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II

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Foi por uma tarde de junho, quente e avermelhada, que tomei pacientemente um carro, indicando ao boleeiro o nosso destino—a Casa de Lares, mais de legua para além das Taipas.

De Guimarães ás Taipas viajámos com dia. Anesthesiavam-me dos tratos da jornada a tarde e a paisagem.

Ao lado havia milheiraes espessos; perto, alas de giesta, florindo as curvas mal lançadas da estrada; na borda dos campos—choupos nodosos, a apoiarem vides grossas, de cachos verdes, cerrados; mais para além, nos panos altos—renques de pinheiros bravos, que pareciam tocar o ceu, fogo e madre-perola.

Nas Taipas demorámo-nos. Quando seguimos era noite; recolhiam os aquistas aos hoteis, na mira das dansas e da intimidade dos salões. A estrada, a partir dahi muito guardada pela ramaria das carvalheiras, que bracejavam fóra das divisorias, era pouco passeada á hora em que a percorriamos. O carro seguia extenuado, vagaroso, denunciando a má rodagem; ouviam-se os arreios folgados, de encontro ao corpo magro dos garranos, o estalejar do chicote, as pragas do cocheiro, teares abrindo falsete na toada crepitosa da noite.

A uma legua das Taipas o carro inclinou para a direita; os solavancos multiplicaram-se. Interroguei, receoso, o boleeiro:

—Que rumo levamos?

E, dando por um pontão, que pouco mais dava ao carro do que uma tarja de palmo—pedia-lhe cuidado, aconselhando-o a parar, pois me não convinha ir ter ao leito do ribeiro, muito cavado e pedregoso.

—Que eu era um dorido, commentou o homem, sereno; que aquelle era o caminho velho, o mais curto, e dahi por doze minutos estariamos em Lares.

Seriam nove horas, proximamente, quando chegamos.

Exultei; estava, pois, em Lares, a bem dizer na Terra Santa...

Apurei a vista, e, enquanto o cocheiro batia á porta-fronha, espionava eu, fóra do carro, a cerca alta do solar, com ameias de metro, alternadamente rectas e recurvas, sobrias de desenho.

Cortava o muro, a meio, um enorme frontal, inserindo um escudo ramalhado de signaes heraldicos, a que um capacete fidalgo punha fecho.

Projectava-se no chão lizo, que circuitava o muro, uma sombra de renda.

Era a silhueta das ameias e frontal.

Passados minutos, abriu-se uma das folhas da porta-fronha. Appareceu a cabeça grisalha dum minhoto authentico, a inquirir quem eramos, e o que queriamos.

Expliquei a chegada, e fui introduzido no primeiro salão de Lares, e, a seguir, abraçado por Maria Peregrina, muito admirada da temeridade, por ter ido sem a avisar.

—Que me teria mandado a carruagem, informou, e para o atalho a liteira;—que eu suppuzera as estradas do Minho similares em arranjo ás grandes avenidas do Rio de Janeiro—uma amabilidade para Lares, que me sahira cara...

E eu, desmanchado, confirmava—que era pouco cauteloso, embora muito experimentado em desenganos; que devia contar com a sua generosidade, evitando aquelle desastre. E, deprimido, sumia-me numa cadeira larga, commodissima, e um pouco de geito a reparar as torturas mais reparaveis da jornada.

Estive assim dois quartos de hora, succumbido, deante de Maria Peregrina,—que me lamentava, maldizendo o caminho e a minha idéa de jornadear á doida.

Dentro, na sala proxima, conversava-se em surdina.

Levantei-me quando me senti reanimado a despir-me da poeira, voltando, em seguida, ao salão donde fui com a Artista para a casa interior—a das visitas, onde conversavam as duas pessoas que ouvira antes e Peregrina me apresentou:—o prior do Mosteiro e uma senhora de edade, a Morgada de Soutello.

O prior, homem de meia edade, usava batina preta muito cingida, caseada a roxo a dizer com a volta e faixa larga de seda, e um anel de amethysta, em oiro simples. Tinha o nariz adunco e estreito, sobre que assentavam uns oculos quadrados de lentes grossas a inculcarem pronunciada myopia, que não prejudicava o seu olhar resignado, vasando um espirito intelligente e manso.

Usava o cabello quasi rente. Era um pouco curvado, franzino e distincto. De resto muito sombrio, e, no dizer de Peregrina, em tudo avesso ao typo classico do abbade minhoto—no geral bonacheirão e grosseiro.

—Que lhe parecia um santo monsenhor José d'Andrada, explicava á puridade. Conhecia-o desde pouco, visto que o prior chegára ao Mosteiro depois della ter sahido: havia annos que não entrava em Lares. Tinha com o padre relações duma semana, meras relações de cortezia; mas destas aferira já uma especial delicadeza, que o extremava dos collegas.

E acrescentou:

—É um apostolo de rara valia. Ao menos assim o inculca a fama. Foi regular de S. Vicente; no entretanto, parece que a communidade abriu condições aos seus talentos, pois que se oppôs ao beneficio da Parochia, e ao titulo que lhe deram.

A morgada de Soutello, D. Maria Helena Alvares Moniz e Sá de Pamplona, tinha sessenta anos, gastos em viagens pias, devoções e os maiores cuidados com a saude e instrucção duma filha, rapariga interessante, segundo Peregrina.

A velha fidalga era senhora de poucas letras, conforme o uso antigo nas pessoas da sua prosapia. Tinha, contudo, maneiras distinctas, que a absolviam das poucas letras.

Offereceu-me uma cadeira junto de si, apenas lhe beijei a mão, ao ser-lhe apresentado, e ficamos a conversar.

—A Tia, começou Peregrina, é uma das pessoas que se condoe da minha soledade e me visita com mais affecto. Presumi, ao recolher a Lares, que tinha de contar, sómente, com as sombras da quinta. Mas Deus começa a transigir commigo; nem sempre me sinto só.

—Sabes, Maria, commentou a senhora de Soutello, que fui condiscipula de tua mãe no convento de S. Lazaro no Porto; foste minha filha adoptiva nos primeiros annos de educação; teu pae foi o mais querido dos meus irmãos; que desde creança te estimo...

Tua mãe, já no collegio, era uma santa. E assim a veneram os lavradores do Mosteiro. O carneiro que a guarda é uma casa de milagres. Ah! como hãode doer-lhe no Ceu as tristezas em que ainda hontem nos falavas!

Sempre triste, nem pareces a creança que vi cabriolar ha vinte annos. Emfim, creio que este sossego, quando melhor o comprehendas, hade trazer-te alegrias.

Ha tempos o monsenhor, quando estavas na Italia, disse-me que eras infeliz. Perguntei-lhe os motivos da tua infelicidade, mas fez-se desentendido; limitou-se a affirmar que havia temperamentos felizes e desafortunados e tu eras dos ultimos; que só Deus sabia ao certo as razões das desditas deste mundo, e nós tinhamos obrigação de respeitá-las, as grandes, sobretudo.

Na occasião, magoou-me tal noticia. Depois, lembrei-me de que tambem o monsenhor é homem para exaggerar desgostos, vendo os dos outros, como vê os seus, com amargura serena—a que mais impressiona.

E voltando-se para mim:

—Dei razão á Salomé, que ainda ha dias repetia que Peregrina tem o prazer do soffrimento. Vou crendo que seja assim. Como ella nota, Maria Peregrina não póde com o bem!

—Ah! a Salomé suppõe então que eu faço luxo em ser triste? perguntou Peregrina.

—Pois que duvida?! insistiu a Morgada, olhando para mim de geito a alliciar-me para a opinião da filha:—rica, rapariga de talento, representante da primeira fidalguia de Entre Douro-e-Minho, que mais póde desejar? Deus nos não castigue!

Que, a falar verdade, disse, descendo a voz, e encarando-me, ha um facto que me entristece. Não nos falta prosapia na ascendencia, nem bens, nem honras de toda a ordem; e, no entanto, não temos ascendentes felizes: que immenso drama podemos ler nos pergaminhos de familia!

Não sei se sabe, disse, que no brasão de Lares ha uma linha negra que tarja um dos esquartelados do escudo, separando os appellidos que inculcam a razão fidalga desta Casa.

—Informei que tinha reparado no traço, mas lhe desconhecia a origem.

—É uma historia triste, informou D. Maria Helena. Haverá trezentos annos que um antepassado nosso varou com um tiro numa caçada, em Granada, por desastre, um principe da Hespanha. Dahi o ter sido ordenado que no brasão ficasse perpetuado o lucto pela memoria do Principe e desgosto desse nosso ascendente—D. Arnaldo Affonso Duarte de Biscaia Alvares Moniz e Sá, que depois morreu no mosteiro de Ancêde, em Portugal, frade exemplar, com honras de justo e suspeitas de santo.

Lembro-me de que aquella fatalidade, expressa no brasão de familia, depois de trezentos annos—domine ainda a historia duma descendencia tão illustre como a desta Casa.

Mas deixemos agoiros... É preciso não tentarmos a Deus, conciliou.

E voltando-se para Peregrina:

—Entrega-te a Deus absolutamente. A tua philosophia, no fundo, vale tanto como os meus agoiros:—nada. O que vale neste e no outro mundo é a grande Lei. Não é assim, monsenhor?

E pedia o reforço do prior, que ouvira de pé a ultima parte das considerações de D. Maria Helena.

—É verdade, senhora Fidalga, assentiu. Mas, accentuou, sibyllino, cada um tem de servir a Deus segundo os meritos, os talentos, o temperamento que elle distribue... Ora, o serviço de Deus torna-se muito complicado para os espiritos complicados. Não culpe V. Ex.ª a sr.ª D. Maria Peregrina pelas suas especulações sombrias. Peça a Deus que a alegre, e lhe transforme a vontade e os nervos, sem prejuizo dos talentos.

—Deus pode tudo, monsenhor, disse a Morgada, forte de fé. Mas só Elle sabe a opportunidade de intervir.

Seguia a conversa, animada, quando correu o reposteiro da esquerda, entrando na sala uma linda rapariga de 25 annos, proximamente, loira, olhos azues, rosto branco, ligeira e graciosa.

E a Morgada, interrompendo-se:

—Que tens feito? Estava a ver que tinhas ido só para Soutello.

E voltando-se para mim:

Era capaz disso. Não imagina a coragem desta rapariga. Sae ao lado dos Pamplonas, que não temiam coisa alguma.

—Não, minha mãe, disse com simplicidade Salomé, vinho do jardim. Está luar, o jardim é um encanto. Não imagina o effeito do luar sobre os cravos côr de enxofre. E as dahlias? Oh Peregrina, hasde dar-me dos teus craveiros, dahlias e aparas de roseira. O jardim de Soutello é tão pobre!

—Sim, Salomé, concedeu Peregrina, tudo o que ahi houver e te agrade. Pena tenho de não poder mandar-te o jardim em tabuleiros. O que ahi ha é obra do José Lourenço. Coitado! como sabe quanto gosto de flores, tem o maior cuidado nesse rendimento sagrado da quinta.

Mas, a falar verdade, desde que vim, mal attentei nos canteiros; tenho a impressão de que tambem as flores começam a ver-me mal.

Manda buscar o que quizeres.

—Sempre boa, observou a senhora de Soutello.

—Vou ver, interrompeu Salomé. Tenho ainda um pedido a fazer. Sabes qual é?

—Não sei, disse Peregrina, fitando-a.

—Nem presumes o que seja?

—Não, confirmou Peregrina.

—Queria ouvir tocar. Ha annos que te não ouço. E os violinos dos outros parecem-me instrumentos differentes.

Peregrina teve uma contracção de desgosto:

—Se tens caridade não me peças tal sacrificio.

Não tóco ha muito tempo. Ha annos que faço por esquecer o violino. Desde o collegio...

E apontando-me, e retrahindo-se num sorriso que mais lhe accendia a contrariedade:

—Este meu amigo deu-se á travessia de Guimarães até aqui num carro do Tocaio! É das maiores penas que conheço. Pois proponho-me repetir a heroicidade, se me dispensares do violino; nem sabes que desgostos me recorda...

—O que?! interrompeu Salomé. Não mais tocar! Quero ouvir-te,—tem paciencia!

Chamando:

—Violet! Oh Violet!

Abriu-se a porta e, dentre o pano amarello, debruado a vermelho, amarfanhado, do reposteiro, surgiu a cabeça ingenua de Violet, que vinha saber o que queriam.

E Salomé, entre azougada e meiga:

—Vaes fazer-me um favor. Chamei-te porque deves saber onde veiu o violino; traze-o, sim?

Violet encarou Peregrina, e sahiu, apressada, a cumprir a ordem.

Quando ella chegou, Salomé pegou na caixa de ébano, uma especie de esquife de creança, abriu-a, com affectado cuidado, e passou o instrumento, com o arco, para as mãos da parenta, que recolheu tudo com um enleio que me fez pena. Depois levantou-se, e, voltando-se ainda uma vez para Salomé, como quem pede clemencia, perguntou:

—Tem então de ser?

A um signal della, começou serena a afinar o violino, mas, repentinamente, arrancou do arco e, quasi sem que o esperassemos, entornou em volta de si, naquella sala de geito nobre e antigo, uma harmonia tumultuosa, perturbadora.

Na sua pelle trigueira esparsavam-se reflexos da labareda que a ateava, notas dum misto macabro, melancholia, força selvagem, enthusiasmo, exotismo, aturdimentos de Arte...

A sua figura, duma belleza gasta, espectrava, numa côr e luz de magica, expressões visionarias.

Era o index duma alma polychroma, vasando luz e sentir na alma ductil do violino.

Executava um trecho de Chopin. Nas ondas daquella harmonia nervosa e suave, casara-se tudo—o genio de Chopin, a alma do violino, o enredo daquelle tecido de musica, simultaneamente divino e infernal, sobretudo a vibração dos nervos dolentes de Peregrina, esquecendo outras cordas...

Victoriamo-la, quando acabou. O remoinhar daquella alma emotiva de mysterioso, communicara-se, afinal, a todos, a tudo. Deixára no espaço nervos, fios quebrados de harmonia...

—Muito bem, dizia a senhora de Soutello, levantando-se, leve de enthusiasmo, a beijar, carinhosa, a Artista.

—Soberbo! dizia a Salomé.

E orgulhosa:

—Querias então que fossemos cumplices no teu silencio? Nunca!...

E retirando com Peregrina para o vão duma janella:

—Que alma emprestas á musica! Ainda me lembro da penultima vez que te ouvi tocar. Era creança, mas recordo-me, como se fosse hoje. Eu fui, com recato, procurar o violino, e, quando menos o esperavas, pedi-te para que tocasses. E, então sem as hesitações de ha pouco, fizeste-me a vontade; lembras-te?

—É verdade, concordou Peregrina. Tens saudades desse tempo? Tambem me lembro delle, pois foi do melhor que passei. Mas entro na sua rememoração como num templo, onde vivi crenças que morreram. A rapariga de então não existe mais. Sou a sombra della, a aventureira, que talhou alegrias e paz, que não podia viver.

—E porque não? inquiriu commovida Salomé, beijando-a. És a culpada das tuas infelicidades, afinal de meras melancholias. Sê o que deves ser. Vê o que se passa commigo, quasi sempre na aldeia, em companhia de mestras hediondas, e sempre alegre, até feliz. Tudo me é sympathico, a paisagem, a gente do Mosteiro, as mil coisas que me rodeiam; tu nem pareces deste mundo!

—Sim, é certo, concordou Peregrina; sou a obra postuma daquella rapariga que ha vinte annos era alegre!

—Mas porque não hasde voltar a sê-lo? Remete-te á antiga vida de Lares. Procura-te nas recordações, e esquece algumas horas más, se as tiveste. Todos podem ser felizes, ainda aquelles que os outros suppõem desgraçados. Em Soutello ha um cego que me condoeu quando o vi a primeira vez. Pois não conheço pessoa mais resignada. Imagina que vê; descreve tudo a seu modo; e como tem uma imaginação alegre, só vê coisas alegres.

—Sim, acredito. O peor não é ser cego: é termos de conduzir de olhos abertos um temperamento cego.

Salomé olhava, commovida, para a Artista. Percebi que ia sendo inconveniente perto daquelles dois espiritos que pretendiam ligar-se pelo passado.

Retirei com o monsenhor. Conversamos acêrca de Peregrina. Perorei a apologia condicional da obra della, explicando as minhas reservas para uma parte do seu trabalho, pelo que ahi havia de doentio.

E monsenhor, como falando comsigo:

—E quem sabe se o talento della não é a doença? Se curando-se não faria de si uma creatura vulgar! Não sei porque, murmurou, imagino que a sua obra prende na malha dos seus nervos, que parecem feitos de seda e esparto... Repare nella! Veja como a alma lhe tatua o rosto, permeavel ao soffrimento; os livros della são a sua physionomia; revivem, exprimem tudo—corpo e alma.

Extranhos commentarios para um padre, antigo regular da Ordem de S. Vicente!

Notou a minha extranheza e, muito sereno, commentou:

—É curioso como, em geral, são considerados os padres e, sobretudo, os regulares. Ou os suppõem uns bandidos de batina—estylo Padre Amaro, do Eça—ou uns boiões de imbecilidade, e appetites grosseiros.

Ora eu posso garantir a v., continuou, que lhe valeria a pena e a todos aquelles que se devotam ás letras descobrir a rede de amarguras e dramas passados nos conventos. A verdade do mundo mystico excede a imaginação mais requintada; o confessionario é ainda a escola maxima para o padre intelligente e bom. Que satisfação eu tenho em perdoar, com a inspiração de Deus, os maiores delictos e baixezas da materia; é então que Deus me parece grande, immenso de bondade!

—O meu excellente monsenhor não me leva mal, observei, que encontre a sua doutrina interessante, mas um pouco heterodóxa.

—Ah! sim, respondeu vivamente; ahi está porque prefiro a vida livre do presbyterio á da communidade. Repugna-me mentir. Cada penitente é um doente especial que precisa tratamento proprio. Mas numa terra como esta raramente apparecem os casos graves. A pena de seis padre-nossos e uma esmola purifica uma aldeia. Nos conventos, e, melhor, nos conventos-collegios a casuistica é diversa. Ha ahi os temperamentos anormaes, em que a reza e o jejum esterilizaram a alma para tudo o que não é de Deus, segundo Roma; e ha os outros, os que por educação ou tara, compatibilizam Deus com as fraquezas da carne e da alma.

Os primeiros servem a Ordem, segundo as taes regras. E, com assentimento da Egreja, condemnam, indifferentemente, os peccadores. Os outros, os que chamam a si os casos mais extranhos, para os aperceberem e sentirem, são os relapsos da Ordem, os que as congregações relegam em nome da disciplina, a bem das communidades.

É claro que ha um meio de illudir contingencias; é recorrer á hypocrisia, não pensar alto, seguir a popular doutrina do Frei Thomaz... E este é, de facto, o uso dalgumas ordens. Veiu este discurso todo a proposito da senhora D. Maria Peregrina; por mim, concluiu, lamento-lhe as fraquezas como os talentos,—mas deixe-me informar v. de que a estimaria menos se fosse escorreita como o seu procurador.

Sou o pastor da freguezia, o pae dos meus freguezes, na traducção do meu primeiro e melhor titulo—o de padre. Como todos os paes, amo de preferencia os filhos mais desgraçados.

—Ah! de certo, concluiu fatal, estimá-la-ia menos, se a não soubesse infeliz...

Interrompeu-nos Maria Peregrina, executando um trecho de Wagner, tempestuoso, sombrio.

Não podia ter melhor interprete o grande compositor. Pensei na transmigração do talento e disse-o á Artista...

—Não é o caso, contrariou, é que vivi agora um pouco da emoção que tinha deixado arrecadada no Mosteiro; milagre da Salomé, que me obrigou a resuscitar parte do que fui.

Onze horas.

Abriu-se o reposteiro e entraram três creados de libré azul, conduzindo taboleiros com doce; e, a seguir, um anão, de pouco mais de cinco palmos, apertado num dolman e calção de seda preta, ar mysterioso, olhos côr de azeite, sardento, cabello ouriçado, face pergaminhosa, edade dubia.

Peregrina chamou:

—Jacob!

E, dirigindo-se-nos, offereceu os vinhos e licores que elle trazia. Recusei servir-me. Queria sossegar os nervos, excitados pela viagem. Entretanto, reparei no anão.

—É um monstro singular, observou Peregrina, dando pelo meu exame. É allemão; trouxe-o de Athenas, duma barraca de feira, onde se mostrava por pouco dinheiro. Além do allemão fala o hespanhol, o italiano e vae comprehendendo e conversando o português.

E fazendo-lhe signal para que retirasse:

—É extravagantemente intelligente e velhaco; tem vinte e nove annos; não perdôa a altura e o desenvolvimento dos outros. Chego a suppô-lo justo. E, como quer que seja, trouxe-o commigo numa hora de humor exotico que só elle podia encher; é um capricho envelhecido, um monstro que me interessou...

—É tarde, disse alto a senhora de Soutello, levantando-se á procura dos agasalhos. Ámanhã venho á missa ao Mosteiro, informou, voltada para o monsenhor.

—Será ás onze horas, disse elle, se V. Ex.as não mandarem o contrario.

—Havemos de estar antes, replicou D. Maria Helena.

Despedimo-nos.

*

**

Levantei-me na manhã seguinte, eram dez horas, dando a volta ao terreiro a analysar a Casa, que vira mal quando cheguei.

Era um edificio Renascença, com janellas de curvas abatidas, recortadas em bisel, portaes baixos e largos, ornados de corda aberta em boa gran, cornijas de telhão vidrado, faixeando a casa, e um beirado, quasi rente, á volta.

O portal maior ostentava, por entre os desenhos da cimalha, o escudo de familia. Nos panos da frente e no que olhava para o ribeiro, appareciam asymetricos varios symbolos:—a cruz manuelina, espheras, caravelas, e o timbre heraldico dos senhores de Lares—um cysne segurando uma aspa bordada de castellos.

Internei-me pelo arvoredo, a rememorar o passado do velho senhorio, que governára em tempos muitas leguas em redor.

Á direita, era o jardim que, na vespera, tinha ouvido elogiar. Fui vê-lo de perto. Lá estavam os cravos, as dahlias-sangue, flores variadas de enxofre e carne.

Ao voltar-me dei com Maria Peregrina, que, na extrema, conversava com Salomé, sentadas ambas num banco de azulejo alto.

Juntámo-nos, trocando impressões sobre a Casa de Lares. De passagem, Peregrina chamou a minha attenção para o mobiliario, que dizia deteriorado, mas authentico, e raridades de faiança portuguesa, velhas porcellanas da China, telas, marfim e a sua collecção de esculpturas, copia de bons modelos, com uma ou outra figura assignada.

Entramos em casa á hora em que o sino do Mosteiro annunciava a missa do dia. O monsenhor devia estar a revestir-se. Violet e Salomé seguiram para a Egreja.

Dei razão ao orgulho de Peregrina, insinuando attenção para o resto da grandeza que podia ler-se no interior de Lares.

A sala de entrada, coberta por um tecto em masseira, que repetia na face mais larga o escudo dos portaes, era vestida de carvalho, tendo em baixo um socco de vara e meia de alto, almofadado, e com feitios que variavam, segundo o desenho asymetrico dos cachorros.

Entre o roda-pé e o faixeado alto entalhavam os retratos de familia, emmoldurados em tiras de carvalho bordado, com escudos a marcarem a prosapia dos retratados.

Nos intervallos dos retratos havia contadores hispano-arabes, um cravo; ao centro, um buffete de pau santo.

Sobre estes moveis pousavam alguns bronzes, lavores de marfim, exemplares de olaria, contadores minusculos de oiro e tartaruga, joias,—tudo o que podia recordar a belleza passada, o capricho exotico dum mimo fidalgo e senhoril.

Dentro, a sala seguinte era um compartimento pequeno com tecto em castanho, dourado, talhado em xadrez, de florões caprichosos marcando a juncção dos quadrados, guarnições do mesmo desenho e um socco desegual. Em volta bancos gothicos guardavam nos escaninhos preciosidades, bugigangas de Arte.

Era nesta sala e sobre umas credencias, muito enfloradas de boa talha do renascimento, que pousavam as melhores estatuetas da collecção.

Percebia-se o amor posto na sua guarda, tão escrupulosamente tinham sido conservadas. Nalguns panos da sala, havia telas esbatendo talento, sonho, ingenuidades épicas.

A parede principal era coberta por uma arvore genealogica, tracejada em pergaminho, oleado de velhice, onde uma rêde de linhas descompostas prendia escudos polychromos, manchas de grandeza maltratada.

Em frente, no outro pano, pendia uma armadura incompleta que remontava ao tempo de Pedro II.

O resto da casa condizia em arranjo com as duas salas; espalhavam-se pelos compartimentos armarios, arcas, contadores e camas de muitos seculos.

Ao passo que iamos vendo o mobiliario, iamos discutindo algumas peças de que Peregrina fazia a historia.

De repente viu o relogio, e, disse, dirigindo-se-me:

—Tenha paciencia; é tarde e não posso deixar de ir á Egreja. Dentro de um quarto de hora devo voltar.

—Tambem vou, informei.

*

**

Quando entrámos no Mosteiro, urdia Andrada, discreto e avaro de gestos, a ultima parte da Homilia.

Fixou-nos, alheando-se logo da nossa entrada, e proseguindo:

—Vou terminar, irmãos em Deus, aconselhando-vos ainda e sempre a serdes bons.

Os Evangelhos são mero processo na vida superior; a Fé é o exercicio inconsciente da Bondade.

Furtae-vos a julgar os delictos alheios: os verdadeiros actos culpaveis são as más intenções, mas nestas só Deus e os peccadores podem entrar. Dizei com David, no Psalmo XXV—a ti, Senhor, levantamos a alma!

Mas para que ella suba, despi-a de formulas. É pela Bondade que se eleva. Não batalheis contra os maus, pois que ninguem sabe ao certo quem são os maus: a vingança dos fracos é esperar a queda dos fortes.

Mas não devemos desejar e menos ainda promover a sua queda. Amae a todos; e fechae os livros santos, pois que elles são formulas, quando sentirdes Deus em vós!

Amae a Biblia pelas suggestões que vos der, incidentemente!

Sabei amar e não precisareis de ler.

Ao acabar a missa, trocámos cumprimentos com o monsenhor, as Senhoras de Soutello e ainda com um novo personagem que appareceu a reverenciar Peregrina, num desconcerto grosseiro, embora amavel de intenção.

Peregrina disse, entre parentheses de sorrisos, apresentando-mo:

—É o Sr. Manuel Thomé—o traço de união entre a Democracia e o Mosteiro.

Attentando nelle e ouvindo-lhe, por momentos, a philosophia alinhavada nas brochuras baratas,—vi que era um arremêdo dalguns enchedores de gazetas, que sacrificam á terceira refeição o banho diario.

Em dez minutos discorreu sobre politica, economia, moral, vida amoral.

Salvou-nos de dissertação mais estirada um pequeno de physionomia antipathica, com geitos de saguí—um Thomé em miniatura, que, á semelhança do pae, usava as mãos descidas, como a procurar vocações no chão.

O pae, o Sr. Thomé, explicou que o pequeno lhe esgarçava os bolsos do casaco, em repelões de fome, pois que era fraco, a missa fôra tarde e elle viera em jejum.

E nós, em côro,—Peregrina, as senhoras de Soutello, e eu:

—Que o pequeno tinha razão; fosse o Sr. Thomé repastar-se com a familia, pois era preciosa ao Mosteiro a sua saude.

Suspirei de allivio quando o vi longe. Maçava-me a ingenuidade daquelle phonographo de democracias idiotas. Daquillo tinha visto em Lisboa.

E Peregrina, dando pelo enfado:

—Coitado, é tão nosso o exemplar! Conheço os inferiores de quasi todos os paizes. Mas o typo Manoel Thomé é caracterizadamente português. Veja o seu desdobramento no parlamento, no comicio, na escola, na chronica litteraria—em toda a parte. É a democracia soez, pintada de cynismo, a pompear requintes tirocinados em sociedades de infimos.

E num encolher de hombros:

—Vamos tambem almoçar. Sigamos as indicações da Providencia, que, desta vez, foi o pequeno.

Dirigimo-nos para casa.

Conversei as amarguras de Peregrina até ás seis horas da tarde do meu segundo e ultimo dia de Lares.

Áquella hora abracei a Artista, e parti para Guimarães com um maço de papeis. Este maço compendiava uma parte da sua vida, alguns dos episodios que mais a vinculavam á desgraça, cuja historia prometti escrever.

Vou cumprir. As tempestades que a sacudiram e lhe determinaram as perversões e quedas de vontade ultrapassam a pathologia conhecida.

Este livro edita um Novo-Mundo interior. É a teia de sonhos e delirios duma grande Artista, desvairando á mercê dos nervos,—afinal a biographia, um tanto romanceada, duma figura singular, cuja obra existe e é o fio-mestre desta novella, que vale bem o subtitulo—Tragedia extranha.

Nova Sapho: Tragedia Extranha

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