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Lava de um craneo

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Quantas risadas se escutam perdidas no ár, que ás vezes são um punhal invisivel, brandido por mão diabolica, um veneno propinado a occultas, que infunde na vida o desalento, o tedio, a indifferença por todos os grandes sentimentos que nos agitam e nos elevam! O riso é a expressão mais energica do desespero, quando elle tem um timbre satanico, que gela, e se repercute na alma como o estampido de uma detonação que fulmina; então, mata mais do que a ponta de um estylete penetrante, embebida no aconito baço, que fere e não deixa vêr a cicatriz. Quem não ha soltado uma vez na vida uma d'essas risadas, que não seja uma loucura, uma impiedade, uma provocação, uma mentira, talvez um crime? Um dia ri tambem d'esse modo; é remorso que ainda hoje me punge.

Eu vivia ignorado, obscuro, trabalhando na minha agua-furtada, alimentado pela febre da aspiração, pelo pensamento de exageradas vigilias; era a contumacia da desesperação que me dava forças, e me fazia caminhar incansavel sem saber para onde. Este vacuo da existencia amputava-me para todas as distracções, via em tudo uma futilidade, sentia-me máo, com uma vontade de torturar, de contradizer, de estar sempre em hostilidade com todas as idéas que não fossem as minhas. A dialectica fôra para mim uma arma, que ao passo que a manejava com mais presteza, me tornava mais intolerante. A solidão déra-me por um excesso de vida subjectiva uma susceptibilidade tactil, tornava-me perscrutador, analysta; pretendia lêr em todas as physionomias, deprimil-as ante a minha consciencia, como um juiz boçal, que não póde convencer-se de que o réo que interroga esteja innocente. Saía para as ruas, a luz opprimia-me, a multidão atropellava-me, sentia-me olhado, como nos tempos do absolutismo theocratico aquelle que vergava ao peso do anathema.

Um dia saí para respirar o ár livre de uma bella manhã de verão; uma veia sarcastica, provocadora, não deixava harmonisar-me com a serenidade da natureza. Vinha pelo mesmo passeio um sujeito magro, fumando uma ponta de cigarro. A distancia ainda comecei a analysal-o; cada vez que o fitava sentia em mim uma hilaridade irrepressivel; parecia-me uma cara insignificativa. De mais perto representava-me uma incarnação do grotesco, do comico objectivo, como se encontra nas goteiras das cathedraes da Edade media. Trazia uma vestimenta velha, esfarrapada, que produzia uma antithese perfeita com a sua edade. Mais ao pé, vi que tinha um fulgor de vida nos olhos, o movimento, a expressão de uma intensa actividade interior. Eu tinha caminhado para elle com um riso mofador, com pretensões a observal-o, este casquilho em quinta mão, e fui-lhe ao encontro a pretexto de accender um charuto.

Conheci então o valor da phrase com que o povo exprime um desgosto intimo e repentino: caiu-me o coração aos pés. Via n'aquelle fato esfarrapado de escovado, a lucta de uma alma, que arcava com a miseria, de um homem, que aspirava á decencia, e que proseguia temeroso, como conhecendo que a vestimenta o degredava e o destituia de importancia, que um descuido qualquer o expunha aos apupos da vadiagem. Assim explicava commigo aquelles áres affectados de elegancia, que despertaram a risada, que resôou só dentro em mim. Era tambem criança, tinha uma figura trigueira, uma certa vivacidade de movimentos, uma timidez que se não accusa e se transforma em reconhecimento á menor consideração.

Pedi-lhe lume com um tom levissimo de ironia. A affabilidade desarmou-me; o coração doeu-se ao primeiro impulso de sua crueldade. Tinha vontade de confessar-me seu amigo; era-o n'esse instante, com todas as veras de alma.

Dias e noites a imagem do pobre rapaz a fluctuar-me na mente; eu estava indisposto commigo, procurava equilibrar a vida de modo que podesse alcançar essa virtude sublime da bondade, filha quasi sempre da serenidade e da superioridade de espirito. Era ainda cedo para mim. Não tornára mais a vêl-o: julguei-o uma apparição diabolica, que viera inverter uma acção innocente da vida em uma preoccupação, que me perturbava a tranquilidade.

Uma noite, saia eu do theatro: o frio regelava os membros, a escuridão era profunda como as trevas visiveis de que falla Milton. Esperei á porta que escampasse. Por um acaso feliz deparei a meu lado com o mesmo sujeito que um dia soube inverter-me um riso insignificativo em remorso. Tinha ainda a mesma compostura, esse apuramento que fazia rir os que não soubessem penetrar os dolorosos mysterios da sua existencia.

O pobre rapaz, não sei que franqueza leu no meu rosto, que se chegou para mim. Poz-se a commentar o espectaculo; pouco depois, estiou e partimos juntos. Até aqui nada de interessante.

– Quanto mais estudo (disse-me elle, cansado de andar e de fallar), tanto mais se me alarga a solidão do espirito; cada dia encontro menos pessoas com quem prive, caminho, e a cada passo me vão ficando mais longe. Quem não entender isto e se revoltar contra a minha frieza, dirá que é orgulho, e egoismo até; os que se doerem de mim dirão que é misanthropia. A meditação é como um segredo, que pésa quando não ha a quem se conte; mas se eu encontrasse uma mulher a falar-me de amor, sacrificava-me a ella, para vêl-a mais ditosa que a pobre Frederica de Göethe. É a primeira vez que conversamos. O meu amigo deve estranhar esta liberdade; sou assim, amo a franqueza quando não busca rodeios para convencer, e tem a força da expansão sincera, a ingenuidade simples, que não sabe alliar a amisade com as pragmaticas. A franqueza d'este modo admira-se, e eu tanto mais, porque a tenho visto sempre usada como pretexto para dizer insultos impunemente. Acho-me solitario no meio da sociedade, e tenho ainda não sei que terror de me vêr perdido, atropellado entre as massas. Vivo assim desde criança; como criança fui tambem poeta, cantei porque tinha medo, queria distrahir-me. Eu chamo-lhe meu amigo, porque me escuta; era quanto bastava para lhe ficar reconhecido. A maior parte das pessoas que me ouvem riem-se de mim. Falo sobre a genese das religiões, a origem dos governos, as relações da arte com a sociedade, todos os grandes problemas que nos agitam; abanam a cabeça, e dizem com ár compassivo: «Utopias dos vinte annos.» Outras vezes, descrevo a formação da terra, procuro explicar as evoluções da anthropogenia com a cosmogonia, o aperfeiçoamento dos sêres e a sua decadencia pelo gráo do calor que a materia conserva e vae irradiando; obedeço á pressão da causalidade que me obriga a explicar a mim mesmo os phenomenos que vejo, e riem-se, perguntam-me onde estudei, que diplomas tenho das Academias, e voltam-me as costas ludibriando-me, porque não querem admittir a sciencia sem a auctoridade, vêem como profanação um leigo explicar o que só está á altura da intelligencia dos cathedraticos. Tenho tido muitos d'estes desgostos na vida. Os homens que têm certa bondade, tambem me dizem, que a edade me fez todo idealista, que os annos me darão um caracter pratico de que careço. Ás vezes, tendo passado a noite em vigilia a pensar, cheio de frio, com fome, canso-me a fallar, para receber, ao cabo de um esforço inaudito, uma gargalhada brutal. Deos sabe quanto custa affazer-me á solidão absoluta. A solidão, é verdade, devasta o espirito, porque obriga á representação interior, dando-lhe um relêvo maior do que a realidade. Serão utopias tudo quanto tenho na cabeça? É uma lei natural. Ha na vida intellectual dois periodos, um de creação, outro de realisação. Hoje concebo um ideal que não posso determinar; porque ha de vir tempo em que saberei sómente dar fórma ao que senti. Convem não rir desapiedadamente de todas as theorias da mente febril da mocidade, porque ao approximar-se a edade esteril da força, quem ha de realisar o que não ideou? Bem sei que um grande poeta disse antes de mim: «Uma grande vida, é um pensamento da mocidade realisado na edade madura.» Em tudo isto vejo uma força desoladora no homem, que o domina em tudo, e era pela analyse d'ella que poderiamos entrar na essencia dos actos de sua vida – é o egoismo. Quando o homem se vê compellido a reconhecer uma superioridade no seu semelhante, fórma d'elle um semi-deus, porque, então já não é outro homem que o sobrepuja. Christo é uma idéa transmittida ás gerações, que ellas concretisaram em um nome para comprehendel-a. E depois, porque um homem egual a nós a manifestava, o egoismo salva-se fazendo-o – filho de Deos. Arranca-se a Illiada das mãos de Homero, porque o orgulho do homem não consente que o homem o exceda. Vico representa na sua hypercritica a humanidade. Perguntamos, quem inventou a alavanca antes de Archimedes demonstrar a sua lei? quem descobriu o parafuso, a serra, bases de toda a mechanica? O egoismo occultou quanto pôde o segredo; apenas a mythologia responde com uma divindade allegorica, um Saturno, Perdice, Pan e Triptolemo. —

O pobre rapaz falava de um modo precipitado, convulsivo, como se lhe faltasse o ár. A escuridão da noite não deixava lêr-lhe no rosto a volubilidade da expressão. De repente, parou á porta de um casebre velho, situado em uma viella estreita e infecta. Pediu-me para subir. Eu não podia resistir-lhe; cada palavra vibrava-me cá dentro como um arranco. Fomos tacteando nas sombras, por um caracol de escadas carcomidas, que nos faltavam aos pés. Ia-se-me esclarecendo o mysterio d'aquella existencia. Por fim chegamos a um quarto pequenino e baixo, com um ár mephitico, saturado de fumo de tabaco. Elle acendeu uma vella de cebo roida dos ratos, que tinha presa no gargallo de uma garrafa; a enxerga com uma manta embrulhada achava-se a lastro. A miseria arripiava-me. O pobre rapaz deitou-se sem forças; vi-lhe então, á luz mortiça, uma pallidez cadaverica. Tive medo do seu silencio. Elle estava envergonhado de tanta indigencia, e procurava rir-se, ridicularisando-a:

– Não extranhe vêr-me n'esta trapeira; ha uma analogia entre ella e a minha cabeça, onde as idéas refervem em tropel confuso, e se conflagram e se destroem. Estas teias de aranha são ás vezes a minha distracção nas horas de enfado; divirto-me como o Mascara-de-ferro, como Spinosa, Magliabechi e Silvio Pellico. É em que me pareço com os grandes homens. Deixemos isto; conversemos a serio diante de quem não sabe rir-se de mim. Eu tambem tenho pensado na organisação de uma sociedade perfeita, como Platão e Cicero, Campanella, Thomaz Morus e Fenelon; mas só encontro essa perfeição no momento em que os vinculos do direito que prendem as nossas relações sociaes, e os mysterios e terrores que as religiões incutem, fossem excluidos pelo desenvolvimento completo da idéa do Bello; quando deixassemos de praticar uma acção, que vae contra as maximas do direito ou da religião, não por ser injusta ou immoral, mas porque repugna ao sentimento do bello. A Arte sobre tudo! é ella só que nos póde alcançar conjunctamente a perfeição plastica. Assim a anarchia, a negação absoluta de todo o governo fóra de nós, constitue o ideal do estado; a lei era a consciencia de cada um, a consciencia sempre incorruptivel a todo o interesse egoista. Porque a Arte é synthetica, mais do que a religião, a philososphia e a moral, porque só ella faz o accordo incondicional das vontades por uma emoção universal. Como chegar um dia a esta perfectibilidade! Não se vae lá de repente, a natureza não dá saltos. As revoluções pela idéa pódem tudo; não se confia n'ellas, nem se emprehendem, porque os resultados só os gosa o futuro. É esta sciencia nova da Sociologia que ha de levar mais longe a humanidade. A Edade media, o grande lethargo depois da civilisação da Grecia e Roma, foi ampliada pela passividade mystica do christianismo; é uma impiedade que ninguem talvez acredita. A esmola, a onzena sobre a bemaventurança, era o principio da dependencia e da desegualdade, a aniquilação do trabalho e da actividade; a reprovação dos juros, o stigma impresso sobre o judeu, elemento industrial na sociedade nascente, eram a inercia do capital e do espirito de empreza. A verdadeira doutrina é um cathecismo popular de economia social. É por esta sciencia que nos ha de vir a libertação, desde que o homem reconheça que produz mais do que consome. O trabalho é o unico titulo da propriedade, a sanctificação da vida. O trabalho é para mim uma consolação, um orgulho; sou como Plauto, que fazia rodar um moinho, e nas horas de descanço escrevia as suas comedias; como Spinosa, que gravava vidros para se alimentar nas horas em que se absorvia no quietismo do pensamento e ampliava a synthese physica de Descartes á moral humana; eu toco na orchestra de um theatro; de dia penso.

E o pobre rapaz parou em meio, de cansado; depois recomeçou, fazendo-me a historia do trabalho:

– O homem ao destacar-se do ultimo élo da cadeia dos sêres, sentiu-se forte e senhor da terra. A natureza offerecia-lhe por toda a parte seus peitos uberantes, e este rigosijo de harmonia ligava a sua existencia á vida pantheistica do universo. A grandeza do homem n'este cyclo genesiaco, symbolisaram-na os escriptores sagrados no reflexo de graça e de innocencia que descia das alturas sobre a sua fronte; os escriptores profanos, menos inspirados pelo idealismo espiritual, retrataram-a na plastica, nas fórmas gigantes do corpo e na magestade homerica de uma estatura heracleana. N'este primeiro dia, foi o homem como os anjos, via e falava face a face com a divindade; n'este primeiro dia foi um gigante da terra, dominava pela força cyclopica. Ambos os dois mythos têm um fundo de verdade revelada pela inspiração e intuição do passado aos prophetas da historia. Senhor e rei na creação, o homem deixou-se enleiar no seio voluptuoso da natureza. Admirou e caiu adorando. N'esse instante descobriu a sua nudez, e escondeu-se; sentiu a fome e a sede e as dôres do desterro. O outro mytho, mais violento e terrivel, para filiar n'essa queda o naturalismo e anthropomorphismo, fal-o mergulhar no bruto, e o satyro, o minotauro, é o homem a confundir-se na cathegoria inferior dos primates. Á queda succedeu a rehabilitação, como ao occaso a nova aurora de luz. Era a lei eterna das antitheses. Foi o trabalho o signal da rehabilitação, será o caminho para a apotheose. Sic itur ad astra. Nos mythos do Oriente, tenebrosos e tragicos, o trabalho é um stigma que pésa sobre o homem, é a dor, a atribulação, é a terra produzindo cardos e espinhos, fecundada pelo suor do seu rosto. É o enigma da vida a ser iniciado pelo soffrimento e o soffrimento a retratar a vida nomada da raça primitiva, na sua passagem através do dezerto. Nos mythos do Occidente é sublime o ideal do trabalho: ahi é a gloria dos semi-deuses, é a vida errante mas heroica. Chiron ensina o mysterio da força. Os trabalhos de Hercules, os trabalhos de Theseu, eis outros tantos passos para a elevação do homem, perdidos hoje completamente nas sombras imperscrutaveis do mytho. Nos trabalhos de Jason e dos Argonautas está symbolisada a inauguração do commercio de toda a raça jonica. No Oriente, o trabalho é uma fatalidade religiosa, um anathema do primeiro passo do homem. O christianismo, creado no berço de todas as religiões, vindo da Asia, transportou comsigo o mesmo dogma fatidico, mas com expiação. Suavisou o golpe da espada flammejante, que lançou o homem fóra do Eden. Exagerou a culpa para perdoar o castigo; suscitou no interior do homem uma luta, luta escura e tremenda, um eu

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