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III

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Estava ainda no Douro Maria das Dôres, quando recebeu o inesperado golpe em uma carta muito amoravel, que sua filha lhe escreveu do collegio, e outra, não menos humilde, e mais reflectiva do marido. Então comprehendeu ella o silencio de Gonçalo, tendo-lhe ella escripto para o Porto duas cartas, uma queixando-se de passar mal as noites, e desejando que a mãe, a ter de morrer, abreviasse os paroxismos; outra, raivosa, por ter escripto duas, sem receber, sequer, resposta da primeira. Aquelle sequer denota que a snr.ª D. Maria das Dôres queria receber resposta da segunda carta que estava escrevendo. E onde póde chegar o mau genio!

Esteve a senhora algumas horas arquejante de cólera sem saber que deliberação tomar. Rompeu, depois, em queixas contra o pae que, a despeito da vontade d'ella, a casára com o primo. O velho ouviu os clamores, e disse:—«Se tua mãe vivesse, essa santa poderia contar-te o que me soffreu a mim. Deus sabe com que remorsos eu cá fico chorando n'este mundo!... Eu casei{38} por honra da familia, e para me forrar a questões de vinculos e direitos de successão, que meu sogro podia disputar-me vantajosamente. A casa ficou solida, e para ti foi, minha filha. Soffri e fiz soffrer; mas quem é que não soffre n'este valle de lagrimas, Maria?»

Não sei se Christovão Azinheiro tambem sabia a historia do rei que mandou chamar o philosopho; se a sabia, dispensou a filha de ouvi'-la, e esta, sem lhe dar trela a dictames e conselhos, despediu-se, dizendo que a paciencia tinha limites e a desgraça a tinha emancipado. Mal a entendeu o velho; mas sempre lhe disse afinal:—«Lembra-te que és minha filha, e que tens dois santos na familia, o snr. bispo de Leiria, e a snr.ª dona abbadessa de Lorvão.»

Maria das Dôres, sem mesmo se encommendar aos santos familiares, torceu a estrada a meio-caminho, e foi direita a Arouca, em cujo mosteiro ainda tinha vivas suas tias, occupadas em deslindar as bastardias genealogicas das conventuaes, e os ultimos milagres operados por algumas freiras que tinham apparecido inteiras na claustra, depois de vinte annos de sepultura.

Abriram-se as portarias á bem-vinda aia da santa rainha Mafalda, e todas as religiosas a acharam mais bella, mais gorda e mais encantadora.

—Vieste ver-nos, pomba;—disseram as tias, convulsivas de jubilo e de velhice.

—Vim ve'-las, e pedir-lhes a minha antiga cella.

—Como assim? Tu queres tornar para o convento?

—Sim, minhas senhoras; tornar para o convento, e{39} morrer n'elle, se me deixarem. Meu marido fugiu-me para Lisboa, roubando-me a minha filhinha, a luz dos meus olhos, o meu coração, a minha alegria, tudo o que eu tinha n'este mundo. Casaram-me á força, e agora querem á força matar-me. Pois sim, morrerei; mas hade ser aqui, onde vivi os annos felizes da minha infancia, e á sombra de minhas tias, que me não tolheram a felicidade. Não tenho, nem quero ter mais ninguem. Sou rica; mas da minha riqueza tirarei sómente os alimentos necessarios. Sou rica do que é meu; se o não fosse, pediria a minhas tias um quinhão da sua tença.

—Oh! filha! exclamou a mais escorreita das velhas—Isto não sei o que me parece! Em quanto a mim, essa veneta, que te deu, é desesperação de ciume!... Olha lá, porque vens tu vestida de dó? Morreu-nos algum primo? Seria o monsenhor da patriarchal D. Joaquim que deve estar muito velhinho? Seria o sr. bispo da Guarda, que é nosso primo pela linha lateral dos Azeredos Pita-Rellas?

—Foi minha mãe que morreu—atalhou Maria das Dôres limpando uma lagrima espremida pela raiva no afôgo declamatorio.

Ouvida a infausta nova, as senhoras Moscosos Azeredos, que eram tias da mãe de Maria, compuzeram um duo de alaridos roufenhos, que alarmou o mosteiro. Confluiram todas as religiosas á cella, e cada uma garganteou o mais plangente que poude uma escala chromatica de gemidos. As duas freiras anojadas declararam-se em lucto rigoroso, e sentaram-se nas suas cadeiras de{40} solla, a receber os pesames e as visitas nocturnas.

Maria mal podia esconder a sua zanga. O que ella queria era desabafar, gritando e gesticulando; mas o silencio funeral, que pedia o caso, não se compadecia com o seu desafôgo. Já arrependida de entrar no mosteiro, e incapaz de reflectir no disparate da sahida abrupta, a desarvorada senhora, no dia seguinte ao da entrada, mandou metter os machos á liteira e partiu para o Porto, deixando confirmada a fama, que tinha de douda, no conceito de umas senhoras, e a conjectura de que a perda da mãe a enlouquecera, na opinião de outras. Em quanto ás venerandas Moscosos Azeredos, essas, com quanto estivessem pasmadas, não se moveram das suas cadeiras, onde lhes impunha a praxe esperarem a pé quedo que os tres dias do nojo expirassem.

Na correnteza d'estes acontecimentos, estava Gonçalo Malafaya provando-a, sobre todas, mais dorida porção da sua vida. Tentaram-n'o saudades a ir ao mosteiro de Odivellas, onde sete annos antes professára Beatriz, filha do conde de Miranda. Enganára-se com o seu coração o sensivel fidalgo, cuidando que podia ver impunemente a mulher unica do seu amor, a recordação agridoce de sua mocidade. Bem sabia elle que havia de chorar; mas esperava com as lagrimas apagar o incendio, se as cinzas escondessem alguma faúla da antiga chamma.

Foi a Odivellas, e chamou ao locutorio soror Beatriz dos Anjos. Acudiu ao chamamento a esposa do Senhor, a pallida virgem, com as suas vestes magestosas e tristes;{41} mas tristes a olhos mortaes, que mais bellas não as podiam inventar homens para as noivas do céo.

Era ainda formosa, ou mais formosa era então a chorada Beatriz dos salões da côrte, dos esplendorosos saráos, das invejas dos moços, e das mil brilhantes esperanças, apagadas todas n'uma hora. Deus a chamára a si, dotando-a com a perpetuidade da juvenil belleza. Tomou-lhe do coração os dons, que mal soubera merecer-lhe o homem amado; e, em cambio d'elles bafejou-lhe de eterno maio as flores da face e a juventude do espirito.

Maravilhou-se Gonçalo de a ver tão gentil: e ella, mal recobrada da torvação da surpresa, espantou-se da mudança do galhardo moço que ella amára.

Quizera a religiosa fugir; mas o coração ia attraído para a doce voz, que era a mesma em ternura, e para os olhos marejados das antigas lagrimas.

—A que veiu aqui?!—perguntou Beatriz, com os olhos postos sobre o escapulario.

—Vim atormentar-me—respondeu Gonçalo—Vim procurar as torturas, que faltavam ao meu martyrio.

E contou Gonçalo com pueril sinceridade a historia da sua vida, como filho amimado conta a sua mãe desgraças, que se vão consolando ao refrigerio dos prantos d'elles.

De instante a instante embargavam-lhe os suspiros a voz, e os vágados lhe annuveavam as idéas. Com rosto socegado ouviu Beatriz as lastimas, os remorsos, e as confessadas cobardias do seu arrebatado{42} interlocutor; e, com immutavel rosto, respondeu por estas memoraveis palavras:

—Eu tambem tinha pae e mãe que me amavam muito, e cavalheiros que muito me queriam. Fui pedida para esposa, e meus paes mandavam ao meu coração que respondesse. Amei-o, senhor; e, se por si me perdera, Deus sabe que eu só de mim havia de queixar-me. Preferi-o, e com a cega preferencia, que lhe dei, esperei-o até á hora em que m'o disseram morto para mim. Se morreu tambem para a felicidade, amargamente o sinto. Quem me dera ver toda a gente feliz, os meus inimigos mesmo, se acaso os tenho! Depois é que eu lhe poderia dar um grande exemplo de coragem; mas... para que? De sobejo me contento com ser exemplo de infortunio. Meus paes não me queriam religiosa; meus parentes conspiraram todos contra mim; e comtudo... sou religiosa, amortalhei-me, sepultei-me, e fiz da chamma do meu amor a luz, que alumia sepulturas, e nem sequer aquece a lampada que a encerra. Separados para sempre, sr. Gonçalo Malafaya! Não temos que esperar um do outro, senão narrativas de lagrimas, que recrudescem a amargura, e nada remedeiam. Peço-lhe pelo amor, que lhe tive, me não procure mais, nem me desassocegue inutilmente. Eu achei aqui a paz, depois de muito a pedir a Deus. Peça tambem; rogue, e faça da sua paciencia um direito á misericordia divina. Viva para sua filha, se outra imagem não tem no coração. Adeus.

Beatriz dos Anjos, inclinando de relance a vista embaciada{43} ao locutorio, sumiu-se na escuridade dos corredores, que vão da portaria para o interior do mosteiro. Gonçalo tartamudeára palavras, sem sentido, e quedára-se estupefacto, com os olhos fitos na lamina crivada do palratorio.

Voltou a Lisboa o allucinado fidalgo, e de tamanha tristeza se entranhou, que nem as caricias da filha o despenavam. Errou com a escandecida mente por quantas absurdezas se offerecem ao desatino da paixão. Roubar ao mosteiro a religiosa, e fugirem para remotos climas não foi o maior nem o mais original dislate da sua phantasia. Rebelde aos preceitos recebidos, escreveu primeira e segunda carta a Beatriz, e recebeu-as abertas, com a terceira fechada. Um frade capellão ou confessor de Odivellas, lh'as entregou, e quiz asserenar-lhe os transportes com os mais justos dictames, e piedosas reflexões que suggeria o caso.

Ouviu Gonçalo, uma hora, o apostolico varão, e sentiu despontarem-se os espinhos de sua dôr, amollecidos pelos prantos a que o forçava suavemente a compungitiva linguagem do monge. Não levantou mão d'elle o enviado de Beatriz. Buscava-o a miudo na sua soledade, e cada dia lhe ministrava lenimentos novos, hauridos da inexhaurivel fonte do Evangelho.

Com o decurso de algumas semanas, Gonçalo Malafaya conformou-se com a desgraça irremediavel, e habituou-se a invocar o auxilio do céo, se vergava, alguma hora, ao confrangimento de desesperada saudade.

Maria Henriqueta conheceu nos primeiros dias de collegio{44} os mais saborosos instantes de sua infancia, senão os primeiros. Tinha muitas meninas a ama'-la, as mestras á competencia de meiguices, muitas creadas a servi'-la, e a sua ama querida a inventar-lhe sempre as innocentes delicias, que a pobre menina desconhecera sob o olhar severo e glacial de sua mãe.

Custou-lhe lagrimas o adeus do pae; mas foram as primeiras e ultimas que chorou alli.

Depois de sessenta dias de ausencia, entrou Gonçalo em sua casa no Porto. Avisára elle de antemão os paes para lá o esperarem, temendo o primeiro encontro com a mulher. Recebeu-o a mãe nos braços, e disse-lhe ao ouvido:

—Olha que Maria das Dôres está douda furiosa.

Achegou-se o pae da outra orelha, e disse-lhe:

—Talvez seja preciso amarra'-la.

Gonçalo encarou em ambos, e respondeu:

—É a felicidade que lhes devo, meus carinhosos paes.

A mãe entendeu, sem merecer creditos de esperta, a ironia, e replicou mansamente:

—Tens razão, meu filho! tens razão...

E o pae accrescentou em outro tom:

—Ás vezes dois puxões de orelhas curam estas doudices.

Maria das Dôres, com o seu feio costume de escutar, ouvira as palavras do sogro e exclamára:

—Dois puxões de orelhas!... Quero vêr se ha mão que se atreva a isso!{45}

—Cala-te ahi!—bradou o velho.—Se fosses minha mulher, havia de... esganar-te! Fizeste desgraçar meu filho, que é um anjo, todos o respeitam e amam, menos tu que és uma vibora peçonhenta! Gonçalo, deixa tudo!—exclamou, voltado ao filho—deixa tudo a essa mulher, e vem para nossa casa. Poupa os teus dias; foge a esta diabolica creatura, e o mundo saberá da minha bocca a razão porque lhe foges.

Maria das Dôres tinha de ordinario uns deliquios de reserva para as crises em que a palavra era menos significativa de sua consternação ou raiva. Occasionou-se-lhe ensejo optimo para um. Desmaiou, caindo com toda a segurança da sua pessoa n'um bufete da sala de espera.

Gonçalo sentou-se extenuado em frente de sua mulher; pendeu a cabeça para o seio, e, com as mãos na cabeça, parecia recurvar as unhas sobre o craneo.

—Que inferno!—exclamou elle.—Que inferno este, meu pae! Que vida tão escura a minha, agora, e sempre! Estou no vigor dos annos, e é forçoso que os acabe por minhas mãos, ou que me deixe despedaçar hora a hora por esta mulher! Tinha uma filha, que podia ser-me allivio, e fui obrigado a separa'-la de mim para a furtar á influencia nefasta d'esta senhora, que nem boa mãe é! Nem mãe, santo Deus! Nem a virtude das feras coube em partilha a esta que me deram por esposa!

Chorava a mãe de Gonçalo, e o velho estava passado menos da dôr, que do arrebatamento do filho.{46}

Maria das Dôres ouvira tudo, e provavelmente descerrára as palpebras para observar a gesticulação do marido. Abriu de todo os olhos esgazeados; affastou da fronte os cabellos, como fazem nas tragedias as doudas, ou as arriscadas a isso; levantou-se cambaleando, segundo a arte, e tirou-se do salão, assoprando como serpente ferida na cauda.

Vacilou Gonçalo entre ficar ou recolher-se á residencia de seus paes. A mãe instava pela saída, conformando-se á primeira vontade do marido; este, porém, reflectindo um pouco, disse que mais acertado seria o filho, depois de liquidar contas com os caseiros e conhecer a fundo o estado de sua casa, cuidar em separar-se judicialmente, allegando com o depoimento dos servos o genio intractavel da mulher.

—Fez-me o casamento, pae,—disse Gonçalo—e quer desfazer-m'o agora!... Assim devia ser; mas o peior é eu hei de ser até á morte um escravo d'ella, ou da ignominia da minha situação. A separação dá causa a juizos vilipendiosos, meu pae; e eu, sobre todas as calamidades, não quero affrontas. Já agora hei de soffrer e morrer aqui. Hão de regosijar-se da sua obra... Quero que sintam o remorso de me acabarem lentamente a vida, que tão feliz se me antolhava; matassem-me antes! antes a morte, que assim, ao menos, poupar-me-iam a ser testemunha da outra infeliz, que tambem mataram! Ó alma do céo, perdoa-me tu, pelas dores com que aqui estou expiando a minha fraqueza!...

Os velhos não entenderam cabalmente a apostrophe,{47} e de si para si ficaram em que o filho estava menos escorreito e são de seu juizo.

Recolheu Gonçalo á sua camara, e n'ella passou alguns dias encerrado, sem ver a mulher. Ahi recebia as visitas, que, prevenidas pelo velho Malafaya, evitavam perguntar-lhe pela prima Maria das Dôres.

Esta, encerrada tambem no seu quarto, apenas recebia a visita do medico, e a do capellão, santo homem, que á mingua de eloquencia christã, se estava sempre benzendo, sem dar a razão de tamanha prodigalidade do signal da cruz.

N'este critico intervallo, Maria das Dôres absteve-se de governar a casa, e de transmittir suas ordens aos creados. Os negocios do governo culinario corriam sob a fiscalisação do padre, que mostrou sua especial vocação no desempenho d'elles. Almoço, jantar e ceia, ás horas, nunca faltou, bemdito seja o Senhor!

Passados dias, foi o medico portador de uma carta de Maria das Dôres a seu marido. Dizia em resumo o escripto que ella imperiosamente queria recolher-se a casa de sua familia, por já não poder supportar o flagello, que seu pae lhe apparelhara. Mais dizia, que se voltára do Douro alli, fôra causa d'essa imprudencia querer ella entregar a seu marido as chaves de suas gavetas, e as preciosidades, que elle trouxera dos seus. Posto isto, rematava dizendo que fôra sempre uma esposa digna e sem mancha; ao passo que seu marido era um homem de costumes estragados, merecedor de outra mulher, capaz de vingar-se, pagando affronta com affronta.{48}

Gonçalo leu a carta e respondeu verbalmente ao doutor:

—Que faça o que quizer. Que vá para o pae se lhe apraz; que se deixe estar, se está bem; na certeza de que, lá ou aqui, a nossa separação está resolvida para sempre.

Maria das Dôres ouviu a resposta, pediu ao medico o favor de retirar-se, saltou fóra do leito, vestiu-se em grutesco desalinho, e entrou, com furial aspecto, no quarto do marido.

Sentou-se Gonçalo no leito, como attonito da improvisa apparição.

—Que quer, prima?—gaguejou elle.

—Quero ouvi'-lo; quero ouvir da sua bocca as palavras que me disse o doutor.

—Se lh'as elle disse... que mais quer?

—Diz-me o primo que vá para meu pae?

—Se quizer.

—Não quero!

—Pois não vá.

—Eu não ando ás suas ordens! Sou sua mulher. Entendeu?

—Entendi.

—E então?

—Então o quê! Que é que me diz?

—Que não saio d'esta casa que é minha.

—Deixe-se estar.

—Mas o senhor que disse mais?

—Que a nossa separação está resolvida para sempre.{49}

—Isso é se eu quizer.

—Quer queira, quer não.

—Eu allegarei as minhas razões em justiça.

—Não temos que ver com a justiça. A prima Maria das Dôres tem os seus aposentos n'esta casa, e eu tenho os meus. É n'este sentido que eu entendo a separação.

—Não quero!—exclamou ella, batendo com o pé rijamente no tapete.

—Em tal caso, obriga-me a sair d'esta casa.

—E eu vou procura'-lo onde estiver.

—A prima é uma senhora. Fio da sua nobreza que se poupará e me poupará a vergonhosos alardes.

—Qual nobreza, nem qual vergonha? Sou sua mulher! não é mais que dizer—não me serves—e acabou-se tudo! Recorro ás leis. Quero saber porque sou abandonada. Fui-lhe infiel, primo Gonçalo? Atraiçoei-o? Faltei aos meus sagrados deveres de esposa?

—Nunca o suspeitei.

—E o primo faltou? Responda.

—Não tem resposta.

—Tem. Tem resposta. O senhor é que não tem alma nem vergonha. Quer ir viver com outra? Diga-o francamente, que eu n'esse caso vou-lhe fazer presente das joias, já que o senhor a faz proprietaria dos meus direitos. Escusa de sair: póde traze'-la para aqui. Veja lá primo... se precisa de aia a dama, estou eu aqui que lhe sirvo.

—Cale-se, senhora!—bradou Gonçalo.—O despejo da{50} phrase offende tanto como o despejo da acção. Estão ahi as suas creadas a ouvi'-la. Felizmente que não está aqui uma menina de onze annos para lhe decorar essas palavras, aprendidas não sei onde, nem com quem. Prima Maria das Dôres! attenda-me com o seu silencio, se póde. Este viver é impossivel. A senhora apurou-me a paciencia até ao extremo. Soffri-a emquanto o facto da separação me pareceu desairoso. Sacrifiquei-me á dignidade, que foi sempre o melhor timbre de nossas familias. Baldei as dores surdas que padeci. Ninguem me compensa, nem a sua indole se chegou a condoer de mim. Mudei, prima, mudei completamente. Quer saber a minha deliberação final? Digo-lh'a livre de medo que m'a embarace. Em ultimo recurso, fujo de Portugal, e deixo-a. Irei onde me não conheçam, nem me denunciem á sua perseguição. Felizmente sou rico. Bom é que eu alguma vez conheça as vantagens de ser rico. O que é meu basta e sobeja. Posso ainda viver alguns annos tranquillos; em toda a parte hei de achar amigos.

—E amigas...—atalhou ella.

—E amigas, diz bem a prima; porque não.

—Basta!—vociferou Maria das Dôres perfilando o dedo indicador com o nariz.—Basta! não se envergonha agora que o estejam escutando as creadas? Faça o que quizer. Abandone-me; mate-me; sacrifique-me aos seus caprichos, primo, que eu deixo a minha causa á Providencia, e a sua alma ao remorso.

Gonçalo sorriu, e Maria das Dôres, atirando para o{51} pescoço uma aba do gabão de castorina, saíu com toda a magestade d'uma rainha colerica.

O padre capellão, que tambem tinha o vêzo de escutar, já se tinha benzido vezes sem conta com ambas as mãos.{52}

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Estrellas Funestas

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