o projecto de partida não se realisou.
—Não irei eu mesmo, disse Alberto para o soldado. Você é quem seguirá para Miranda montado no meu animal. Entenda-se com o Sr. capitão, diga-lhe que estou de saúde e peça que, se poder, dê uma chegada até cá. Se não, eu lá estarei n’estes dias proximos.
O camarada, á noutinha, preparou uma passóca para a viagem.
—Quem é que vai embóra? perguntou-lhe Ierecê vendo-o occupado n’aquelle mister.
—Eu, respondeo Florindo, tenho que dar um pulo até a cidade.
A india ficou sobresaltada; muitas vezes fez a mesma pergunta e ouvio a mesma resposta.
Sem saber ainda pelo que, o seu coração se apertava de tristeza e um presentimento doloroso agitava-lhe a alma.
Tambem mal poude dormir e, abrazada de insolita agitação, debalde foi por vezes pedir ás agoas do corrego refrigerio para o calor e o mal estar que não lhe permittião quietação.
Uma cousa impedio a partida de Florindo: foi o apparecimento matutino de Julio Freitas a cavallo, acompanhado de um morador da villa.
Elle deo grandes brados ao avistar Alberto.
—Então, Sr. anachoreta das duzias, escondido n’este lindo retiro e os outros com cuidados de sua pessoinha!
Os dous amigos se abraçárão affectuosamente.
—Quando cheguei a Miranda, disse Julio, ha quasi uma semana, fiquei pasmo de não encontrar a você. Pedi noticias suas, não m’as souberão dar.... Então suspeitei que podesse ter dado fundo na aldêa dos kinikináos e vim em pessoa arrancal-o, morto ou vivo, de seus estudos anthropologicos..... E as febres?
—Ha muito que já se forão....
—Mas tudo aqui é lindo! exclamou o recem-chegado com expansão. Que soberbos boritys! Você é um verdadeiro artista. Emquanto eu corria campos batidos de um sol abrazador e caminhava sem tregoa, sua senhoria, deitado á sombra dos taquarussús, deixava o tempo correr mansamente como as aguas d’aquelle bello corrego! Não ha vida melhor. Que diz, Sr. João Faustino? Ah! deixe lhe dar o conhecimento d’este amigo de Miranda. É um morador da villa, pessoa que estimo muito e que conheço desde Cuyabá.
Alberto apertou a mão do apresentado, homem de meia idade, rosto moreno, physionomia amena e franca.
—O Sr. Faustino, continuou Julio, acompanhou-me até cá, porque vem contractar uns indios para irem trabalhar na sua fazenda do Rodrigo. É um optimo companheiro para a folia e para o perigo, homem com quem se póde contar.
Quando ao almoço Alberto apresentou Ierecê ao seu amigo e a João Faustino, estes não poderão occultar a admiração que lhes causava a venustade da india.
—É uma bella mulher! murmurou Julio a meia voz. Palavra de honra, Alberto teve faro.
—Você é da aldêa? perguntou Faustino a Ierecê em lingua chané que elle fallava com perfeição.
—Não, respondeo ella, sou de Albuquerque: desde que estou aqui, os paratudos[13] já derão flôr cinco vezes.
Se a india produzio aquella impressão de sorpresa, homenagem inequivoca á sua formosura, por seu turno recebeo um choque immenso. De momento percebeo que aquelles homens vinhão lhe roubar o ente a quem ella prezava n’este mundo só, acima de tudo.
Poz-se attenta a ouvir a conversa, e qualquer duvida ainda possivel, qualquer esperança que podesse affagar, fugio-lhe para logo do espirito.
—Então, Alberto, dizia Julio Freitas, a sua vida tem sido um paraiso....
—Passei bem...
—Pois, meu amigo, não ha bem que não se acabe. N’estes dias devemos todos partir de Miranda. Não sei se você quer ficar.... Ah! a proposito, trago-lhe uma carta do Rio de Janeiro.... Quer vêr que a perdi!... Não; está aqui: fui pescal-a na mala que por acaso chegou de Cuyabá, de modo que a data não póde ser muito antiga.
Alberto abrio a carta que lhe passára o amigo, e uma nuvem correo-lhe pelo rosto.
—Tenho más noticias, disse elle, dos meus negocios na Côrte. O banqueiro em que tenho algum dinheiro está, pelo que me escrevem, um tanto abalado...
—Com mil bombas! exclamou Julio, o caso não é de brinquedo! A sua presença é indispensavel e quanto antes...
—Sim, concordou Alberto distrahidamente, preciso partir.
Ierecê ouvira tudo com rosto impassivel, mas dentro d’alma parecia-lhe que a sua hora de morrer vinha chegando.
Durante o dia Alberto, com algum constrangimento, confessou a Julio Freitas e a João Faustino que sentia bastante desgosto, quasi remorsos, em deixar Ierecê. Leval-a, era impossivel, elle bem via, mas tambem abandonal-a de chofre...
—Entretanto, objectou Freitas com algum calor, você não póde ficar aqui anniquilado!... Fôra quasi um crime!...
—De certo, porém...
—São cousas que acontecem todo os dias... Demorar a resolução é que é máo...
—Depois, ponderou João Faustino, convém lembrar-se que os indios esquecem depressa. Ierecê poderá ficar sentida uma semana, duas, se tanto; depois consolar-se-ha... é...
—É a lei universal, concluio philosophicamente Julio Freitas.
Alberto nada replicou.
—Se eu tivesse, disse elle por fim, ao menos alguem que olhasse para esta pobre creatura, lhe désse de vez em quando alguma cousa para a sua subsistencia...
—Pois aqui está o João Faustino, respondeu Freitas. Ninguem melhor do que elle se incumbirá de tudo...
—E com a maior satisfação, confirmou o outro. Estou completamente ao seu dispor para tudo quanto fôr do seu serviço....
—Obrigado... agradeço a sua boa vontade e aceito os seus offerecimentos sinceros... Sobre o mais, conversaremos com vagar em Miranda.
—Em todo o caso, annunciou Julio Freitas, volto amanhã para a villa. No fim de poucos dias parte de lá o vapor, e não podemos perder uma occasião d’essas...
—Pois bem, concordou Alberto, partão vocês, eu ficarei mais uns dias, e no domingo estarei em Miranda.
—Sem falta? perguntou João Faustino sorrindo-se.
—Infallivelmente...
—Veja se vai perder o vapor... depois não teria outro remedio senão descer em igarité para Corumbá... viagem vagarosa e massante....
—Não... eu partirei no Alpha, afiançou Alberto.
De manhã Julio de Freitas e Faustino se despedirão.
Ierecê mostrou-se completamente alheia áquellas novidades, mas, quando vio os visitantes partidos, olhou para Alberto com tamanha angustia, tanta expressão que este ficou todo perturbado.
—Que tem você? perguntou elle.
—Nada, respondeu a india...
—Você está doente?
—O corpo não está, mas isto está ficando...
E apontou para o coração, accrescentando.
—E para sempre.
Depois tornou-se silenciosa.
Á hora da refeição recusou comer e com a approximação da tarde tornou-se muito agitada. Ia e vinha do corrego para a choupana a passo lento e com o ar de completa distracção. Debalde Alberto procurou gracejar com ella: nem se quer um sorriso melancolico desdobrou-lhe os labios contrahidos. Tinha os olhos seccos e brilhantes.
A noute não lhe trouxe lenitivo: pelo contrario mais augmentou-lhe o desassocego: por vezes sahio para fóra da palhoça e respirou sofrega o ar frio da madrugada.
Havia um luar tristonho de mingoante: o valle estava frôxamente illuminado e ao longe ouvião-se os quero-queros que gritavão nas matas do Aquidauána.
O coração de Ierecê confrangeo-se ainda mais. A certeza de que uma grande desgraça estava imminente sobre a sua cabeça a acabrunhava.
Voltou para a choupana e parou perto da rede em que dormia Alberto.
Ahi ficou por largo tempo perplexa; depois tocou levemente no hombro do moço e acordou-o.
—Então, disse ella, unái[14] vai-se embóra?
Sua voz era tão fraca que mal se ouvia no silencio da noute, e entretanto quanto esforço assim mesmo lhe custára essa pergunta!
—Preciso partir, Ierecê, respondeu-lhe Alberto sentando-se na rede.
—Forão aquelles homens máos que vierão buscar unái.
—Não. Eu devia mesmo ir para o Rio.
—E que será de Ierecê?
Alberto não poude de prompto acudir á interrogação.
Estava vacillante.
—Ierecê, disse a final, ficará aqui. Hade sempre se lembrar de mim. Deixo ordem a João Faustino para que o seu avô tenha dinheiro e roupa....