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veni, vidi, amavi

para Hilda Hist

O primeiro tem uma tatuagem no pulso esquerdo, “veni, vidi, amavi”, eu não conheço mais ninguém nessa cidade. O restaurante é ideia dele, um sushi à vontade, eu não conheço mais ninguém nessa cidade. Até hoje tenho dificuldades em separar o português do espanhol, dizer de que país venho. Ele insiste. Eu ofereço Brasil e Argentina e ele escolhe o Brasil, eles sempre escolhem o Brasil se o assunto é sexo. Às vezes dizem que não pareço, eu não sei o que isso quer dizer. Quando estou escrevendo em português sempre preciso de um dicionário. Se pudesse, escrevia todos os diálogos em castelhano.

— Eu não curto asiáticos — ele me diz, eu não sei o que isso quer dizer.

As noites de Hong Kong são feitas de neon, mas Xavier Lam nasceu em Macau. Quando nasceu, em 1980, Portugal ainda concedia cidadania a seus ilustres filhos ultramarinos. Agora já não mais. Xavier Lam é portanto honconguês e português, mas não curte asiáticos. Nem tampouco fala a língua de Camões. Não tem um pelo nos braços, a tatuagem no pulso é a única marca numa pele impecável.

O pai arruinou a família com suas dívidas de jogo. Hong Kong vive de bancos, Macau da jogatina. A mãe abandonou o marido e cruzou a baía com o filho, sessenta quilômetros separam as duas ilhas, três horas numa barca. Xavier não lembra da travessia. Ao menos isso temos em comum.

Eu estou tentando entender como funciona isso de não gostar de asiáticos, parece que nós gays só precisamos de uma meia desculpa antes de converter-nos ao fascismo, no Blacks, no Asians, no Latinos. Ele não sabe explicar muito bem, ele não mergulha o sushi no molho de soja porque as calorias extras lhe parecem desnecessárias.

— É só uma preferência — ele diz.

Eu já sei que essa janta não vai dar em nada, eis um mato que jamais viu um cachorro. Ele, no entanto, nem desconfia, continua tentando, me conta essa história sobre seus dois relacionamentos mais longos, um francês e um americano. Eu sorrio em silêncio e em silêncio bebo meu chá de arroz.

Abandonei o curso de Letras no terceiro semestre para ir morar com a Hilda Hilst. Não a avisei de que estava chegando, avisá-la teria sido inútil uma vez que ela ainda não sabia quem eu era. Era março, coloquei uma mochila nas costas e apareci um dia no sítio dela. Quando ela me abriu a porta, como se a Catherine Deneuve em pessoa me tivesse aberto a porta, sempre achei as duas enigmaticamente parecidas, a Hilda Hilst e a Catherine Deneuve, quando ela me abriu a porta eu abri a boca e não consegui dizer nada. Ela tinha um cigarro aceso entre os dedos e uma expressão que dizia que eu era o menor de seus problemas naquela terça-feira. Com mãos trêmulas entreguei a ela um papel no qual tinha copiado um de seus poemas:

Resolvi me seguir

Seguindo-te.

A dois passos de mim

Me vi:

Molhada cara, matando-se.

Cravado de flechas claras

Ramo de luzes, de punhaladas

Te vi. Sangrando de morte rara:

A minha. Morrendo em ti.

Minha letra em tinta vermelha estranhamente geométrica, um fantasma de família, minha letra em tinta vermelha naquele papel amassado que mais parecia um guardanapo, o trouxera no punho apertado durante todo o trajeto de ônibus até Campinas e a Casa do Sol. Ela me olhou dos pés à cabeça, os olhos duas facadas num mar de sardas, virou as costas e foi cuidar de seus cachorros. Eu fechei a porta atrás de mim e me sentei no sofá da sala. Durante três dias não dissemos nada um ao outro.

No terceiro dia ela soltou os cachorros.

— Já vou avisando que aqui é assim mesmo — foi a primeira coisa que a Hilda Hilst me disse. — Se você é do tipo que não gosta de cachorro, eu vou ficar com ódio.

Os cachorros, trinta, trezentos, um exército de vira-latas, encheram a casa de vida, pelos e sujeira. Hilda Hilst se desdobrava em mil para agradá-los a todos, no final da manhã costumava sair para passear com eles em bando, mas nunca ia muito longe. A expressão em seu rosto, ao retornar dessas caminhadas, era a de quem perdera algo no caminho. A Casa do Sol era um emaranhado de árvores e sombras, alamedas de palmeiras e figueiras centenárias, um labirinto verde debaixo de um calor sufocante. Também de sol e sombras era feito o rosto de Hilda Hilst, o mistério de um desamparo que se desfazia com um palavrão bem pronunciado e meia garrafa de vinho do Porto.

— Outro dia veio uma moça aqui da universidade, passamos a tarde conversando, e, na hora de se despedir, ela me disse: “Você parece uma pessoa tão jovial, fala mil palavrões, morre de rir, e depois, o seu livro é tão desesperado…” Eu fico besta de ouvir isso, você entende?

Mas dava para ver em seus olhos que ela duvidava que eu entendesse. Dava para ver em seus olhos que ela duvidava de qualquer coisa que não fossem seus cachorros.

O silêncio no sítio era quase insuportável. Apenas os cachorros falavam em sua língua desesperada, os cachorros, os grilos e as vozes na minha cabeça. De sua boca de poeta, nada. Nem da boca nem dos dedos sentados à máquina, a máquina acumulando poeira no escritório, a máquina com uma folha em branco no cilindro, os dedos fumando um cigarro na janela. Tampouco os empregados falavam, de mim pareciam ter receio por tabela, orbitavam ao redor da casa recolhendo copos de uísque e espanando os livros com um misto de indiferença e fascinação, com cara de capivaras cruzando a estrada.

— Chico, — pediu Hilda Hilst quando um dos cachorros fez cocô na sala, — você limpa pra mim a bosta do cachorro?

— Não limpo bosta de cachorro — respondeu ele com a clareza de suas vogais abertas, o ritmo de um Norte longínquo.

Hilda Hilst não se fez de rogada, a voz falsamente dura:

— Se eu, que sou uma doutora, limpo, por que você não pode limpar?

— É uma questão de gosto, doutora Hilda.

Hilda Hilst caiu na risada. Não havia melhor antídoto ao silêncio daquele sítio que seu louco riso de mulher lúcida.

Não era de hoje a insônia, essa égua heroica de minhas noites em claro, essa égua heroica alimentando-se de meus sonhos. À noite a casa era engolida pelo esquecimento e eu caminhava entre livros e porta-retratos, vasos e quadros, eu fantasma sem nome sozinho em mundo alheio, a casa eterna e frágil feito um canteiro de flores, um canteiro de espinhos.

À noite a casa respirava e eu ouvia vozes que falavam apenas comigo, que me lembravam de todas as minhas imperfeições, de tudo o que eu já tinha perdido. A casa me revelava seus segredos em forma de oração, pedia que não lhe dessem muitas mágoas, muitos martírios. Quando eu fechava os olhos, em meu delírio, a égua sentada em meu peito, tinha a impressão de ouvi-la falando com um sotaque português noite adentro. Ai, meu Deus, poucas mágoas, poucos martírios. A casa à noite tinha sede, de dia sombras. E os mesmos porta-retratos.

— Você tem medo de mim — ela dizia, e era verdade.

Às vezes o telefone tocava e alguém do outro lado da linha pedia para falar com a Hilda Hilst e não acreditava quando ela dizia ser quem era. Desligavam. Choravam. Riam histericamente. Hilda Hilst me pedia que lhe acendesse um cigarro porque sua mão tremia.

— Não me interessa ficar falando, senão seria senadora ou política. Quero escrever e só pude escrever tudo isso porque não falei, fiquei em casa escrevendo. Demora muitos anos até você conseguir alguma coisa boa, é dificílimo.

Comíamos em pratos de barro, os de vidro tinham o costume de se estilhaçar sozinhos, as energias que regiam o sítio eram muitas e luminosas, forças ocultas que impeliam seus moradores a descobrir o segredo das coisas.

Anos mais tarde, quando minha avó faleceu, eu vendi todos os móveis do velho sobrado aos novos locatários, que me pagaram uma mixaria por tudo mas não quiseram de jeito nenhum ficar com as pesadas cortinas de veludo. Levei-as comigo, pesadas, puídas, maciças, e as guardei debaixo da cama até o dia que enfim decidi me desfazer delas, o dia que comecei a fazer as malas. Resgatei-as das sombras, pensando em talvez vendê-las, e, ao estendê-las na sala, ainda pesadas, ainda maciças, recebi enfim a mensagem que me enviavam do outro lado do mundo: as cortinas estavam todas chamuscadas por dentro, queimadas de preto, inexplicavelmente, como uma caligrafia escrita a brasa e fogo. Mas a essa altura também a Hilda já tinha falecido.

Eu passava minhas tardes de março escrevendo em folhas avulsas que à noite despareciam. Também meus lápis sumiam, eu passava as noites atrás de papel e caneta, passava as noites procurando o que tinha escrito. Pela casa havia dezenas de fotos do Wittgenstein, todas elas emolduradas. Às vezes eu me pegava por horas a fio parado diante de uma delas, às vezes eu ouvia sua voz e às vezes era a minha própria.

— A vida dele foi maravilhosa, ele era um louco deslumbrante.

Às vezes eu acho que sonhei com tudo isso, que a meu lado, em plena madrugada, vestindo um pijama rosa, estava Hilda Hilst.

— Eu sempre tive muito medo de ficar louca. Na minha vida inteira o meu grande temor sempre foi esse.

Não sei por quanto tempo ela esteve ali, olhando-me olhar uma foto emoldurada do Wittgenstein, não sei por quanto tempo eu estive olhando a foto emoldurada do Wittgenstein e não sei por quanto tempo a maior poeta brasileira viva esteve a meu lado, vestindo um pijama rosa, na sala de estar de sua casa, entre a luz e a sombra de uma noite de lua cheia.

— Eu sei por que você está aqui — ela me disse, e quando abri os olhos já estávamos debaixo da figueira.

— Eu conheci o Caio numa vida passada. Vocês dois têm a mesma voz, as mesmas maneiras. Quando vi você na minha porta, fiquei olhando pra você, o coração disparado, achando que o Caio tinha voltado. É cada coisa que acontece aqui nessa casa...

Hilda Hilst riu, a lua cheia desenhava sombras prateadas ao redor de nós três, as sombras se moviam em círculos e nós em pêndulos, eu quase não conseguia ficar de pé. Os cachorros uivavam, os grilos e os empregados também. Ela disse que eu me apoiasse na figueira, ela disse que a figueira era ela.

— Essa figueira sou eu mesma. Nós duas temos uns trezentos anos. Atendemos pedidos. Hoje, aliás, é um bom dia, por causa da lua cheia. Tudo o que eu pedi pra essa figueira deu certo. O que os meus amigos pediram também aconteceu. A figueira deu pro Caio tudo o que ele quis.

O tronco da figueira pesado, puído, maciço debaixo de meus dedos frios, alguém um dia me havia prevenido que a Hilda andava com uns problemas de coração, sessenta anos de cigarros e desregramentos, porém doida, linda, lúcida e insuportável como sempre. Minha cabeça me doía, eu não conseguia mais sentir meus dedos, sentia outra vez como se a caneta se escapasse da minha mão.

As noites de Hong Kong são feitas de neon

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