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III

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«Porquê?—perguntára o Emygdio. Porque razão os despresava a Pillar, ella que os tinha amado tão ardentemente, que fundira a amizade pela prima e o amôr pelo noivo em tão intima communhão, que não sabia bem como destrinçar qual occupava maior e melhor logar em sua alma?!...

Presentia que os seus sonhos de grandeza desabavam, que toda a sua ambição de subir baqueava ante aquelle estupido amôr que o enlouquecêra. Amar a Candida—que loucura!... Como fôra que isso se lhe mettêra em cabeça? Como se deixára vencer pelo capricho d’uma rapariga leviana, enlear ingenuamente n’uma intriga perigosa, quando se julgava superior a bagatellas de sentimento?!...

—«Oh que estupido—que estupido e que fraco!—dizia a meia voz, levando os punhos á fronte na ansia de arrancar do cerebro aquella ideia mortificante.

Dava-se uma situação d’estas quando já se via formado, quando apenas esperava que a noiva completasse os vinte e um annos para encetar a vida de prazeres que de criança vinha ambicionando com tão feroz egoismo! Quando o triumpho lhe estava assegurado é que esbarrára n’esse escolho imprevisto—a paixão por uma rapariga pobre.

Que ironia da sorte! E não poder fugir ao imperio que a belleza material da Candida exercia despoticamente sobre o seu organismo, mortificava-o, por deprimente para o seu orgulho de forte. Elle, que unicamente amára o seu sonho de grandeza, vergára todo inteiro ao primeiro olhar em que essa soberba mulher o envolvêra.

Soffria no cachoar de paixões, em que se sentia tão outro; escravo d’um sentimento imprevisto, quem fôra sempre tão senhor dos seus desejos, quem soubera guiar os seus mais insignificantes actos com a pericia e sangue frio d’um habil sportman guiando os cavallos de fina raça por entre o turbilhão da multidão que se acotovella. Parecia-lhe uma illusão da sua cabeça enfebrecida; nem comprehendia como isso lhe viera só agora, tendo conhecido a Candida desde pequena.

Não comprehendia, mas o problema era de facil solução. Criados juntos, era verdade, mas affastados moralmente como se os separassem milhares de leguas, tinham-se visto sem se vêr, empolgados um e outro pelos seus aureos devaneios.

Quando o João partira para a Belgica, n’um subito desejo de sérios estudos, sem ter manifestado á prima a mais leve sombra sequer de amoroso interesse, teve ella uma decepção fundissima. O seu orgulho de mulher bonita fê-la sentir, como um insulto, a indifferença d’um homem que tinha desejado conquistar. Julgou-se victima de injustificavel perseguição do destino e o seu fundo invejoso de egoista azedou se mais ainda.

Despresára o Emygdio, achára o vulgar e desageitado; quando a prima lhe confessára o seu amôr, tivera mesmo um mordente risinho de troça, mas agora que o via com uma posição bastante para a tirar da dependencia que a torturava, embora para viver modestamente, começára a notar que não era de todo feio aquelle solido rapaz de hombros largos, cabeça loira e rosto imberbe e rosado, agora, desde que ganhava dinheiro, sempre enfiado em collarinhos da ultima moda e gravatas espectaculosas. Convenceu-se de que o casamento da Pillar seria mais uma injustiça revoltante. Era um medico, afinal! Não teria sido melhor ter pensado antes n’elle do que no João?...

Desde que esta ideia se lhe fixára na cabeça, foi d’uma provocante e tenaz amabilidade, dando-se um ar quasi ingenuo de fraternal carinho, a que o rapaz não soube resistir. Conhecia pouco a vida para se poder esquivar ao dominio d’uma formosa mulher que ia ao seu encontro, o requestava quasi.

Conquistado, julgou-se conquistador—o que o envaideceu e lhe fez perder o sangue frio.

—«Talvez fosse ella quem lh’o dissesse—pensava o rapaz passeando inquieto pelo quarto onde se encontrára com a Candida.

Mas não fôra. Não estimava por certo a prima, odiava a mais do que a estimava, mas tinha habilidade bastante para não comprometter o presente sem ter a certeza do futuro. Ora a certeza de que o Emygdio se resolvesse a desmanchar o auspicioso casamento que tinha contractado, para a tomar como esposa, não a tinha; porque, se em conversas de amôr o achava de uma eloquencia de que até o julgára incapaz, logo que se tratasse de interesses e de futuro encontrava-o d’uma frialdade e d’um mutismo muito para desconfiar. Se não era d’uma intelligencia excepcional, era bastante fina para comprehender até onde chegava o dominio exercido sobre os seus adoradores—o que de resto não é prova de talento, antes de preoccupação mesquinha de quem se occupa sómente com a sua pessoa e funda as mais caras esperanças no agrado dos outros.

Não fôra pois ella, mas um simples acaso que tudo revelára á Pillar.

Uma noite já fria do ultimo outomno, acordára altas horas, muito contra o costume dos seus bons somnos de saudavel e feliz. Voltara-se na cama, aconchegando a roupa, enterrando mais a cabeça na almofada macia, mas uma pallida claridade que vinha do quarto de vestir sobresaltou-a pelo inesperado. Abriu muito os olhos para se convencer de que não sonhava, sentou-se na cama e chamou a prima. Como lhe não respondesse, chamou mais alto, n’uma voz entrecortada de sobresalto, e só ouviu o bater do proprio coração de encontro ás paredes do peito.

Não sabendo como explicar somno tão pesado em quem de ordinario pouco dormia, saltou ao chão e foi á cama acordá-la. A cama estava vazia.

Não poderia explicar o que pensou, porque ha momentos em que o instincto, de ordinario emudecido pelas conveniencias, pela educação e pelo sentimento, se insurge, apodera-se de todo o nosso ser animal, impelle-nos com a força bruta da natureza que se vinga, para a frente, para a verdade, para o abysmo muitas vezes...

Correu ao quarto de vestir e viu que a claridade que tanto a intrigára era a do luar que entrava a jorros por essa mesma porta de vidros a que o Emygdio ora se encostava, e era sahida para o jardim.

Um ligeiro sussurrar de vozes veio morrer ao seu ouvido sobreexcitado.

Estaria a Candida no jardim? E com quem?

Perguntava a si mesma, sem poder adivinhar a resposta... Talvez que n’esse rapido instante de incerteza ella presentisse o derruir de todos os sonhos de ventura, architectados com tão amoroso enthusiasmo, talvez...

Abriu a porta de vidros mal encostada, com a cautella, o susto de quem pratica o primeiro crime, e, de subito, encostou-se á hombreira para não cahir, e alli ficou por instantes, trémula, tiritante, como assombrada.

Viu-os de costas, affastarem-se enlaçados; ouviu a voz, que sempre aos seus ouvidos tinha chegado como symbolo do amôr e da verdade, murmurar blandicias aos ouvidos de outra mulher; toda a vida se lhe concentrou nos olhos e nos ouvidos, que n’esse esforço de vontade adquiriram uma acuidade suprema.

Conhecia-os bem; a imagem d’elle, principalmente, estava gravada tão funda na sua retina de apaixonada, que o reconheceria logo, ainda mesmo que o som das suas vozes não lhe viesse bater no ouvido como enxadadas de coveiro que lhe estivesse abrindo a cova sob os olhos apavorados.

A decepção foi d’uma surpresa tão triturante, tão esmagadora, que para alli se ficou como empedrada, encostando-se á parede branca de cal, como ella immovel e livida. Envolta em luar, a cabeça descahida, a bocca entreaberta n’um estorcer de angustioso espasmo, apenas vestida pela camisa fluctuante que só lhe descobria os pés nús, as mãos finas e a cabeça que a surpresa desvairava—era a verdadeira encarnação do desespero.

Voltavam; já as vozes se aproximavam, n’um murmurio que se confundia com o tremor das folhas emurchecidas que se desprendiam das arvores que o outomno amarellecêra e com o cahir da agua nos tanques.

A Pillar estremeceu; voltar para traz, esconder-se, fugir, foi o pensamento que a assaltou, logo seguido de outro, de muitos outros, d’um tumultuar de desejos desencontrados, que a deixavam indecisa, esbogalhando os olhos para a mancha empastada das arvores onde os dois se escondiam.

A noite muito clara, n’uma cheia de luar, estava fria, d’essa algidez penetrante que dá a proximidade das montanhas coroadas de neve.

Um estremecimento prolongado e doloroso lhe sacudiu o corpo. O sangue batia-lhe na cabeça e punha-lhe nos ouvidos uma zoeira de atordoamento, cascalhavam os dentes uns contra os outros, todo o seu fragil organismo se debatia n’uma crise de nervos assustadora.

Teve medo de morrer alli, e sob o esforço, pela pressão violenta da propria dôr, conseguiu entrar e fechar a porta como a encontrára, e depois, aos solavancos, desequilibrando-se, esbarrando nos moveis, chegou á cama onde se metteu mais por habito do que pelo claro juizo do que fazia.

Quando a Candida recolheu já não estava em estado de a sentir; e ella, nada ouvindo de anormal, julgou que mais uma vez a aventura passaria despercebida.

De manhã a febre era intensa e o delirio hallucinado. O dr. Ramalho e o Vilhegas, chamados a pressa, olharam se preoccupados, n’uma clara demonstração de desânimo. Ambos os pulmões estavam atacados e a pleuresia manifestava-se com a violencia d’aquellas de que só um prodigio póde salvar a doente.

Salvaram-na com effeito, á força de cuidados e desvelos; como que a arrancaram á morte, n’uma lucta braço a braço travada.

O Vilhegas foi o mais cuidadoso enfermeiro, não se deitando, não comendo senão de pé ao canto d’uma meza, alli mesmo no quarto de vestir.

A Candida, presentindo que a doença era mortal, teve um momento de orgulhoso triumpho, mas calára-se, fingindo esquecer o Emygdio, affectando um enorme interesse pela doente. Não queria escutar os tios que a mandavam repousar e despresava os conselhos que a velha Engracia lhe dava, n’um modo arreliento de desconfiança.

—«Não, minha tia, não me obrigue a desobedecer-lhe—porque eu não deixo a Pillar, dizia, abraçando a pobre mãe lavada em lagrimas de reconhecimento.

Não a deixava de facto, nem de dia nem de noite, como expiando a morte bemfeitora que lhe arredaria aquelle unico estorvo ao seu sonho supremo.

Mas a morte foi vencida d’esta vez.

Quando o dr. Ramalho e o Vilhegas participaram aos paes que o grande perigo passára, elles não souberam senão chorar, tão verdade é ser o grande contentamento quasi doloroso pela intensidade do sentir.

Começou a melhorar devagarinho, n’um ateamento de vida que vem aos poucos, preenchendo as lacunas da memoria; mas á proporção que a luz se fazia no cerebro abalado da doente, um desespero sem nome se lhe ia pintando no rosto. Os olhos tinham uma expressão de desvairamento quando se fixavam na prima e no Emygdio pelos quaes manifestára uma subita aversão, que parecia desolá-los. Só os consentia no quarto, quando de todo não encontrava pretexto para os affastar. A Candida, principalmente, causava-lhe uma irritação profunda, que roçava pela repugnancia.

Os nervos, n’aquelle organismo depauperado pela doença, tornaram-se senhores absolutos e d’uma susceptibilidade que lhe chamava lagrimas aos olhos a cada momento.

Infantil por vezes, muito tolerante para os paes e para a velha Engracia que a acompanhava sempre como pessoa da familia, que quasi já o era pela quantidade d’annos que servia a casa, deixava que a boa velha a entretivesse como em criança a contar historias, visto que o dr. Ramalho a prohibira de todo o trabalho intellectual—nada que a emocionasse!...

—«Conta lá, Engracia—dizia a sorrir vagamente, os olhos esquecidos a fixar qualquer coisa—conta aquella historia d’uma princeza que morreu d’amôr...

—«Ora, ora! Sempre a mesma não tem graça, menina! Agora hade ser a do «Bernal Francez».

—«Pois sim, a que tu quizeres...—No fim do rimance, que a velha entoava com modalidades de voz apropriadas:

—«Filhos que d’ella tiveres

Ensina-lhe melhor que a mi.

Que se não percam por homens,

Como eu me perdi por ti...»

Ella sorria ainda, com o mesmo vago sorriso e o mesmo olhar fixo, enternecidos de tantissima tristeza...

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