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I
Fundação da Ordem. Suas tendencias

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Não ha, talvez, exemplo mais flagrante de injustiça collectiva do que a reputação opprobriosa dos jesuitas. Feitas todas as reservas sôbre seus methodos de disciplina e sua casuistica, não haveria exaggêro em dizer que elles são os grandes calumniados da historia.

Razão de sobra tem Monod1 quando nota que nunca se falou da Companhia com serenidade e espirito imparcial, figurando sempre os escriptos sôbre ella em um dos dous extremos: a apologia sem limites, nas obras da seus adeptos; o pamphleto sem critica, nas accusações de seus detractores. A verdade, a probidade scientifica e o amor á justiça parece estarem banidos de tal literatura.

E, entretanto, representam os discipulos de Inigo de Loyola um dos factos mais importantes da humanidade, e nenhuma noção completa se pode ter da evolução das idéas, da historia das religiões, do progresso intellectual e do surto moral do homem, sem estudar sua collaboração continua, preponderante mesmo no seio do Catholicismo, no elaborar a mentalidade das successivas gerações que regeram o Occidente a partir do seculo XVI, e os conceitos dogmaticos definitivamente impressos no clero, desde o Concilio Tridentino até o Concilio do Vaticano.

Tanto bastaria, entretanto, para investigar sua historia com o espirito calmo e desprevenido de preconceitos que deve presidir á analyse dos factos e dos elementos formadores da propria vida.

Quando, a 15 de Agosto de 1534, na capella de Montmartre, Ignacio e seus seis companheiros lançaram as primeiras bases da sua associação, não iam seus designios além da conversão dos musulmanos da Terra Santa. Si fôsse impossivel realisá-la, elles se collocariam á disposição do Papa, que lhes haveria de designar o modo por que pudessem salvar suas almas.

A ultima hypothese se verificou. De Veneza, onde se reuniram, já elevado a dez o numero de socios, tiveram de tornar para trás em 1535, a conselho de Paulo III, em vesperas de iniciar nova cruzada contra os turcos, com o imperador Carlos Quinto e a Republica das lagunas. Voltou-se então Loyola para a missão interior, cuja necessidade, em pleno schisma reformista, se lhe evidenciou tão indispensavel e urgente quanto a propaganda da fé entre os incréos.

Nesse anno, teve a Curia de estudar os estatutos da Companhia de Jesus. Fê-lo com pouca sympathia, causando delongas, impondo restricções, e somente em 23 de Setembro de 1540 a bulla, prophetica em muitos sentidos, Regimen militantis ecclesiæ, confirmou a nova Ordem.

Era exclusivamente uma associação sacerdotal para a missão interior, trazendo como caracterisco o voto especial de fidelidade ao Summo Pontifice, a quem prestava obediencia incondicional, identica á disciplina dos exercitos. Della se serviu desde logo Paulo III, como de tropa auxiliar posta a seu dispôr.

Sua primeira tarefa foi a conversão das massas irreligiosas: pêlo catecismo, para as creanças; pêlo tribunal da penitencia, para os adultos; pêla prédica, para a generalidade dos homens. Devia salientá-la, em tudo, seu zêlo por obras inspiradas no amor do proximo, applicando sempre a bella maxima do Fundador: «Ser tudo para todos, afim de merecer a confiança de todas as almas».

Breve alargou-se a esphera da propaganda. Francisco Xavier, primeiro de uma legião de missionarios, foi evangelisar o Oriente.

A actividade intellectual e moral, e a promptidão, bem como a habilidade com que desempenhava suas incumbencias, grangearam á Ordem a inteira confiança pontificia e tambem a da Curia, que, de principio, vira com pouca fé fundar-se uma congregação nova. Foi-lhe entregue a reforma de conventos, onde a disciplina afrouxara.

Começaram seus membros de leccionar na Universidade Romana. Foram enviados em missão de combate á heresia. Receberam, sem discutir, encargos secretos de alta politica, incumbidos de sublevar a Irlanda catholica contra seus soberanos ingleses, fautores do schisma, que os varios prayer-books evidenciavam. Seu prestigio, fama e valimento subiram logo, tanto que foram jesuitas os theologos pontificios no Concilio Tridentino, Lainez e Salmeron; jesuitas, ainda, os coadjutores da missão que levou á Alemanha, como legado, o grande Cardeal Morone; jesuita, sempre, o segundo apostolo da Germania, van der Hondt, o immortal Canisius.

Cresceu sua reputação de saber: de toda a parte chegavam pedidos de mestres que se incumbissem de reger as cadeiras das universidades. Em seis annos, o ensino superior estava dominado pêla Ordem, mas é preciso lembrar que tal transformação de seu rumo primitivo não se dera por iniciativa de Loyola, constrangido a ceder a pedidos de protectores da nova associação. Acceitando a incumbencia, embora a contragosto, organisou-a e deu-lhe, com a maior energia e habilidade, o cunho especial que a caracterisa entre todas. Dahi resultou, pêlo successo de seus fructos, um quasi monopolio do ensino em muitas regiões catholicas e mesmo em Estados protestantes.

Fôram incalculaveis as consequencias da escola catholica dirigida por elles em puro país da Reforma. A ella se deve, em parte, a reconquista romana nessas zonas que Roma já reputava perdidas.

Por um novo desvio de sua orientação primeira, êste jubilosamente acceito por Ignacio, a Ordem encetou o combate extrenuo, sem treguas nem transigencias, com o Protestantismo. Ao bispo de Modena, Morone, cabe provavelmente a iniciativa da mudança de roteiro. Antes, e até 1552, a lucta contra a heresia, a prédica dos jesuitas, fôra obra individual de cada um delles, ou imposta por ecclesiasticos de hierarchia elevada, ou solicitações de amigos da Ordem. A todas as tentativas se mantivera extranho o Fundador.

Da ida á Allemanha, em 1542, como legado pontificio acolytado por jesuitas, resultara em Morone a convicção da necessidade de prégar a contra-reforma nos países infectados do virus lutherano, não com sacerdotes latinos, mas com missionarios oriundos daquellas mesmas regiões. Dahi a fundação do Collegio Germanico, em Roma, clarividente creação do Cardeal, mais do que de Loyola.

Loyola adoptou a idéa, deu-lhe organisação genial e vasta, e considerou a extirpação do êrro protestante como alvo capital da acção jesuitica. De 1554 data seu plano de campanha contra a Reforma, cujo alcance só mais tarde os papas comprehenderam, plano applicado, sem falhas, a partir de 1573, após a remodelação feita por Gregorio XIII.

Para a duplice mudança nos intuitos primeiros de Santo Ignacio ao fundar a Companhia de Jesus, em ponto nenhum tivera elle a iniciativa. Em ambas as circumstancias, obedecera á ordem ou solicitação de influencias que não pudera evitar: a Curia, os Wittelsbach, os Habsburg, Morone e alguns bispos. Feita a mudança, applicou aos novos conceitos toda a sua incomparavel qualidade de organisador.

A partir de 1555, pouco mais de vinte annos após a fundação em Paris da humilde sociedade de conversão dos musulmanos, a transformação dera-se inteira e absoluta, e as Constituições elaboradas pêlo vidente Navarro davam á Companhia sua feição definitiva de congregação catholica educadora e de Ordem militante anti-reformista. O alto ideal que propugnava era a soberania do Papa e da fé catholica.

Estes titulos houveram sido sufficientes para grangearem posição de destaque no exercito monachal os admiraveis servidores da maior gloria de Deus. Maiores titulos, entretanto, lograram pelos raros dotes no cumprimento de sua missão, dados a época em que surgiram e o partido que abraçaram na lucta, muita vez secular, entre os papas e os concilios.

Vinha a Europa trabalhada por fermentos de dissolução religiosa. Luther, Calvin e Zwingli, invocando a auctoridade dos Evangelhos contra a doutrina romanista, ao mesmo tempo que, em nome da liberdade humana, affirmavam os direitos da analyse individual, rebellavam-se contra as crenças impostas e contra os abusos e os escandalos correntes na Sé Apostolica. Taes escandalos forneceram o principal elemento de propaganda do novo crédo, por entre populações cansadas de exacções.

No proprio seio das potencias catholicas existia poderosa corrente reformista, perigosissima mesmo para a inteireza do dogma, pois visavam os novadores sanear a Egreja na cabeça e nos membros, desde o supremo poder pontificio até os ultimos ramusculos da frondosa hierarchia.

Era a submissão fatal do papado ao predominio conciliar, a pureza da revelação sujeita ás oscillações das maiorias de assembléas deliberantes.

Tudo fêz a Santa Sé para se oppor a tal descalabro. E si, em 1545, Paulo III cedeu ás reiteradas solicitações de Carlos Quinto, e convocou, em Trento, o grande concilio, do qual devia sair purgado o catholicismo, fixado o dogma e extirpados os abusos, só o fez depois de assegurar-se de auxiliares preciosissimos: os Habsburg, a côrte portuguesa, os Wittelsbach e, acima de tudo, a tropa de escol, que eram os jesuitas. Esses, e esses tão somente, eram inteira e absolutamente dedicados aos intuitos da Curia, emquanto os demais estabeleciam condições.

No proprio Concilio, e apesar da condemnação preliminar da heresia protestante, muitas sympathias encontrava a Reforma quanto ás Santas Escripturas, ao peccado original, á justificação pêla fé; o Augustinianismo ainda possuia fortes adeptos. Triumphou Lainez, obtendo da assembléa œcumenica a confirmação da doutrina escolastica medieval sôbre a justificação, rechassada a de Santo Agostinho.

A França e a Allemanha exigiam concessões gravissimas – casamento dos sacerdotes, communhão sob as duas especies, uso da lingua vulgar na liturgia, reforma dos conventos, e, principalmente, reforma do proprio Papado. O Cardeal Morone, diplomata habilissimo, que soube mudar as disposições do Imperador Fernando I, pôde evitar que as exigencias tivessem satisfacção, com grave prejuizo para a unidade da Egreja.

Expor, sem restricções nem refolhos que os prelados-diplomatas tinham de observar para se não tornar irreductivel a opposição; expor o ponto de vista integral da Curia, do Papa, de seu Geral: a infallibilidade papal, a supremacia absoluta do Summo Pontifice sôbre os bispos, sua superioridade sôbre as potencias terrenas – foi a tarefa do jesuita. Este progamma ecclesiastico-politico Lainez defendeu com singular elevação e videncia, e a Companhia sempre propugnou té o triumpho definitivo no Concilio do Vaticano, em 1870, mais de três seculos depois de inicialmente formulado.

Desde Trento, Catholicismo e Companhia de Jesus são inseparaveis, estreitamente e indissoluvelmente unidos seculos afora.

Era fatal a preeminencia dos jesuitas na hierarchia catholica, amigos dos momentos difficeis, defensores abnegados até o sacrificio, heroes de uma lucta sem tregoas a bem da Egreja.

E si esta era a rota seguida por elles no seio da catholicidade, acção por assim dizer intrinseca, nenhum esfôrço poupavam, antes prodigalisavam seu labor para chamarem á grey as ovelhas desgarradas, e assegurarem o predominio dos principios por elles proprios abraçados e defendidos. E era logica e inevitavel tal orientação, ultimo e definitivo rebento do espirito monachal, em sua lenta evolução, desde os solitarios da Thebaida e os stylitas até a admiravel floração mystica, fraternal e humana, que eram os filhos de Francisco de Assis.

Facil seria traçar os pontos capitaes dessa curva ascendente, visando os mais altos fins altruistas da salvação das almas e da caridade christã: do eremita, ou da colonia de eremitas, onde se busca a sanctificação individual, ao mosteiro, no qual o amor fraterno se impõe egual ao alvo da perfeição subjectiva.

O isolamento primitivo dos monges foi dentro em breve substituido por sua progressiva subordinação ás exigencias da Egreja. Primando sôbre tudo, no conceito monachal, o ascetismo tende progressivamente a ceder a primeira plana ás obras praticas de amor ao proximo, de caridade secular. E, em ambas as ordens de idéas, no adoravel Poverello de Assis, encontramos o exemplo que Inigo seguiu com submissão absoluta e intuição genial: na obediencia passiva, que o perinde ac cadaver jesuita copiou literalmente do Santo Stigmatisado; na obra social, que a Companhia de Jesus desenvolveu seguindo o rumo das Ordens mendicantes. Dest'arte, ao clero secular vieram trazer concurrencia formidavel as novas associações monasticas, que dentro em pouco comprehenderam ser sua missão principal a prédica e a salvação das almas.

A esses meios de agir sôbre a massa dos crentes, accrescentaram os jesuitas a funcção educadora, em grau mais alto e mais perfeito do que seus antecessores, a ponto de serem quatro quintos de seus membros ou professores ou estudantes. O successo de seus methodos pode avaliar-se pêlo numero de alumnos, que, em 1660, Böhmer calcula ter sido de 150.000.

A Ratio Studiorum do Geral Claudio Aquaviva, redigida em 1599, e antes as regras pedagogicas de Ignacio, resumiam as experiencias do Collegio Romano; não traziam ideal novo de ensino, mas introduziam na escola o que se julgava incarná-lo.

Além disso, cuidavam os jesuitas muito de polir as maneiras de seus discipulos, afeiçoando-os á vida em meios mais cultos do que o da maioria de seus alumnos. Davam gratuito o ensino. Não sobrecarregavam programmas com os rudimentos de grego, hebraico, arithmetica e geographia, que figuravam na escola protestante; os castigos corporaes eram rarissimos; a doutrina religiosa tambem lhes era extranha, reservada antes ao confissionario.

Por outro lado, a emulação, talvez levada ao exaggero, e a delação mutua systematisada mantinham em constante exercicio o cerebro dos estudantes. A protecção da Companhia acompanhava seus filhos espirituaes pêla vida afora. Assim, por esse conjuncto de circumstancias e pela superioridade de suas escolas sôbre as demais, até meiados do seculo XVII, foram preferidas pêlas familias catholicas, e mesmo, como o provam os annaes dos collegios, pelos proprios protestantes.

Orientada a formação intellectual para a uniformidade, para a obediencia ás regras preestabelecidas, é natural que as iniciativas ahi rareassem e que produzissem taes normas a subordinação confissional. O methodo, um dos mais poderosos meios de dominio usados pêla Companhia, perdurou até que, do espirito analysta, brotaram typos pedagogicos mais elevados, que desthronaram aos poucos a escola jesuita.

A direcção das consciencias na vida real completava a obra iniciada pêla escola.

Não era usual, até o seculo XVI, a confissão frequente dos fiéis. Só em momentos de grande afflicção, em circumstancias particularmente solennes, se approximavam do tribunal da penitencia. Mas, quando se desenhou a tendencia de fazer do confessor o assistente moral, o conselheiro sempre ouvido do christão, ninguem mais do que Loyola preconisou e fomentou a evolução, na qual via um dos melhores meios de combater o peccado. Dentro em pouco, o jesuita confessor gosou de fama egual á do professor jesuita, e tanto quanto a cathedra e a grammatica latina, diz Böhmer, poderia o confissionario symbolisar a Companhia.

Extraordinario exito colheram como directores, principalmente pêla indulgencia que revelavam, pêla extrema restricção que impunham ao conceito de peccado mortal, pêlo ambito correspondente que davam á noção de peccado venial, ao complexo de cousas licitas. Dêsse laxismo ao desapparecimento dos sãos principios da moral, havia um passo, facil e rapidamente transposto pelos casuistas; aliás a Ordem, por mais de uma vez, repudiou toda solidariedade com estes ultimos. Mas a area de tolerancia era vasta, e em tempos perturbados como o periodo das guerras de religião, naturalmente preferiam-se os directores de consciencia mais cordatos.

Assim, a contragosto da Ordem, e mesmo contra suas indicações, se viram alguns de seus membros forçados a acceitar cargos e encargos junto a principes e reis.

Na situação especial dêsses sacerdotes, era-lhes impossivel evitar a politica, pois pêla direcção da consciencia régia fatalmente teriam de pesar actos, intenções e planos dos governos. E redobrou a intensidade do influxo quando, em França, a partir de 1670, tiveram de desempenhar funcção analoga á dum ministerio dos cultos moderno. Em numerosos casos intervieram no sentido das soluções preconisadas pêla Ordem: attestam-no as guerras suspensas pêla paz da Westphalia, a revogação do edito de Nantes, a perseguição ao jansenismo e tantos outros fastos da historia.

A influencia da Companhia, emquanto se manteve forte, sã e disciplinada, só podia exercer-se em sentido nocivo aos interesses nacionaes dos differentes povos.

Associação essencialmente internacional, com o caracteristico de verdadeira milicia papalina, só lhe era licito pensar e agir como até hoje age e pensa a Egreja – em conjuncto e impessoalmente – alheia a fronteiras politicas, pois não ha patrias nem differenciações nacionaes para as almas de que cura o Catholicismo.

Universal em sua essencia e em sua manifestação, á Egreja como responsavel pêla salvação das almas, tanto quanto ao jesuitismo, seu meio de acção, era e é vedado raciocinar sob a pressão de limitados e estreitos interesses regionaes.

Dahi frequentes conflictos entre o papel politico do confessor regio e seu dever religioso: sentimento nacional de um lado, exigencia do principio internacional do outro. Nunca tolerou a Ordem, emquanto viveu o espirito que presidira á sua fundação, qualquer subordinação de seu escopo universal ás conveniencias dos governos locaes, a quem, entretanto, lealmente procurava servir. Nisto residiu sua fôrça por largos annos. A decadencia começou quando os jesuitas se afastaram de sua origem.

Durante longos prazos, por três generalatos, pôde a Companhia manter-se essencialmente hespanhola, e só se disseminou na Italia, graças á profunda hespanholização da peninsula apenina. Em 1581, eleito Preposto Geral o astuto napolitano Claudio Aquaviva, após a curta presidencia do belga Everardo Mercurián, grande foi o desgosto na provincia iberica por ver passar definitivamente para outras terras a direcção que, desde Ignacio, se mantivera privilegio seu. A revolta manifestou-se por tentativas de reformar a Regra, fazendo desapparecer a autocracia creada por Loyola, dando-lhe como succedaneo uma sorte de federação, na qual as provincias, pelo menos a Hespanha, fôssem governadas por vigarios geraes.

Já era outro, não o do Fundador, o espirito da Ordem, onde taes insurreições contra a obediencia passiva se podiam manifestar. Logrou Aquaviva annullar todas as tentativas, até que Clemente VIII ordenou a revisão das Constituições. Ainda assim, conseguiu afastar da Congregação geral os elementos dyscolos, entre elles o celebre Mariana, chefe da conspiração. A assembléa da Ordem, não encontrando como censurar Aquaviva, após inquerito por êste solicitado, deu-lhe ganho de causa e permittiu fôsse o director effectivo das deliberações collectivas. Tanto valeu impedir quaesquer alterações da Regra; e as proprias corrigendas, impostas pêlo Papa, resultaram inefficazes.

Mas, para manter inflexivel a disciplina e consolidar a victoria da Regra de Santo Ignacio nas mãos de Aquaviva, fôra mister se seguissem no generalato homens da mesma tempera e de habilidade egual á dêsse extraordinario jesuita, vencedor a um tempo de Felippe II da Hespanha, da Inquisição e de Clemente VIII. Foi, porém, eleito seu successor o Anjo da Paz, Mutio Vitelleschi, meiga creatura, que solicitava ou aconselhava quando devera ordenar. Sentiu-se immediato o resultado da falta de energia na direcção da Companhia, e dentro em poucos annos a autocracia foi cedendo o logar a uma oligarchia composta dos mais graduados jesuitas, dos provinciaes, dos chefes das casas professas. Relaxado o laço disciplinar, a dissolução da Ordem se manifestou em todos os ramos. O voto de pobreza foi illudido, feitas as doações não mais á Companhia, mas a determinados estabelecimentos, dos quaes o outorgante se tornava administrador. A gratuidade do ensino mantinha-se, mas os educandos se recrutavam nas classes abastadas, afim de offerecerem compensações as dadivas das familias. O voto de obediencia ao Papa mal podia ligar quem desrespeitava a hierarchia ferrea instituida por Loyola.

A sociedade de Jesus entregou-se então ao commercio, á industria, aos negocios bancarios, á usura. De todos os lados chegavam ao Geral queixas da avidez de seus soldados, da sua ganancia no commercio e na captação de riquezas.

Entregues a tal dissolução de costumes e a taes desvios de seu ideal primitivo, não podiam os chefes da milicia dominar de muito o nivel médio dos commandados. Começou então a serie de superiores frouxos, sybaritas, gosadores, descuidados da vida interior para só curarem dos proventos de cargos, onde as divicias abundavam. Quando apparecia um que outro Goswin Nickel, ou González de Santillana, o poder usurpado pelos membros da Ordem e o relaxamento da Regra não permittiam a acção saneadora do Geral.

Desappareceu assim a seriedade com que se entregaram á sua primitiva missão. O ensino ankylosou-se nas formas antigas. Novos methodos surgiam para satisfazer a necessidades novas, e a nada os jesuitas attendiam, mantendo, immutaveis, normas já envelhecidas. Onde os seminarios obedeciam á sua inspiração, a ignorancia do clero avultou. Nem mais o monopolio da instrucção conseguiram manter, e de todo lado surgiam com os novos ideaes pedagogicos, novas escolas, novos programmas.

Phenomeno analogo se notou na economia da Ordem dentro na Egreja, no dogma que defendiam: e viu-se então jesuitas acompanhando o gallicanismo do govêrno de Luiz XIV e escrevendo contra a infallibilidade papal e a supremacia do bispo de Roma. Em 1687, foram condemnadas taes obras a ser queimadas por mãos do carrasco.

Intolerantes em sua missão, quando encontravam concurrentes de outras congregações, despertavam rancores extremos por parte das Ordens mais antigas, ás quaes offendiam e perseguiam, tratando-as com menospreço. Do mesmo modo agiam com as auctoridades ecclesiasticas, baseados nas bullas de Paulo III e seus successores até Gregorio XIV, que lhes asseguravam o privilegio de terem como chefe directo o papa e não dependerem do ordinario local, e lhes conferiam faculdades quasi illimitadas.

Em suas controversias, eram tenacissimos na argumentação e nos meios postos em pratica para fazer triumphar a todo transe suas convicções. Defendendo as theses da Egreja, não conheciam limites a seus esforços. Quando seu ponto de vista discordava da opinião da Curia, sabiam ameaçar e fazer pressão sôbre o Papa, acenando-lhe com a convocação do Concilio Œcumenico. Foi prova eloquente disto a attitude dos jesuitas na sua longa disputa com os dominicanos de Hespanha sôbre a doutrina da graça; avocada a disputa perante a Curia, o Papa inclinou-se para a these dominicana, e os jesuitas tanto ameaçaram que Clemente VIII falleceu, sem ousar contrariar a poderosa Companhia.

Era natural que taes falhas lhes augmentassem o numero de desaffectos, e que, baseados nellas, se congregassem inimigos para mover guerra á Ordem.

Não será exaggero lembrar que no seculo XVII, a opinião da França dictava a lei para a Europa. E nesse país, exactamente, a lucta se desenhou com mais intensidade e maior odio. Não eram somente as congregações rivaes, humilhadas, que revidavam golpes antigos. Eram os adversarios da primeira hora, tambem: o Parlamento e a Universidade – as duas maiores auctoridades no direito e nas letras, – que nunca haviam desarmado e agora renovavam seus ataques.

Era ainda o jansenismo, que os jesuitas haviam perseguido por suas sympathias augustinianas e pêla grande acceitação encontrada nas espheras mais cultas e mais altas da sociedade francesa; era o jansenismo que, por intermedio de Pascal e de Port-Royal, lhes perturbava a vida com fundadas e terriveis criticas moraes e religiosas.

Por mais que a Curia lhes viesse em auxilio, e embora a bulla Unigenitus censurasse officialmente a nova philosophia religiosa, ficou o fermento da analyse, e, em segrêdo, nas almas mais elevadas, um espirito novo ia formulando novas exigencias de vida em uma doutrina que a Companhia porfiava por manter immutavel, rigida e hieraticamente amortalhada nos actos Tridentinos. E era logico e inevitavel assim procedesse, tal a fatalidade de origem e de missão da milicia pontificia creada por Ignacio.

Por sua vez, o influxo protestante, tão cruelmente combatido pela Egreja militante, vingava-se, pondo em confronto seus methodos de ensino e suas possibilidades philosophicas com a escola, já em franca decadencia, dos jesuitas, e a paralysação intellectual decorrente de sua pedagogia.

A par do declinio da Ordem, exaggerando vicios e falhas consecutivos ao abandono da primitiva Regra, alçava-se e fructificava o espirito analytico progressivamente predominante nos meios cultos. E, dentro em pouco, somente o rei e algumas altas auctoridades ecclesiasticas defendiam os jesuitas, formidavelmente guerreados pelos mais puros representantes da intellectualidade e dos sentimentos religiosos da França.

Que uma causa geral – a decadencia do Instituto pelo desrespeito ás Constituições de Loyola – agia para precipitar a crise, nenhuma duvida pode suscitar, pois queixas identicas, exprobações eguaes se faziam ouvir em todos os países.

Não foi a França quem primeiro supprimiu a Ordem, em suas fronteiras: foi Portugal em 1759. Mas, em menos de dez annos, a medida se tinha generalisado, e de todos os governos tinham emanado os actos de expulsão nos respectivos territorios: em 1763, em França, após o escandaloso processo Lavalette, que foi o processo da Ordem, a vingança do Parlamento, da Universidade e de Port-Royal; em 1767, na Hespanha, em Napoles e na Sicilia; em 1768, em Parma e Malta.

Culminou a reacção com o breve de 1773, de Clemente XIV, deferindo as reclamações de todos os Bourbons – de França, Hespanha e Sicilia – e ordenando a completa e total suppressão da Companhia de Jesus.

Nos países acatholicos, na Prussia e na Russia, junto aos principes mais louvados pelos philosophos, Frederico e Catharina, os jesuitas encontraram abrigo contra a intolerancia, reinante nos arraiaes de seus adversarios. Assim mesmo, pouco durou a protecção prussiana, pois em 1776 tiveram de abandonar aquelle Estado e de refugiar-se na Russia, onde aguardaram sua reorganisação e seu restabelecimento.

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Introdução ao estudo de Boehmer sôbre os jesuitas. Nessa obra colhemos quasi todos os nossos apontamentos sôbre a Companhia, muitas das considerações que damos a seguir.

Os jesuitas e o ensino

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