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ОглавлениеCAPÍTULO I 1822
Lucilla olhou para os morros que cercavam Quito e vislumbrou, por entre as nuvens, os picos brancos dos Andes.
Não era de admirar que Quito fosse considerada a Cidade Encantada do Equador, pois a cada momento parecia mais bela.
Lucilla, a irmã e o pai tinham vindo da Inglaterra para a baía de Guayaquil. Ali chegando, souberam, consternados, que os espanhóis tinham sido derrotados numa batalha.
O pai de Lucilla, Sir John Cunningham, mal podia acreditar. Viera da Inglaterra num navio cheio de mosquetes e de outras armas, para vendê-los aos espanhóis, e agora parecia que sua viagem tinha sido inútil.
Mas, otimista, achou que os boatos talvez fossem falsos ou exagerados, e resolveu seguir para Quito, com as filhas.
Lucilla não ficou impressionada com Guayaquil, embora soubesse que a grande baía de sessenta e quatro quilômetros de comprimento e três vezes este tamanho de largura era não apenas uma das maiores da América do Sul, como tinha sido palco de grandes acontecimentos históricos.
Só o que viu foram casas de bambu sobre estacas, construídas em terreno pantanoso. Três séculos de devastações feitas por piratas e cupins tinham transformado o porto um lugar feio, insalubre e perigoso.
O pai só se interessava pelos navios ali ancorados, alguns construídos em Guayaquil, que levavam cacau, algodão e borracha para outras partes do mundo, dando ao Equador a fama de ser um centro de comércio.
Enquanto esperavam as carruagens, fizeram uma refeição pouco apetitosa numa estalagem esquálida, sujá e sem conforto.
Mas Lucilla nada criticou, feliz por ter chegado à América do Sul e não ter sido deixada em casa.
Sua irmã Catherine, entretanto, tinha muito que dizer, demonstrando seu aborrecimento, como sempre acontecia quando não conseguia o que desejava. Lucilla passou a primeira parte da viagem tentando acalmá-la.
Estava disposta a fazer qualquer coisa por Catherine, sabendo que era exclusivamente por causa da irmã que tinha vindo nessa viagem, que, Lucilla estava certa, terminaria num El Dorado.
Em todas as transações anteriores com os espanhóis, Sir Cunningham viajara sozinho. Mas naquele ano ficara aborrecido porque ele e Catherine não receberam o convite que esperavam, para um baile dado pelo Rei, em Devonshire House.
—Droga!— exclamou ele, quando percebeu que não seriam convidados—, este país está em decadência! E não é de admirar, já que o monarca vive endividado e passa o tempo flertando com velhotas gordas, em vez de cuidar dos negócios de Estado!
As duas irmãs acharam melhor nada dizer. O pai continuou:
— Só o que posso fazer é dar graças a Deus por voltar à América do Sul! Os espanhóis sabem como tratar um cavalheiro como eu. Na última vez que estive em Lima, o Vice-Rei me conferiu privilégios especiais, que muito apreciei.
Seus olhos pousaram na filha mais velha. Não havia dúvida de que Catherine era realmente bela. Tinha a típica beleza inglesa: cabelos dourados, olhos de um azul vivo, tez rosada. Uma verdadeira flor desabrochando.
De repente, Sir John deu um murro na mesa e berrou:
—Não vou ficar aqui e ser tratado com pouco-caso por pessoas que se julgam superiores a nós! Vou levá-la para Lima, Catherine. Você vai causar sensação, lá, e os espanhóis lhe mostrarão como os verdadeiros cavalheiros se comportam com as mulheres que admiram.
—Para Lima, papai?— perguntou a moça, surpresa.
—Ouviu o que eu disse. Esteja pronta para partir daqui a uma semana. Leve suas melhores roupas. Se pensa que as senhoras de Lima não se vestem de acordo com á moda, está muito enganada!
Lucilla, que era muito perspicaz, notou, pelo tom de voz do pai, que as mulheres de Lima eram muito do seu agrado. Sempre soubera que, desde a morte da esposa, Sir John tinha ficado mulherengo.
Desse momento em diante, houve um verdadeiro caos. Catherine começou a encomendar vestidos, chapéus, capas, sapatos, luvas sombrinhas e inúmeras outras coisas que somente Lucilla poderia encontrar para ela.
Lucilla não teve tempo para pensar em si própria. Mesmo que tivesse, aceitaria o inevitável, isto é, que ficaria em casa, com a prima Dorcas, que tinha vindo servir de dama de companhia para as duas irmãs, desde a morte da mãe. Dorcas estava meio entrevada devido à artrite, e isto a tomava uma pessoa de desagradável convivência.
E então, surpreendentemente, quatro dias antes de partirem, tudo mudou.
Como de costume, Catherine chegou atrasada para o desjejum, na sala de jantar, onde estavam o pai e a irmã mais moça. Com uma expressão furiosa, disse:
—Hannah se recusa a me acompanhar!
—Que quer dizer com... recusa?— perguntou Lucilla.
—Você não é surda, é? Disse que está muito velha e, além do mais, tem medo do mar.
— Mas Hannah sempre cuidou de você!— protestou, Lucilla. — Como é que vai poder treinar alguém, em tão pouco tempo?
Sabia que isto era quase impossível, porque, apesar de sua riqueza, Sir John não era muito generoso, quando se tratava de pagar os empregados. Além disso, Catherine era uma patroa difícil e as criadas mais jovens tinham medo dela.
— Vou falar com Hannah— disse Lucilla, levantando-se.
—Não adianta! Supliquei, fiquei furiosa e cheguei mesmo a lhe oferecer mais dinheiro, mas Hannah é teimosa feito uma mula. A não ser que seja levada para bordo à força, ela não irá conosco.
—Pois bem, há Rose— sugeriu Lucilla.
—É uma tonta! E não sabe costurar. /
—E Emily é moça demais— comentou Lucilla, como se falasse consigo mesma.
—Talvez eu deva ir à agência para ver se há alguém disponível.
—É melhor você ir conosco— sugeriu Catherine, emburrada—, quando se trata de costurar, você é melhor do que qualquer uma dessas idiotas, inclusive Hannah.
Lucilla olhou-a, atônita. Mais admirada ainda ficou, .ao ouvir o pai dizer:
—Talvez seja uma boa idéia! Se eu alugar uma casa, como pretendo, Lucilla pode tomar conta de tudo. Sabe de que comida gosto; alguns pratos peruanos são temperados demais para meu estômago.
Lucilla encarou-o.
—Está falando sério, papai?
—Claro que estou!— respondeu Sir John, impaciente, saindo logo da sala, porque detestava problemas domésticos.
Só depois que o navio partiu de Portsmouth e navegava pelas águas agitadas do Canal, foi que Lucilla se compenetrou de que não estava sonhando.
Ela era sempre deixada em casa; a não ser que fosse inevitável, nunca ia a um baile, a uma festa ou a qualquer outra espécie de divertimento onde o pai levava Catherine.
Lucilla bem cedo compreendera que o pai a detestava e que se irritava até mesmo com sua presença. Humildemente, achava que compreendia o motivo. Não era apenas por ela não ser tão bonita ou tão vistosa como Catherine. Era também porque o pai tinha desejado desesperadamente ter um filho. Uma segunda menina fora uma grande decepção, principalmente porque sua esposa não poderia mais ter filhos.
Sir John Cunningham descendia de uma antiga família escocesa. Muitas gerações viveram nas planícies da Escócia, cultivando a terra, felizes em seus castelos, sem ambição de conhecer o resto do mundo.
John Cunningham era diferente. Ambicioso, queria ser rico, importante e viajar.
Ficar rico foi fácil para ele. Quando herdou o baronato, resolveu se tomar importante na sociedade londrina, que gravitava à volta do regente e de Carlton House.
Mas nunca chegou a ser aceito como amigo ou confidente do homem aclamado como “o primeiro cavalheiro da Europa”.
Havia muitas anfitriãs que, por causa da riqueza de Sir Cunningham, o recebiam de bom grado em suas soirées, reuniões e recepções. Mas ele sabia, assim como Catherine, que não poderiam entrar no “círculo fechado”.
Não eram aceitos por aqueles que se consideravam a nata da sociedade londrina.
Lucilla compreendia que era por esse motivo que ele gostava de suas viagens, assim como pelo fato de ganhar dinheiro com elas.
Como nobre e como inglês, era recebido no estrangeiro de um modo que considerava um direito seu, mas que não lhe era conferido em seu país.
Concentrava todos os esforços em fornecer aos espanhóis as armas de que tanto necessitavam e pelas quais estavam dispostos a pagar generosamente.
Recebeu um golpe inesperado, ao saber que a revolução que havia em alguns países da América do Sul tinha chegado ao Equador e ao Peru.
Sabia que tudo isso era devido a um certo General Simón Bolívar, que se chamava de “O Libertador” e vinha de uma classe social na qual Sir John gostaria de ter nascido.
Imensamente rico, descendendo de uma família antfga, opulenta e nobre, Bolívar era Marquês por direito de nascença. As mulheres o achavam muito atraente, com seus olhos negros e profundos. Aos dezessete anos, já era versado na arte do amor.
Esteve em Paris e depois foi para a Espanha, terminar sua educação na Real Academia Militar. Embora tivesse uma pele cor de oliva, as más-línguas diziam que havia substituído Manuel de Godoy como amante da Rainha Luísa.
Casou, mas a esposa morreu de febre amarela. Bolívar instalou-se então em Paris e sentiu-se atraído por Napoleão Bonaparte, que se tomou seu ídolo.
Sir John ouviu essa história e contou-a às filhas. Disse que o homem que havia mudado a vida de Bolívar era o grande cientista Alexandre von Humboldt, que voltou depois de viajar cinco anos pela América do Sul e publicou seus livros em Paris.
Ficou conhecendo o jovem Bolívar num salon e, naturalmente, conversaram sobre a América.
—O Novo Mundo teria um destino brilhante se ficasse livre de sua canga— observou Bolívar.
—Creio que seu país está maduro para a independência, mas não vejo o homem capaz de conseguir isso— observou Humboldt.
Foram essa palavras que deram início à revolução.
Sir John se divertia com as histórias que ouvia, onde quer que fosse, sobre o que estava acontecendo na Venezuela e na Colômbia, sob a liderança de Bolívar.
Embora estivesse pronto a aceitar o que os espanhóis lhe pagavam, não podia deixar de rir da idéia de um exército composto em grande parte de vagabundos, de homens mal equipados e mal armados, ter derrotado o famoso General espanhol Pablo Morillo e marchado durante mais de mil e quinhentos quilômetros pelos Andes, para ir afugentar mais espanhóis em Boyacá.
Achou que era uma piada, quando soube, em 1819, que Bolívar tinha instigado a União da Colômbia, que deveria incluir os antigos Vice remados da Venezuela, da Colômbia e de outros países, depois de libertados.
—Tem tutano, esse rapaz!— dizia Sir John, em seus clubes, quando comentavam os sucessos de Bolívar, exagerando-os, provavelmente, na opinião dele.
Mas nunca imaginou que Bolívar iria prejudicar seu negócio de armas com os espanhóis. E agora lhe diziam que Quito estava nas mãos dos libertadores! O que ele ia fazer com seu carregamento de armas?
Gostaria de ir diretamente para Lima, mas ouviu, consternado, que um exército de patriotas, sob as ordens do General San Martin, tinha tomado a cidade. Os espanhóis estavam se mobilizando do lado de fora, ao passo que, dentro, espiões e agentes provocadores tentavam solapar a nova república.
Sir John resolveu, portanto, ir primeiro visitar Quito e ver com os próprios olhos o que estava acontecendo. Afinal de contas, poderia ter sido apenas um pequeno revés. Intimamente, estava convencido de que o poder da Espanha Imperial era indestrutível. Os patriotas seriam então enforcados e esquartejados, como acontecera na revolução de 1809.
Quando se meteram por estradas péssimas, mas que, felizmente, eram secas, Catherine perguntou, nervosa:
—Não há perigo, papai?
—Somos ingleses. Estaremos seguros, seja onde for.
—Espero que não se engane— comentou a moça, petulante—, não tenho a menor vontade de acabar morta numa estrada, ou enforcada numa árvore.
Lucilla achou que Catherine estava sendo histérica, como muitas vezes acontecia, mas, ao se aproximarem de Quito, viram claramente sinais de combate. Havia casas depredadas, campos desertos e, mais sinistro ainda, abutres esvoaçando. Lucilla sabia por que motivo havia tantos por ali.
Quando a carruagem passava, voavam, abandonando por um momento os corpos em putrefação dos quais se alimentavam.
Antes que a cidade aparecesse, Sir John e as filhas ainda viram corpos pendurados em árvores ou em forcas, duros e de pescoço esticado.
«A guerra é uma coisa cruel, horrível!» pensou Lucilla.
Mas nada disse, não querendo deixar Catherine mais assustada do que já estava e esperando que o pai tivesse razão ao afirmar que estavam seguros por serem ingleses.
Em vez disso, procurou apenas ver a beleza da terra, as montanhas banhadas de luz e, de vez em quando, o brilho de picos gelados.
Assim que chegaram a Quito, Lucilla compreendeu que as montanhas tinham desempenhado um papel importante na batalha que havia sido travada.
As pessoas de Quito eram amistosas, tagarelas. Estavam excitadas e contaram inúmeras vezes o que aconteceu. Um pequeno exército patriota, reunido apressadamente, marchara pelas encostas dos Andes em direção a Quito, comandado por um rapaz brilhante que Simón Bolívar tinha feito marechal-de-campo com apenas vinte e oito anos.
José Sucre, com a sabedoria e o brilho de um General muito mais velho, tinha disposto suas forças para um ataque frontal a Quito. Depois, numa noite fria e escura, levou o grosso de suas tropas pela encosta do vulcão Pichincha.
Várias pessoas falaram a Lucilla do espanto do comandante espanhol, que acordou vendo os patriotas no morro que dominava a cidade; os realistas tinham sido obrigados a subir para um ponto mais alto da montanha, a fim de dar combate aos patriotas.
Foi uma excitação e ao mesmo tempo um divertimento que Quito nunca tinha experimentado antes.
Várias pessoas subiram nos telhados e nas torres das igrejas, para observar a batalha que se travava nos morros meio ocultos pelas nuvens. Uma senhora disse a Lucilla:
—Não sabíamos qual seria nosso destino, até vermos os realistas descendo a encosta correndo, com seus uniformes azuis e dourados. Soubemos então que Sucre tinha vencido e que estávamos salvos!
Disse isso com lágrimas nos olhos, e Lucilla compreendeu o que a vitória significara para o povo oprimido e dominado durante séculos.
«Eles amam seu país», pensou.
Ficou também sabendo que a população de Quito detestava os espanhóis, com um ódio talvez mais intenso e mais violento do que em qualquer outro país da América do Sul.
Sir John adaptou-se rapidamente à nova situação. Alugou, nos arredores da cidade, uma casa què tinha sido abandonada apressadamente pelo Vice-Presidente espanhol, que escapou justo a tempo de não ser feito prisioneiro, ou então morto na hora, como aconteceu conj muitos de seus compatriotas.
Havia muitas dívidas a serem saldadas, velhos' insultos a serem vingados. O Marechal-de-campo Sucre não pôde evitar certos atos de vingança e até mesmo de tortura.
Isso não era de admirar. Muita gente se lembrava do que acontecera depois da revolta de 1809, quando a revolução fracassou. As ruas ficaram manchadas do sangue dos patriotas massacrados. Os conspiradores presos foram enforcados, ao passo que os de posto mais alto foram despedaçados, com as pernas e os braços amarrados em quatro cavalos levados para rumos diferentes. Outros foram tirados da forca, ainda com vida, e decapitados, sendo as cabeças colocadas em gaiolas de arame e exibidas na cidade. Depois, os corações foram arrancados dos corpos e atirados num caldeirão com água fervente, no centro da praça.
Por ordem do presidente, essas atrocidades tinham que ser testemunhadas pelasr famílias dos Condenados.
Lucilla pôde compreender que, depois de tantos anos de desejo de vingança, houvesse júbilo pela libertação de Quito. Apesar disso, de noite ela às vezes estremecia, ao ouvir um grito, como se o esconderijo de algum Espanhol tivesse sido descoberto, ou uma exclamação de alegria por parte dos que assim se vingavam.
Afinal, os que morriam eram gente, tanto quanto ela; pessoas que queriam viver sem guerra, sem crueldade, sem miséria.
Mais emocionada ainda ficava quando, ao andar pela casa, via as gavetas das cômodas cheias de roupas dos que haviam fugido, jóias puma penteadeira, papéis e documentos em desordem numa escrivaninha.
Não podia deixar de pensar que ela, o pai e a irmã eram intrusos espiando a vida íntima de alguém, metendo-se no que não lhes dizia respeito.
Sir John deu ordem para que destruíssem tudo o que havia pertencido aos espanhóis que tinham abandonado a casa, mas Lucilla não obedeceu. Arrumou os armários que não estavam sendo usados e trancou as jóias e objetos pessoais nas gavetas de baixo, onde ninguém mexeria.
Todos os dias, achava que eles não poderiam ter encontrado uma casa mais bonita. Ficava encantada com o pátio enorme, com uma fonte no meio; admirava os vasos de pedra cheios de buganvílias, gerânios, lírios e rosas.
Nas galerias e nos quartos havia quadros, quadros que a fascinaram, assim que teve tempo de examiná-los.
Nos primeiros dias, isso foi impossível, porque teve que contratar empregados, supervisionar a cozinha e estar sempre à disposição de Catherine.
—Passe meus vestidos! Conserte essas rendas! Onde está meu chapéu enfeitado de plumas? E as sandálias que combinam com o vestido verde? Minha sombrinha?
Catherine poderia ter sido um General, com seu jeito de dar ordens, mas sempre tinha sido essa sua atitude com a irmã mais nova.
Felizmente, Lucilla estava habituada a resolver as dificuldades domésticas, tendo sido quase obrigada a assumir essa responsabilidade, após a morte da mãe.
Achou fácil contratar os empregados que o pai queria. Como os ordenados eram muito mais baixos do que os de Londres, logo arranjou criados competentes para cuidarem da casa e também de Catherine.
Uma moça que tinha sido treinada no convento sabia costurar, outra era especialista em passar e em engomar, uma terceira poderia aprender a pentear Catherine de acordo com a última moda.
Finalmente, quando pôde dispor de um pouco de tempo para si mesma,. Lucilla foi examinar os quadros, percebendo que não apenas eram bonitos, como incomuns.
Ainda não sabia que as pinturas, assim como os entalhes dos púlpitos e dos altares, nas igrejas de Quito, tinham sido feitos por nativos, sob a orientação dos padres. Alguns se tomariam mestres, na verdadeira acepção da palavra, e suas pinturas ficariam mundialmente famosas.
Mas, atualmente, só o que Lucilla sabia era que encantavam seus olhos, causando-lhe um grande prazer espiritual.
No princípio, sentiu falta de ar e tonturas, porque, com exceção de La Paz, Quito era a cidade mais alta da América.
Mas logo se aclimatou. Às vezes sentia que a beleza das montanhas ensolaradas, sob o céu que tinha a cor de lápis-lazúli, a fazia flutuar por entre as nuvens que ocultavam inúmeros outros picos.
A contragosto, Lucilla deixou de olhar para uma maddona de expressão doce. com uma grinalda de flores de vários tipos e de váriás cores, e foi para um quarto perto do hall de entrada.
Vendo a escrivaninha e várias poltronas de couro em estilo masculino, achou que ali devia ter sido o escritório do vice-presidente.
Na parede de frente para a janela, havia numerosos retratos, todos de oficiais usando o uniforme real, branco com enfehes dourados, de calças muito justas. Medalhas, espadas e botas reluzentes faziam com que parecessem imponentes, mas, ao mesmo tempo, quase inumanos, como bonecos.
Lucilla examinou os retratos, achando que o do centro era o presidente de Quito, o General Aymarich; o que estava à sua direita devia ser o vice-presidente e Dono daquela casa.
O homem à esquerda do presidente chamou a atenção de Lucilla de um modo estranho, a ponto de não olhar mais para os outros. Parecia mais alto, de ombros mais largos. Tinha cabelos escuros, olhos frios e duros, um nariz aquilino característico da nobreza espanhola, boca firme, mas não cruel. Havia nele, embora Lucilla não pudesse explicar por que, uma espécie de reserva, uma atitude orgulhosa.
Não soube dizer por que ele a atraía tanto, pois, desde que chegara a Quito, dizia a si mesma que, se as histórias a respeito dos espanhóis eram verdadeiras, então mereciam o que tinham sofrido.
Mas esse homem era diferente... seria mesmo?
Talvez fosse mais culpado do que os outros, porque, não apenas parecia bem-educado, como extremamente inteligente.
Ele devia ter sabido, devia ter compreendido que a maneira como tratavam os índios era errada, que a fortuna que os espanhóis tiravam do país devia servir aos que ali viviam e que sua fidelidade à Espanha devia ser temperada com um pouco de amor pela América do Sul.
«Estou sendo ridícula! Por que iria ele sentir isto?».
Mas seus olhos de novo se fixaram no retrato. Havia nele qualquer coisa que a atraía, embora não soubesse a razão.
Depois, sob o retrato, viu o nome dele:
« DON CARLOS DE OLAÑETA »
Certamente era espanhol, um nobre, um soldado, um homem que talvez tivesse sido tão cruel como todos os outros, cruel a ponto de chegar à bestialidade, conforme algumas pessoas lhe contaram em Quito.
—Não acredito! — disse em voz alta.
Depois, não compreendendo os próprios sentimentos, - saiu da sala, fechando silenciosamente a porta.
Sabia que voltaria ali. Enquanto caminhava pelo pátio florido, vendo o sol brilhar na fonte, sabia que voltaria para olhar de novo para aquele homem cujo rosto já estava gravado em sua mente.
Catherine voltou para casa à tarde, corada de excitação.
— Ouviram as notícias?— perguntou, ofegante.
— Que notícias?
— O General Bolívar está a caminho. Vem para Quito! Vai haver uma grande receção! Um baile na mansão Larrea, e todos nós fomos convidados. Até mesmo você, Lucilla!
O que Catherine havia dito foi repetido e repetido, até Lucilla não agüentar mais ouvir o nome de Bolívar.
A cidade inteira estava decidida a celebrar a vitória dele e a liberdade do povo. Aquelas pessoas geralmente calmas e pacatas ficaram excitadíssimas.
Durante todo o dia, soldados marcharam pelas ruas e nos campos, treinando.
Alguns se sentavam à porta das casas, limpando seus mosquetes, ou vagavam à procura de cantinas que vendiam cerveja de cereal fermentado, que deixava no ar um cheiro forte e adocicado.
Havia. soldados por toda parte. Por ordem do comandante, todas as casas estavam sendo pintadas, para celebrar a libertação.
Para Lucilla, era o mesmo que ver um artista derrubar uma paleta, à medida que casas de adobe de um andar começavam a adquirir uma aparência diferente, pintadas de cor-de-rosa, azul, verde ou vermelho, por índios tagarelas que espalhavam tinta nas paredes com um descuido que indicava sua excitação.
A cidade inteira começou a vibrar, enquanto alguns prisioneiros ainda eram levados até o mar.
Cansados e com olhar vidrado, lá iam eles, escoltados por guardas que carregavam bandeiras da República de Gran Colômbia.
Os homens capturados não tinham traços espanhóis, conforme Lucilla notou. Tinham rosto redondo, cor de cobre, e os olhos puxados dos índios.
Também os guardas tinham traços índios. Usavam uniformes rasgados, verdes, com enfeites dourados. Andavam descalços, com os pés enfiados em estribos de cobre, com formato de sapatos, tendo nos calcanhares enormes esporas com rosetas.
Parecia tudo muito estranho. Embora estivesse satisfeita por saber que a guerra tinha acabado e que os libertadores venceram, Lucilla não podia deixar de imaginar quantos dos prisioneiros chegariam até o mar, quantos morreríam no caminho.
Quito não estava mais preocupada com prisioneiros, e sim se preparando para receber o homem que todos já começavam a adorar como um deus. A população era um estranho conglomerado de trinta mil pessoas, das quais, antes da revolução, apenas seis mil eram de puro sangue espanhol.
Os mestiços, os cholos, compunham mais de um terço; eram os barbeiros, os comerciantes, os artesãos, os amanuenses, os entalhadores. Tinham sido o forte da revolução, contribuindo muito para a vitória.
Os índios formavam o grosso da população. Trajando calças de algodão até os joelhos e ponchos de lã, eram os fazendeiros, os trabalhadores que faziam com que as rodas da cidade girassem, embora não lhes fosse atribuído esse mérito.
Mas agora todos, com exceção dos espanhóis que estavam em esconderijos, eram movidos por um único pensamento, uma só ambição: dar as boas-vindas ao homem que modificara a aparência da América do Sul: Simón Bolívar.
— Não está excitado com a idéia de ir conhecê-lo?— perguntou Catherine ao pai, dois dias antes da chegada de Bolívar.
— Acho que ele vai gostar de me conhecer— respondeu Sir John.
Lucilla olhou vivamente para o pai.
—Pretende vender suas armas a eles?
—Estou disposto a vender a quem me pagar.
Lucilla ficou imaginando se o General Bolívar poderia fazer isso. Tinha ouvido contar que ele havia gastado sua imensa fortuna em guerras. Os homens de seu exército não receberam nem a metade do que lhes havia sido prometido e estavam com falta de armas.
Se fosse verdade, era ainda mais incrível que tivessem derrotado os espanhóis, que possuíam recursos ilimitados.
Lucilla sabia que, quando se tratava de negócios, o pai não era nada sentimental. Para dizer a verdade, nada havia de generoso nele. Fizera sua fortuna com o lema “pagamento à vista”.
De repente, ela teve receio de que Bolívar não estivesse em condições de fazer negócio com ir John. Então, para quem iriam as armas? Talvez, para os espanhóis.
Estes ainda não estavam derrotados. Corriam boatos de que os exércitos realistas procuravam se reunir no alto dos Andes. E, em Lima, dizia-se que os espanhóis estavam trazendo recursos do Panamá.
Lucilla não contou nada disso ao pai. Apenas escutava, e havia muito que escutar em Quito, naqueles dias.
Na tarde seguinte, apesar de seu propósito de não voltar à sala dos retratos, ela voltou.
Durante a noite, tinha dito a si mesma que o que sentia pelo retrato de Don Carlos de Olaneta era ridículo. Ele não era diferente dos outros.
Eram todos orgulhosos, autocratas, cruéis; não tinham o direito de ficar naquele país e deviam voltar para sua terra, a Espanha.
Mas, quando se viu de novo diante do retrato, houve a mesma magia, a mesma sensação de ser atraída por ele.
Gostaria de compreender a razão. No rosto de Olaneta, nada havia de bom, nem de suave. Era bonito, mas havia dureza nos olhos e na linha firme do queixo. Era o rosto de um homem implacável e, talvez, ambicioso.
Mesmo assim, Lucilla tinha a impressão de que não revelava tudo. Alguma coisa estava oculta, controlada... Mas o quê? E por que motivo isso a preocupava?
Com ar resoluto, saiu da sala, fechando a porta.
Tinha toda a tarde livre. Os criados tinham-se adaptado à rotina determinada por ela. As criadinhas cuidavam bem das roupas de Catherine; a própria Catherine estava adorando cada momento de sua visita a Quito.
Quase todos os dias, havia festas em casa de senhoras que a tinham acolhido muito bem, por causa da posição de Sir John e também porque Catherine era uma novidade, uma estrangeira e, portanto, uma atração.
Todos os homens, como era de se esperar, a achavam encantadora.
Chegavam ramos de flores todos os dias para ela, e Catherine já estava achando difícil manifestar preferência por um, com medo de ofender outro.
— Estou fazendo sucesso!— disse ela a Lucilla, quando se vestia para o jantar, na véspera.
—Papai teve razão de me trazer. Afinal, no meio de todas essas mulheres morenas, eu brilho como uma estrela.
Estava de fato muito bonita, usando um dos vestidos elaborados que tinha comprado em Londres, com um xale diáfano, azul, da cor de seus olhos.
Dirigiu-se, em companhia do pai, para o jantar que ia ser dado em sua homenagem. Pelo menos, foi o que disse a Lucilla.
Ninguém pareceu estranhar que a irmã não tivesse sido convidada.
Se é que o fora, nem Catherine nem Sir John se deram ao trabalho de lhe transmitir o convite. Na realidade, Lucilla não tinha vontade de ir, a não ser pelo fato de desejar conhecer o pessoal de Quito. Achou que seria excitante saber o que pensavam as pessoas desse lugar tão distante da Inglaterra, mas que era um dos mais belos que conhecia.
Como que atraída por essa beleza, ela se dirigiu para o jardim, nos fundos da casa.
Havia ali uma orgia de cores, as plantas crescendo de um modo luxuriante, devido ao sol tropical.
Qualquer coisa naquela desordem fez com que se lembrasse de que ainda não contratara um jardineiro. Isso lhe tinha escapado, porque havia muita coisa a organizar na casa. Soube por Josefina, a criada mais velha e na qual mais confiava, que o último jardineiro tinha sido forçado pelos espanhóis a ir para o exército e, ou havia sido feito prisioneiro, ou morrera.
«Amanhã preciso arranjar pelo menos dois jardineiros».
Indo até o fundo do jardim, achou que seriam necessários três.
Havia muito que fazer, e Lucilla já tinha percebido que os índios trabalham esporadicamente, sempre prontos para uma siesta, quando ninguém os observava.
Na extremidade do jardim havia um pequeno pavilhão, feito de pedra branca, como a casa, mas que evidentemente há muito tempo não via pintura.
Lucilla achou que a primeira idéia devia ter sido a de fazerem um pavilhão grego, mas, de certo modo, tinha um ar espanhol, que empanava a perfeição clássica.
Parecia um bom lugar para as ferramentas do jardineiro.
Num dos lados do pavilhão havia uma buganvília vermelha, no outro, uma clematite.
Lucilla subiu os dois degraus e viu que a porta estava muito necessitada de pintura. Ficou imaginando por que motivo os espanhóis tinham desleixado essa parte da propriedade. Curiosa, empurrou a porta.
Esta se abriu mais facilmente do que esperava. E então, na sala quadrada onde não havia mobília, Lucilla viu um homem.
Estava de pé, parecendo ter-se levantado ao ruído da aproximação de alguém. Por um momento, sentindo medo, ela não pôde vê-lo distintamente. Depois percebeu que era um soldado, com o uniforme azul e dourado dos espanhóis.
Ficou de respiração suspensa. Olhando bem para ele, soube que já o tinha visto antes.
Inacreditável! Era o homem do quadro... Don Carlos de Olañeta!
Fitou-o e notou que escorria sangue no rosto, devido a um corte na testa.
—Está ferido!
—Não! Estou morto!
Ao dizer isso, escorregou para o chão e ficou imóvel.