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A FEITICEIRA

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«La peur qui met dans les chemins

Des personnages surhumains

La peur aux invisibles mains qui revet l'arbre

D'une carcasse ou d'un linceul

Qui fait trembler comme un aïeul

Et qui vous rend, quand on est seul,

Blanc comme un marbre.»

MAURICE ROLLINAT.

De todos os rapazes da aldeia era o Manoel da Clara o mais querido das raparigas.

Fôra sempre um belo rapaz de afugentar rivais, mas, desde que viera da tropa e de lá trouxera aquelle ar desdenhoso de feliz D. João, aprendido no convivio dos camaradas presunçósos e mulheres de vida airada, parece que as enlouquecia.

Acostumado a ajustar a farda, como apertava bem a cinta de lã preta ou carmezim, que parecia trazer espartilho, o démo do rapaz!{38}

Os sapatos com o lustro bem puxado, que pareciam de verniz; o chapéo garbosamente descahido sobre a esquerda; a ponta do cigarro atraz da orelha; e o lenço, com flôres e uma legenda bordadas a côres vivas, a sahir da pequena algibeira da jaqueta, as mais das vezes levada ao hombro; o Manoel era na verdade a nata da rapaziada do logar.

No meio dos outros, com as suas caras rapadas de lôrpas, valentes mas sem a elegancia dos gestos disciplinados pelo exercicio regular, o seu pequeno bigode de cidadão retorcia-se aos domingos com uma petulancia irresistivel.

Nas feiras e romarias, firmado no varapau metido debaixo do braço, toda a vaidade satisfeita a brilhar-lhe nos inquietos olhitos garços, desafiava toda a concorrencia desagradavel. Ás raparigas iam-se-lhes os olhos nelle, e mediam-se com o rancôr de rivalidades latentes.

E valentão!?—como aquilo poucos! E, como sempre, era a superioridade material da força e da coragem o que mais o fazia valer aos olhos de primitivas femeas, oferecendo-se orgulhosamente ao vencedor, ao macho forte e soberbo.

Quando o Manoel, com um rapido piparote atirava para a nuca o chapéo móle de largas{39} abas, dava um passo atraz, fazia girar o varapau em sarilho sobre a cabeça, e torcia a bôca espumante num esgare de raiva... podiam fugir delle!

Contavam-se na aldeia as valentias do Manoel com o mesmo entusiasmo e ufanía com que se contariam as de um heroi da historia, um heroi autêntico, de que a tradição nos deixasse o nome e a memoria de largos feitos.

Uma vez era todo o povo de Infias que se juntara para o desafiar, raivosos por uma questão de mulheres de que o Manoel era afortunado protogonista, e que elle enfiara pela serra abaixo—que até parecia que o vento os levava.

«Ó Manoel, lembras-te?...

«E daquella vez na romaria da Senhora dos Verdes?...

«E na feira, quando foi da compra dos meus bois?!...

As perguntas, as respostas, as diferentes versões e comentarios, envolviam o Manoel num côro de louvôres, que elle recebia mal disfarçando a vaidade num meio sorriso modesto emquanto ia enrolando o cigarro entre os dedos fortes onde brilhava um anel de cobra, o encanto e a inveja dos mais rapazes.{40}

No jogo da bola, ao domingo, no terreiro da igreja, nenhum o excedia, como ninguem era capaz de o vencer numa partida de chinquilho ou no jogo do pau. Um valentão, um rapaz ás direitas, sempre pronto a fazer um favôr, riso franco, coração nas mãos para os amigos; ninguem emfim mais digno da estima dos seus patricios e ninguem que de facto fosse mais estimado do que o Manoel da Clara.

Álêm de todos estes merecimentos fisicos, que o superiorisavam, ainda era senhor de algumas belgas, e unico herdeiro da meação da mãe, a viuva do Rezadeira, que ajuntara o seu peculiosito na casa dos fidalgos. E era uma mulher de trabalho, a velha Clara do Rezadeira, que só tinha olhos e coração para o filho, o seu enlevo e orgulho. Primeiro do que ninguem, como o galo da manhã, saltava da cama, onde a asfixia dum coração emperrado mal a deixava socegar, e começava a labuta de todos os dias: amassando o pão, chegando ao forno a prevenir a forneira, cosinhando a vianda para os cevados, chamando a gente para o trabalho, despachando serviço, ralhando com um, combinando com outro, e sem nunca perder de vista a panela onde se cosiam as batatas para o caldo verde que o seu Manoel havia de comer antes de sahir,{41} na sua tigela bem meada de brôa. Mal elle aparecia, ainda espreguiçando-se e os olhos mal abertos mas já risonho e feliz como soberano que se julga crédor de todos os afétos e homenagens, a vélhota aprontava tudo num ápice, rindo e ralhando num visivel contentamento de quem se revia no rapagão, que era o seu filho.

É claro que não havia rapariga na aldeia e arredores á qual não agradasse a ideia de poder vir a sêr a mulher estimada do Manoel, a senhora do seu coração e do rico bragal de linho que a velha mãe guardava avaramente nos grandes arcazes de madeira de fóra, grossamente chapeados de ferro.

Elle ria-se com todas, o patife, querendo gosar o mais possivel a sua situação de desejado, sem até ahi mostrar preferencias comprometedoras por nenhuma.

Mas, entre todas, havia duas que nos últimos tempos mais preocupavam o Manoel, com grande contentamento da mãe que ansiava por o vêr casado com rapariga que fosse do seu calhar:—só assim morreria descansada, pois uma cabeça alevantada como a delle precisava bem do arrimo duma bôa mulher de trabalho.

Por felicidade, as duas raparigas que o Manoel trazia debaixo de vista agradavam{42} por igual á velha Clara—assim tinha liberdade para á vontade consultar o coração.

Uma, Maria Tereza—a Terezinha, como lhe chamava quando acertava de a topar no seu caminho—era afilhada da fidalga e lá pelo palacio se tinha criado com mimos e delicadezas que as outras não conheciam. Era com uma graça toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubecia como romã bem madura quando elle a fitava de frente, bem de frente, como fazia ás mais, sem conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas fazê-las explodir em jocundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado dava um realce de elegancia exotica ao seu corpo delgado de anemica, flôr tristemente desabrochada entre paredes sombrias e velhas coisas impregnadas da melancolia dos tempos passados. Como era a unica que na terra sabia lêr, eram tambem os seus os unicos olhos que na missa se não levantavam do livro para andarem em leilão pela igreja á procura dos rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não perdiam o grupo buliçoso da raparigada.

A madrinha queria-lhe muito, era o que todos afirmavam, e se não tivesse morrido nem a Terezinha sahia do palacio, onde era respeitada como filha da casa, e, talvez, se a morte não fosse repentina, tivesse ficado{43} senhora daquella fortuna, quem sabe!?... Tem-se visto coisas mais raras. E melhor teria sido para a terra, pois a casa dos fidalgos, que fôra sempre abrigo de miseraveis como consolação de desgraçados, mal a senhora morgada fechara os olhos fechara-se tambem á pobreza, com uma crueldade que revoltava toda a gente.

Os herdeiros, uns primos em último gráu legal, souberam da sua morte sem testamento e acorreram de Lisbôa em marchas forçadas. Mas, tudo liquidado á pressa, apartaram gulosamente, para figurarem nos salões da capital, as preciosidades que enchiam e decoravam o velho solar. Durante alguns dias não se ouviu senão o martelar dos carpinteiros fazendo e pregando caixotes e não se via senão a moderna condessinha, muito prática em antiqualhas preciosas, abrir portas e armarios, percorrer os salões e os sotãos, dar volta ás paredes e ás bojudas cómodas de floreados embutidos, que seguiram com os candelabros, as joias, os quadros e os Sèvres ricos como os incontaveis Chinas para o sorvedoiro de Lisbôa. Depois, mal o Conde, com o seu ar mais chic de fadiga, deu por terminadas as contas e entregues as propriedades ao feitôr trazido das lezirias ribatejanas como pessôa de inteira confiança, fugiram atemorizados{44} pela tristeza pesada e humida que resumbrava o casarão quasi deshabitado havia anos, desde que a fidalga se tolhêra de todo e passava os dias nos aposentos mais ensoalhados onde fizera a sua habitação e a da Terezinha, que lhe lia os autôres predilétos e a arrastava na cadeira de rodas pelas ruas ensombradas pelos buxos seculares do jardim.

Verdade seja que a Senhora Condessa, sabendo o amôr que a velha prima dedicava á afilhada e a docilidade e o desinteresse com que ella a servira e cuidara até ao fim, ofereceu-lhe o logar de sua criada de quarto e obrigou o marido a pôr em seu nome algumas propriedades arredadas ou a arbitrar-lhe o seu valôr em dinheiro, coisa duns cem mil réis, para os seus alfinetes, o que a tornaria na aldeia uma pequena morgada.

A Terezinha agradeceu cheia de reconhecimento a generosa munificencia da condessinha, a quem serviu, como ella nunca fôra servida, até á última hora que se demorou no palacio. Depois, quando se viu fóra do ninho onde a sua alma se emplumara e o seu corpinho debil de criança pobre crescêra e se tornara de mulher perfeita, sentiu-se como que isolada num vasto campo deserto.

Mas, séria e ponderada como era, tomou logo a mais acertada resolução: indo viver{45} com a tia, a Zéfa do Padre, uma que fazia belos dôces e fôra por muitos anos ama do velho abade. E para encher os dias, tão longos agora quanto lhe pareciam pequenos dantes a rodear de cuidados a madrinha paralitica, metêra-se a tecedeira. Em breve era a melhor, sem favôr, que havia na terra.

O seu tear, no monotono bater do pedal e correr da lançadeira, só parava aos domingos e algumas horas da noite.

Aquella vida de reclusão mais lhe amaciava a pele e dava um tom ligeiramente empalidecido ás suas feições miudas.

—«Mas era alegre dantes!... Agora, dês que o Manél da Clara veiu de soldado e entrou de atentar nella, é que de mais em mais se vai definhando, que nem já parece a mesma. Louvado seja Deus, que só trabalhos e desgostos me chegam pró fim da vida.

Dizia isto a Zéfa do Padre á Gertrudes Zarôlha, velha conhecida dos longinquos tempos da mocidade, assentadas á porta, com a roca á cinta e o fuso girando e torcendo o linho cuspinhado pelas suas bôcas palreiras.

—«Mas então aquelle desaustinado não diz nada cá á nossa cachopa?!...

—«Qual historia! Que eu saiba, ainda não lhe disse fala pró bem nem pró mal.{46}

—«Que desaforado! O que elle precisava sei eu!... Uma rapariga como a nossa Terezinha!... Crédo, santo nome de Jesus! Mal empregada é ella para tal libertino, que veiu mesmo perdido da tropa!...

—«Lá isso, ó Gertrudes, mau rapaz não é elle, e tem o seu bocadinho...

—«Ah, mas tem uma cabeça mais leve! No nosso tempo parece que não eram assim, ó Senhora Zéfa! Quando algum pretendia duma rapariga, dizia-lho, e estava acabado, iam prá igreja os banhos!...

—«Ora, eu sei lá! Haveria de tudo. Estas coisas esquecem muito, e o nosso tempo já lá vai ha tanto!...

—«Ai eu cá lembra-me perfeitamente, que o meu home assim fez. Foi até numa cava; calhou eu ficar ao pé delle, e fômos ao desafio. Como eu é que ganhei, elle então deu-me um abraço muito grande e disse-me assim:—Ó Gertrudes, és uma mulher duma cana; ámanhã se tu quizeres vou falar ao senhor abade e vame-nos a botar os pregões. E assim é que foi...

—«E eu que ainda me lembra do senhor abade vir p'ra casa a rir muito e a contar o caso á minha tia—que Deus haja! Ainda ella então andava rija e féra, coitadinha.

—«Mas vocemecê já lá estava, pois não estava?{47}

—«Pois estava, desde a idade de oito anos que fui p'rá companhia da minha tia até á idade dos cincoenta em que aquelle santo rendeu a alma a Deus! Ficou-me nos braços...

—«Coitadinho! Tão bom homem, tão sério, era como o nosso pai de todos. Veja lá se tudo não vai a peor! Olhe-me para o desatino em que este anda por ahi, com as raparigas e as mulheres dônas de sua casa, atraz, sempre em cantorias, e em rezas novas, que nem podem agradar a Nosso Senhor...

—«Já o dizia o senhor abade: a religião deve sêr a consolação da nossa vida e não o seu unico fim. Mas essa jesuitada entrou por toda a parte com este rapazelho do seminario—e bem mal têm já feito e hão de fazer ás familias!... O senhor abade bem dizia, bem dizia... E bastantes desgostos teve nos últimos tempos, que lhe amarguraram o resto dos dias... Coitadinho! Assim Deus lhes perdôe, que eu não posso tragá-los. Até me custa ouvir a missa daquelle avejão—Deus me perdoe se péco!

—«E o que me diz ás amizades delle com os feitôres da fidalga?! Ella toda trinques, caminho da missa logo de madrugada; as filhas de güelas abertas com as tais onzenices de cantorias na igreja, e mais florinhas p'rá{48} qui, e mais rendinhas novas nas toalhas do altar, confissão a cada passo... Eu nem sei, eu nem sei!...

—«E o marido? Vocemecê hade ouvir alguma coisa—está ali á beirinha da casa...

—«Ora o marido!... Tambem gosta muito daquellas coisas, e reza e canta e leva o padre p'ra casa a jantar e a tomar o chá, as mais das vezes.

—«Eia!—vivem como fidalgos!

—«Aquelles grandes excomungados! No tempo da fidalga, graças a Deus ninguem batia áquella porta com fome que não trouxesse uma consolaçãosinha; agora nem um chavo! Tudo querem para elles, aquelles ladrões!... Parece que ainda estou a vêr a Terezinha ir a correr contar á fidalga e vir logo com uma abada de pão ou de fruta, ou umas batatinhas, ou uma tigelinha de papas e o bocadinho de carne!...

—«Pobre Terezinha, tão mimosa foi da madrinha e agora tão triste a vejo!

—«Mas aquelle maroto não lhe dizer nada é o que me dá no gôto!...

—«Elle passa por ahi ás tardes, e ri-se para ella... Quando vai a alguma romaria sempre lhe traz uma prenda e um cravo com um verso bem calhante, mas nada mais! Ella então é uma tôla pelo rapaz! Mas quando{49} o vê faz-se encarnada como um pimentão, põe os olhos baixos, e nem sequer o salva.

—«Ora essa! Tem sua graça, tem!

—«Eu nem posso explicar isto. Que a minha Tereza—não é por sêr minha sobrinha—não é de engeitar... é a melhor cachopa cá da terra.

—«Ora isso, nem se fala! Compara-se lá! Basta saber lêr e têr a inducação que teve. É a flôrsinha da nossa vila.

—«Pois isto dá-me cuidado, dá! E não é pouco... A pequena só me tem a mim no mundo, e eu estou velha e cansada; queria-a vêr arrumada antes de fechar os olhos. E com o Manél da Clara do Rezadeira gostava, lá isso gostava: a mãe é rapariga do nosso tempo, e elle tem alguma coisa de seu, e no fundo não é mau rapaz. Mas então!... Parece bruxaria.

—«Ai senhora Zéfa, não pônha mais na carta. Isso hade sêr, hade! E não é mais nada senão coisas daquella atrevida da Maria do Próspero! Aquilo sempre fôram de má raça. Até o pai... hade saber! Não?! Pois eu lho conto. Crédo, santo nome de Jesus! Cada vez que me lembra até os cabelos se me põem em pé. O que aquelle malvado disse de mim, que sempre entrei em casa da fidalga, que Deus tem, com toda a franqueza!...

—«O que foi então?{50}

—«Ai não sabe?! Aquele grande diacho, Deus me perdôe! Então não disse elle que eu é que chupara o morgadinho, o filho da senhora fidalga!? Aquella aventesma!... Nem que eu não soubesse!... Bom, calo-me, que é melhor...

E mudando de tom, muito confidencial e amigavel:

—«Posso dizer-lhe de certeza: a Maria do Próspero conversa com o Manél e parece que o traz enfeitiçado. Olhe que lhe ouvi eu dizer—que primeiro estava ella, que já o namorava ha muitos anos, ainda antes de elle ir para a tropa, e que nunca a lesma da Terezinha o havia de apanhar! Desculpe, senhora Zéfa, aquilo é uma atrevida, uma doida!... Pois de que raça ella é!...

—«E o que é certo é que vai levando ávante o seu intento; tem artes do demonio!...

—«Deixe estar, deixe estar... Eu sei cá umas coisinhas que hãode voltar o Manél, oh se hãode!... Assim eu tivesse uma coisa que lhe pertencesse... Coisa de vestir era melhor... Punha-lhe a pedra de ara e dizia a oração... É coisa certa.

—«A Terezinha tem um lenço que elle lhe deu, mas fosse lá falar-lhe nisso!... Toda se zangava, não acredita nestas coisas...

—«Pois são bem verdadeiras...{51}

—«O outro dia ensinei-lhe que cruzasse as pernas mesmo de pé quando a atrevida da Maria passar por ella... Desatou a rir!

—«Ah, isso é uma coisa certa para livrar do mau olhado de quem nos quer mal. Sabe o que era muito bom? Era fazer á pequena um defumadoiro com hervas colhidas na manhã de S. João... É o alecrim, o funcho, a dedaleira, o rosmaninho, o sabugueiro... Se quizer, eu tenho lá.

—«Muito obrigada. Assim ella quizesse!... Bem se fazia um defumadoiro que a livrasse daquelle enguiço.

Assim continuaram em conversa larga, cheia de combinações e reticencias, que muito as interessava, emquanto a Terezinha dentro de casa trabalhava na teia branca, que parecia sempre a mesma, eterna como as suas máguas.

O tear monotonamente fazia subir e descer os pentes com um barulho sêco e igual, emquanto ella levantava a sua vózinha agradavel de soprano numa toada melancolica:

—«Eu heide amar uma pedra,

Deixar o teu coração;

Uma pedra não me deixa,

Deixas-me tu sem razão».

E ao dizer a quadra, que parecia sahir-lhe do proprio coração, os olhos enturvecidos de{52} lagrimas fitavam a estampa ingenua que elle lhe trouxera da Senhora do Castelo, a grande romaria de setembro.

Todos os anos lá ia—era o costume—e tambem a Maria do Próspero, que punha nos ranchos um contínuo esfusiar de gargalhadas terçando galhardamente com os mais afamados piadistas as armas perigosas da chalaça e da resposta á letra.

Cantavam ao desafio, ella e o Manoel. Tinham fama por todas aquellas redondezas, e, mal as suas vozes se trocavam num principio de duelo, os auditores cercavam-nos e apertavam-nos num círculo de admiração excitando-os com risos e ápartes.

Tambem era o par certo em todas as romarias—talhados um para o outro!

A Maria era alta e desempenada! A sua tez, dum moreno intenso, fôra brunida pelas soalheiras ardentes e curtida pelas ventanias agrestes. A bôca, sempre aberta em riso, era vermelha e fresca como cerejas maduras, e os dentes brancos e agudos cravavam-se com delicia no pão de milho, sua unica escôva.

As saias, rodadas em balão, faziam-lhe mais altas as ancas já de si redondas e fortes; o cabelo, em duas tranças pregadas, enchia-lhe a cabeça como uma touca de veludo negro.{53}

Quando punha o cáchené vermelho e amarelo de grandes ramagens verdes, o chale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a chinela branca pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para arrebanhar admiradores.

Depois, sempre satisfeita, radiava em plena expansão dos seus vinte anos sadios, vividos em plena natureza.

Nas ceifas, ao ardôr dos sóes caniculares, mangas arregaçadas mostrando os braços trigueiros e musculosos; ou no gesto mecânico de juntar as paveias e sobraçar os mólhos, tinha a harmonia escultural e grave duma Céres fecunda.

Nas vindimas, era a primeira dos ranchos, vermelha do môsto que corre como sangue generoso, a bôca escancarada em risos e cantigas... Tinha um aspecto quasi tragico e uma beleza perturbante e assustadora de bacante.

Pela apânha da azeitona, quando os campos amanhecem brancos da geada que toda a noite cahira manso e manso, tudo uniformisando sob a sua alvura de sudario, e o frio corta as mãos, que se engatinham, e entorpece os dedos que mal se podem dobrar, ella motejava de todos, sempre na frente, cantarolando e rindo, enchendo de ânimo os mais desanimados,{54} encorajando os mais entanguecidos pela friagem.

Sempre pronta para o trabalho, a Próspera, em todas as sáfaras e com todos os tempos!

Mas, tambem, não faltava ás romarias e ás feiras das cercanias, com o seu lenço berrante, o casaquito branco engomado a capricho, e a sua alegria saudavel, que fazia bem vêr.

O Manoel não resistia áquella força que chamava a sua força, áquella exuberancia de mocidade que atrahia a sua mocidade. Quando a via, nem sequer pensava na Terezinha, que se ia finando lentamente ao compasso triste e monotono do seu tear caseiro.

E, no fim de contas, para falar a verdade, a Maria era tambem uma bôa rapariga, que nunca tivera outro conversado. Nem havia lingua danáda de velha de soalheiro que se atrevesse a debicar nos seus créditos. Alegre, sim; rir com todos, vá! Mas atrevimentos não os consentia a ninguem. E tinham-lhe respeito—que a sua mão era lésta, e um sopapo da Próspera não era brincadeira!

Só o Manoel gosava da sua confiança e só com elle tinha as suas graças e brincalhotices mais livres, o que mais o afervorava naquelle amôr crescente que o ia conquistando dia a dia.{55}

Á noite, nas esfolhadas, quando o luar é môrno e as flôres têm um perfume mais intenso, corriam um atraz do outro, batiam-se fortemente, e cahiam ás vezes sobre a palha ainda quente do sol, com um cheiro sêco que entontece.

As gargalhadas seguiam-nos de todos os lados da eira, as chalaças cruzavam-se no ar como morcegos de pesado e estonteado bater de azas:—Eh lá, Maria, vê se tens mais força do que elle! Isso é que era um riso, o valentão deixar-se bater por uma mulher!...

—«Talhados um para o outro—isso é que não havia dúvida, nenhuma!

—«A Zéfa do Padre que se deixasse de querer casar a sobrinha com o Manoel.

—«Bôa rapariga, lá sobre isso não havia duas opiniões; mas a Maria é que estava a calhar para um homem de trabalho, uma mocetona daquellas que era capaz de voltar um campo sósinha.

Os homens votavam pela Maria, bela mulher para tudo e forte como uma torre. As mulheres, essas eram pela Terezinha, delicada e amavel, pondo sorrisos de aquiescencia onde a outra só tinha ruidosas gargalhadas de troça.

Era ella que lhes talhava e cosia á máquina, sem paga, as chitas pobres, mas apesar disso tão dificilmente compradas, e lhes ajustava os{56} coletes de linho grosso que tão irmanados lhes erguiam os seios até á raís do cólo:—«Ora, sempre era outra loiça! Podia lá comparar-se! Bem se via que tivera outra criação, lá em casa da fidalga, que a tratara como filha.

—«Que elle gostasse della, vá! Agora da Maria, uma cachopa como as outras!...

O Manoel, ainda indeciso, mas já a inclinar-se para a Maria, irritava as mulheres que se ofendiam com a insolente alegria da rapariga, que andava radiante com o seu ar de triunfo certo.

A velha Gertrudes Zarôlha vivia sobre brazas, nos últimos tempos.

Com meias palavras ou redundancias enigmaticas conseguia sobresaltar o coração do rapaz, mas não desviá-lo duma paixão que se harmonisava inteiramente com o seu modo de sêr moral e fisico.

—«Casar com a Maria—dizia a velha á bôca cheia—era até um pecado!...—e benzia-se com gestos de apavorada, que não explicava mas punha de sobre-aviso as consciencias timoratas.

Por uma noite de verão, sinistra pelo negrume de nuvens carregadas de eletricidade e prometedoras de fortes aguaceiros que toldavam{57} o céo, voltava o Manoel da Clara da vila proxima onde assistira á feira.

Um calôr asfixiante pesava como chumbo no abandono pungente da paisagen lugubre. Os pinheiros esguios tinham um murmurio mais triste e vago, como soluços suspensos de almas em pânico, e o olival verde negro destacava-se no fundo, apertando como num cilicio doloroso a pobre terra que se dependura de fraguedos rudes, sempre ameaçada pela montanha que a cavalga e lhe limita o horizonte, cortando-lhe toda a esperança de se expandir por ali, como o pecado véla e corta toda a esperança da alma piedosa...

O Manoel, que tinha ficado um pouco para tarde, conversando com uns amigos na taberna do Geitoso, vinha assobiando alegremente, caminhando despreocupado e sem grande pressa.

Ao passar pela Fonte do Inferno... diabo!... que ouviu elle?! Um rumôr confuso de gargalhadas, que aflavam no ar como grasnar longinquo de corvos...

Mêdo?.... Elle não tinha mêdo, mas desde que acontecera aquella historia da casa dos Carneiros... Crédo! Abrenuncio!

—E não se benzeu, o Manoel, como lhe cumpria fazer, ao lembrar-se de coisas daquellas!... A tropa é que estraga os rapazes, está visto...{58}

Agora, as gargalhadas já soavam mais perto... diria mesmo que ouvia a Maria do Próspero.

—Mas naquelle sitio, áquella hora!... Quem se atreveria?!...

—Em casa dos Carneiros,—lembrava-se involuntariamente—aquelle barulho de cadeias a arrastar, os ferros em braza que vinham cahir aos pés da gente da familia, o vozear sinistro que se escutava em toda a aldeia e trazia apavorados os mais valentes... Deus do céo, que terror fôra na terra toda! Já ninguem dormia nem descansava. Muitas mulheres tiveram então espiritos que os padres e os bentos esconjuravam, e se batiam com elles como forças iguais.

—Só depois que o senhor Vigario velho se resolveu a sahir, de capa de asperges, para benzer a casa endemoninhada, é que tudo socegou...

O Manoel já não assobiava, e ia olhando de soslaio para o Camborço, pedraria escalvada suspensa por milagre sobre o abismo e que a toda a hora parece desabar e soterrar as pobres casas de pedra solta tisnadas pelo tempo.

Um ventito picado e quente levantou-se então, trazendo o rumôr distinto de vozes, gritos surdos e gargalhadas abafadas...{59}

O Manoel era destemido; apesar da má fama do sitio, tido como logar de maleficas reuniões diabolicas, resolveu-se a transpôr o pequeno muro que separava o caminho da Fonte do Inferno, a propriedade de mais estimação dos velhos fidalgos.

Primeiro, não viu nada; depois, vaga e confusamente, luzinhas que saltavam e atravessavam-se corriam e perseguiam-se, juntavam-se e tornavam a afastar-se...

Um calafrio lhe percorreu o corpo e sentiu na espinha dorsal uma sensação desagradavel que o fez tremer. O Manoel era valente,—nisso não podia haver dúvida!—mas é que aquilo que via tão realmente como se á luz do sol olhasse as suas proprias mãos eram as feiticeiras, tal qual a sua mãe as tinha visto tambem quando em pequenino esteve ameaçado de sêr chupado por ellas...

Entre curioso e medroso—já agora não sahiria dali sem vêr o que aquilo era.

Acercou-se da eira onde a ronda sinistra era mais febril...—Jesus, que coisa horrivel!—Olharapos corriam vertiginosamente, que mais pareciam voar, na noite negra, com o seu unico olho flamejante no meio da testa, lanterna magica das profundezas do averno!...

Um lobis-homem passou a galope, no seu fado triste, procurando alma christã á qual{60} podesse, antes da meia-noite, entregar a sua cruz martirisante. Se elle o tivesse topado!... Até os cabelos se lhe punham de pé.

As luzinhas continuavam correndo alígeras, voando na escuridão dura da noite.

Surrateiramente foi-se aproximando da eira onde chamejavam em halucinado rodopio... A pouco e pouco ia-as distinguindo na sua fórma humana, girando buliçosas e gárrulas.

No meio da roda—cruzes! como podia aquilo sêr?!...—o Diabo passeando altivo, vestido de encarnado e de chapéo guisalhante, poisando os pés de forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que riam sarcasticamente.

Dessa vez o Manoel não poude deixar de rir, tão patusca lhe pareceu a cêna.

Ah! mas quando elle viu com os seus proprios olhos—tão certo como haver a luz do sol que nos alumia!—adiantar-se uma das luzinhas e, tornando rapidamente á sua figura de mulher, aparecer-lhe a Maria do Próspero, tal qual ella!... E quando a viu chegar ao pé do homem vermelho, estender-lhe os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardôr, não poude retêr um surdo grito de raiva.

Aquelles braços, que só o pensar nelles lhe fazia febre; aquella mulher, que o trazia prêso havia tanto tempo e com a sua honestidade{61} alegre e simples conseguira o seu respeito e o seu amôr, estava ali em frente delle abraçando outro! E esse outro—Deus do céo, que até a sua alma tremia!—esse outro era o proprio Diabo em pessôa!

Tremia de desespero e horror por essa criatura, que não passava afinal duma feiticeira.

Uma tremura nervosa e um frio de gelo o faziam vibrar todo. O sangue subia-lhe á cabeça, punha-lhe zoeiras nos ouvidos, halucinando-o.

As luzitas recomeçaram a dansa, numa farandola de sabbat, correndo e saltando, num delirio de gargalhadas frias como entre-chocar de ossos numa dansa macabra.

Ao Manoel parecia-lhe que tudo dansava á volta delle, que elle mesmo se sentia voar num rodopio de entontecer. Agora o Diabo, sentado num trôno luminoso de feiticeiras, os pés de bode torcidos e negros a descansar sobre o formoso corpo de Maria, como se fosse um estrado, lia um grande livro de capas encarnadas. A cada folha que voltava, sahia uma nuvem de diabitos fantasticos, saltitantes, folgazões como garôtos ao sahir da escola, que iam juntar-se ás feiticeiras, e tudo corria, voava, num cabriolar estonteante e doido.

Uma das luzes aproximou-se então do Manoel, que ficara empedrado na contemplação{62} da cêna que o atordoava e lhe tirava toda a sensação da vida, e rapidamente se fez mulher. Ficou boquiaberto, pois a bruxa era nem mais nem menos do que a Gertrudes Zarôlha, a velha amiga e confidente da Zéfa do Padre.

Se tivesse pensado melhor não se teria espantado tanto, pois essa era tida e havida por tal desde que o compadre Marques, o alfaiate, a encontrara feita galinha, lá para as bandas da vila, arrastando após si uma ninhada de frangas, as discipulas que ia exercitando pela noite alta. Admirou-se:—uma galinha tão tarde fóra da capoeira!?—e dando-lhe com o metro partiu-lhe uma aza. Logo a Gertrudes tornou á sua fórma natural e lhe pediu que se calasse, pois em paga do seu silencio lhe daria todos os anos uma camisa nova.

Mas o que é certo é que toda a gente soube do caso, sob segredo, e elle nem por isso deixou de receber anualmente a bôa camisa de pano de linho.

A Gertrudes quedou-se diante do Manoel: feia e engelhada, a bôca vasia de dentes, o cabelo esbranquiçado e crespo a fugir do lenço de chita, uma cavidade vermelha no logar do olho direito perdido não se sabia por que desastre.{63}

—«Ai, Manoel, pobre rapaz, desgraçado!... Se o Senhor te visse, estavas perdido neste mundo e no outro!...

Elle olhava-a emparvecido, numa confusão labirintica de ideias, que não explicava nem compreendia.

—«Ouves, Manoel?—continuava a velha bruxa.—Eu sou tua amiga, não te quero vêr perdido. Olha, escuta, toma sentido no que te vou dizer: O Senhor vai perguntar quem corre mais, para lhe entregar a caldeirinha que veiu hôje do inferno para a nossa missa. Tu hasde dizer que corres como o pensamento, agarra nella, e foge. Corre quanto podéres! Só estarás em segurança agarrado á corda do sino da igreja, depois do galo preto romano cantar pela terceira vez depois da meia-noite. Corre, corre quanto podéres, e livra-te de olhares para traz, oiças o que ouvires, sintas o que sentires. Ainda que te chamem pelo teu nome, não olhes nem páres,—olha que depende dahi a tua salvação e a tua vida!

Afastou-se saltitando, outra vez luzinha, a misturar-se com as outras na dansa macabra.

O Manoel ficou estarrecido, mas o proprio mêdo lhe deu energia bastante para responder com segurança á pergunta que o homem vermelho{64} fazia em voz tão formidavel e soturna que toda a natureza estremeceu de pavôr e os corvos no visinho cemiterio grasnaram agoirentamente.

Tendo gritado, no meio de vozearia geral, como lhe ensinara a Gertrudes Zarôlha,—«corro como o pensamento!»—agarrou na caldeirinha magica que estava no meio da roda e desatou a correr com quanta força tinha, em diréção á igreja, cujo campanario singelo donde pendia a corda do sino era agora a sua unica esperança de salvamento.

Mas, fosse porque o conhecessem pelo andar ou fosse por penetração diabolica e subtil, o que é certo é que, logo que voltou costas, uma grita ensurdecedora lhe chegou aos ouvidos. Sentiu-se perseguido por toda uma canalha de demonios, fúrias vêsgas e feiticeiras esguedelhadas, pequeninos trasgos e enormes gigantes, que ardendo em sêde do seu sangue e da sua alma christã lhe corriam no encalço.

Via-se quasi perdido, sentia-se quasi agarrado por enormes braços descarnados e com unhas aduncas e enclavinhadas, que se lhe cravavam na carne como tenazes... Chamavam-no pelo seu nome, ouvia coisas pânicas, e ora o insultavam com palavras que se desprendiam como pedradas de funda, ora o seduziam com promessas tentadoras.{65}

E dizia mesmo que essas vozes sedutôras, que se misturavam ás outras brutais e agressivas, eram ditas pela bôca vermelha e fresca da Maria...

Mas, fiel á recomendação da Gertrudes, corria numa ânsia ofegante, num desespero de loucura. Na cabeça enfebrecida duas unicas ideias se lhe espetavam, como navalhas agudas:—a Próspera abraçando o Senhor, como lhe chamara a Zarôlha, e o campanario humilde onde estava a sua salvação.

Não compreendia nem via mais nada, e nada mais lhe interessava no mundo. Mas chegaria a tempo de poder agarrar a corda do sino antes do galo preto romano cantar pela terceira vez á meia-noite?!...

Já as pernas lhe fraquejavam, a cabeça andava-lhe á roda, e os gritos satanicos, que mais e mais se avisinhavam, davam-lhe a certeza do seu triste fim, se não conseguisse chegar.

Mas já estava perto—num último arranco, estava salvo!

Se fosse vinte passos mais longe não poderia resistir. Quando deitou a mão á corda do sino, que deu na noite negra uma badalada lugubre, o galo preto romano soltava pela terceira vez a sua voz clara e sonora de espancar visões e pesadelos.{66}

Um gargalhar surdo e um rumôr de maldições e pragas perderam-se no ar, emquanto o Manoel cahia pesadamente no chão, agarrado ainda á corda do sino que tremia nas suas mãos crispadas. Ao lado tombara a caldeirinha tilintando numa vózita escarnicadora.

Para quem duvide do caso, lá está ella na igreja matriz, da pequena terra triste, cortada na rocha bruta, estrangulada entre pinhais melancolicos e oliveiras de folhagem eternamente sombria.

Lá anda ella, cheia de agua benta, tilintando sempre a sua vózinha escarnecedora e fantastica, acompanhando enterros de cavadores tisnados que na terra encontram o seu unico repouso, e criancinhas frageis que vão para o céo aspergidas com a agua benta da caldeirinha infernal...

Lá anda, muito serena, orgulhosa do seu metal desconhecido forjado nas profundezas ardentes do mundo sobrenatural, a acompanhar o senhor vigario na visita anual em dia de Páscoa alegre e florída:—«Bôas festas, bôas festas, santas festas!, sorri no seu arzinho petulante.

De madrugada, quando os homens iam para o trabalho, encontraram o Manoel ainda desmaiado,{67} agarrando-se á corda do sino como naúfrago a táboa salvadora.

Levaram-no para casa, alvorotando toda a vila com o extraordinario caso. A Clara de Rezadeira,—coitada!—mal viu o filho, o seu Manoel, estendido como um cadaver sobre o leito de cabeceiras embutidas, para onde os homens o atiraram já cansados da caminhada com semelhante pêso, ia morrendo tambem, sufocada pelo sangue cujos impetos o pobre coração mal podia regular.

Quatro Novelas

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