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ASSUCENA.

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Consta da FILHA DO ARCEDIAGO que a filha do memoravel Leonardo Taveira, arcediago de Barroso, houvera de legitimo consorcio com Augusto Leite, uma filha, chamada Assucena.

Quando Rosa Guilhermina contrahiu segundas nupcias com José Bento de Magalhães e Castro, tinha seis annos a creança.

O filho do retrozeiro não se affeiçoou á filha de sua mulher, com quanto a meiga menina o acarinhasse com meiguices, e lhe chamasse pae. Em pouco se conhecia a rude insensibilidade do padrasto. As menores travessuras de Assucena eram para elle o resultado do mimo demasiado que sua mãe lhe dava. A esperteza, que Rosa admirava em sua filha, dizia o senhor José Bento que era malicia; e, por entre dentes, resmungava que não seria ella quem levasse a agua ao seu moinho. Era uma das suas phrases favoritas este annexim, que o filho da senhora Anna Canastreira retivera na memoria, rebelde sempre para o imperativo do verbo laudo, como em tempo competente se disse.

Rosa doía-se da indifferença, ou, melhor, da antipathia de José Bento pela creança. Nunca lhe perguntou a causa d'esta ingratidão aos mimos de Assucena: é que não contava com a delicadeza de seu marido n'uma resposta. A coacção em que a tinha o caracter brusco do assassino do mestre de latim, a reserva nada familiar com que um ao outro se tratavam, collocava-os a distancia do que vulgarmente se diz—confidencias domesticas.{26}

José Bento não tinha a rusticidade nem a doçura de indole de Antonio José da Silva, o desventurado esposo de Maria Elisa, tão desventurada como elle. (Já lá estão ambos!) Se aos dezoito annos, o aprendiz de loio annunciava uma bestialidade mythologica, a natureza, modificada pelo dinheiro, enxertára n'aquella cabeça, hermeticamente fechada, uma finura maliciosa. Á primeira vista, o senhor José Bento parecia um pensador, um homem experimentado, e até um presidente d'uma companhia de viação, ou orador gosmento de associações commerciaes, que, só muito depois, tiveram Ciceros em patois.

O capitalista era amigo de Rosa Guilhermina: não podemos duvidar que o era; mas o seu modo de ser amigo era excentrico. A approximação dos extremos confundira o pequeno espirito de José Bento com o grande espirito d'algum marido fatigado de caricias, anhelante de paixões incisivas, e incapaz de se amoldar ás formulas burguezas da tranquillidade domestica. O moço fidalgo, no primeiro anno de casado, foi o que seria no quadragesimo, se Rosa Guilhermina não morresse em 1849. Nunca lhe deu mostras de aborrecido, porque tambem nunca se mostrou enthusiasmado com a posse. Teve sempre a constancia imperturbavel dos felizes alarves. Nenhuma mulher valia mais que a sua, nem a sua valia mais que as outras.

Rosa Guilhermina não esperava que sua filha succedesse na herança do marido, nem, quatro annos depois de casada, tivera ainda um filho, nem depois o teve, que protegesse a sua irmã, habituando-se a consideral-a tal.

O seu pensamento foi ageital-a para tudo o que é trabalho, dotando-a com a educação, cultivando-lhe o espirito para que a formosura não fosse a unica prenda que podésse merecer-lhe um marido com patrimonio.

Em Lisboa, José Bento não se oppôz á entrada de Assucena n'um collegio. O excellente coração da menina, arrancado ao de sua mãe, comprehendeu, em tenra idade, que a sua posição no mundo dependia de si. Docil ás mestras, que lhe adoravam a angelica humildade, o trabalho, a oração, e o estudo fizeram-na um modelo entre todas as suas companheiras. A melancolia scismadora que, aos quatorze annos, a estremava dos folguedos da sua idade, era um vaticinio de muitas lagrimas que verteria{27} sobre as flôres da mocidade, queimando n'essas o germen que nunca mais lhe desabrocharia outras.

Em 1838, Assucena tinha dezoito annos, e era ainda alumna do collegio para onde entrára aos dez. A viscondessa de Bacellar conseguira de seu marido a influencia e os meios para que ella entrasse nas commendadeiras, ordem meio monastica, meio profana, em que a vida retirada se suavisa com todas as magnificencias do luxo, e se approxima da sociedade sem conhecêl-a pelo ponto de contacto em que o coração se infecciona.

Antes de entrar nas commendadeiras, como secular, Assucena veio passar com sua mãe dous mezes.

Aos dezoito annos, estranhava o mais vulgar da sociedade. Lêra muito, e, só com sua mãe, dava ideia de não ter desaproveitado o tempo, nem enganado os mestres. Na presença de estranhos o seu acanhamento dava-lhe ares de idiota. Córava ás mais simples lisonjas á sua formosura, e folgava todas as vezes que as portas da sala se não abrissem a visitas. A presença dos hospedes privavam-na de expandir-se a sós com sua mãe que a beijava, como se faz a uma creança.

Assucena era trigueira como seu pae, e não podia chamar-se formosa, senão em verso. A formosura, que não é senão a harmonia rigorosa das fórmas, é muito rara. O que não é raro é a graça, a sympathia, o indisivel que vos encanta, sem vos dar tempo a estudar a irregularidade de um nariz, ou o defeito d'uma testa.

Engraçada e sympathica era, como nenhuma, a neta do arcediago. O sobr'olho cerrado castanho escuro, e o buço que lhe assombrava o labio superior, não fino, mas graciosamente arqueado, eram as feições mais distinctas depois dos olhos brandos e amortecidos, tão fóra do commum em rosto trigueiro. Gentil de corpo, alta como sua mãe, mais flexivel que ella, mais delicada de mão, ao longo da qual corria uma penugem que denunciava o braço delicioso, Assucena era a mulher para os sentidos e para o coração; para a voluptuosidade do amor animal, e para os arrobamentos do amor do espirito.

Luiz da Cunha e Faro não se recordava já de Assucena, quando a viu, surprendido, em casa da viscondessa.{28}

—Quem é esta mulher?—perguntou elle ao ouvido da viscondessa.

—É minha filha.

—Sua filha! a menina que eu vi, ha bons nove annos?

—A mesma. Não o apresento, porque ella é muito acanhada, e dá de si uma triste ideia, quando a forçam a fallar.

—É galante senhora! Que olhos, e que sobrancelha! Aquellas pestanas são divinas! Tem um olhar de santa! E aquelle buço? Ha de perdoar-me, senhora viscondessa; mas a filha de v. ex.ª é capaz de me fazer doudo!

—Não zombe, senhor Luiz da Cunha. A minha Assucena não é capaz de endoudecer ninguem, e principalmente v. ex.ª, que não póde endoudecer, porque a demencia dá ideia do juizo anterior a ella...

—Bem a entendo, senhora viscondessa. Quer dizer que ninguem perde o que não tem... V. ex.ª não sabe o que eu sou capaz de sentir. Até hoje tenho usado o mau coração; o bom ainda não entrou em serviço. Vinte e seis annos não é tarde para que eu me regenere. Sonhei esta noite que era virtuoso, e que dava lições de moral no largo do Rocio a quem me queria ouvir. Depois, tornei a sonhar, e fazia milagres: puz uns dentes á baroneza de Lemos, que está alli mascando com as gengivas quatro phrases de açafetida a seu marido, e fui á beira do Tejo conversar com os peixinhos que saltaram ao Terreiro do Paço, passeando em sêcco para me darem honras de Santo Antonio.

—Comece com as suas impiedades, senhor Luiz da Cunha... Olhe que eu retiro-me d'aqui... Quando ha de perder o vicio da maledicencia? Que lhe importam os dentes da baroneza de Lemos?

—Tem v. ex.ª razão. Sou um grande malvado, mas permitta que eu corrija a sua accusação. Eu não disse que me importava com os dentes da baroneza, que é cousa que ella não tem. Eu sonhei que milagrosamente lhe dava duas ordens de dentes, e lh'os déra quasi todos mollares, porque me consta que ella gosta de tortas, em que os outros se dispensam. Se isto é perversidade, minha amiga, não sei o que é virtude. Deixemos a velha, e fallemos na{29} juventude do nosso seculo. A senhora D. Assucena fica na sua companhia?

—Não, senhor. Vai entrar nas commendadeiras.

—Isso é incrivel! Pois v. ex.ª quer inutilisar aquella creatura, roubando-a á sociedade!! Isto é barbaro! Declaro que não consinto!

—É pena que v. ex.ª não consinta! Eis-ahi uma difficuldade que eu não tinha prevenido! O seu consentimento é uma formula indispensavel!

—Quer que eu lhe diga uma verdade? Estou recebendo uma impressão extraordinaria! Sinto por sua filha o que nunca senti! Será ella a redemptora d'esta alma que anda em penas ha onze annos? Parece-me que o amor é que me ha de salvar. Ora olhe, eu tenho imaginado que posso ainda ser feliz. V. ex.ª acredite que tenho sido muito muito desgraçado...

—Não o parece.

—Diz bem... não o parece; mas creia que não tive ainda oito dias de felicidade na minha vida. O mundo julga-me mal. Todas estas vertigens, que apparentemente me dão o caracter d'um homem embriagado de felicidade, são misturadas d'uma especie de nausea de mim proprio, d'um vacuo de verdadeiros prazeres, e tal que, nestes ultimos mezes, tenho desejado seguir um outro caminho por onde a verdadeira ventura me foge. E quero perseguil-a. Realmente lhe digo que estou cansado d'este viver. A sociedade despreza-me, e eu dou razão á sociedade. De certo lh'a não dava, se eu me quizesse absolver dos meus desvarios. Aqui entre nós: quem me perdeu foi meu pae. Se me tivesse negado os meios com que se nutrem os vicios, eu não seria vicioso, ou, se o fosse, o trabalho, como preço do vicio, ter-me-ia fatigado, ha muito. Olhe: se eu tivesse nascido n'outro seculo, se é que todos os seculos não tem os mesmos vicios, seria outro homem. V. ex.ª bem sabe que na sociedade não se fazem santos. Eu vim por aqui dentro com os braços abertos para receber todas as immoralidades, e vieram-me todas ao encontro, sem eu chamar nenhuma.

—Naturalmente—atalhou a viscondessa, sorrindo—foi a filha do merceeiro que o chamou...

—Isso não foi immoralidade, minha senhora; ou, se{30} o foi, queixem-se do peccado original, de que tanto me fallou aquelle pobre padre Joaquim, que, em quanto a mim, foi o unico homem virtuoso que não recebeu a herança da culpa de Adão, e morreu intacto como algumas virgens das que se conhecem pelos necrologios. A filha do confeiteiro não soube o que fez, e eu tambem não. A natureza exerceu sobre nós o seu immortal despotismo, e foi preciso que os homens viessem desmanchar á pancada o que ella fizera com beijos.

—Foi a natureza que lhe ensinou a botar a escada de corda ao segundo andar?

—Nada, não, minha senhora. Foi meu pae.

—Como seu pae!?

—Palavra de cavalheiro, o caso foi assim: debaixo da cama de meu pae vi umas cordas, que terminavam por dous ganchos. Fiz o meu raciocinio, por que já n'esse tempo estudava em logica as causas e os effeitos. A escada era o effeito d'alguma causa. Sem saber nada de mechanica, calculei a importancia social da escada, e mandei fazer uma semelhante ao meu criado do quarto. Ora aqui tem com angelica sinceridade a historia da escada de corda. Agora, pergunto eu: desarranjei eu a felicidade da filha do merceeiro? Não a tem v. ex.ª visto no theatro, ao lado d'uma especie de gallego com collarinhos em fórma de panno de falua? Esta especie de gallego é marido d'ella, tem cem contos de reis em inscripções, e não sei que no Banco Commercial, e tem a commenda da ordem de Christo. D'esse peccado da infancia, absolvo-me eu; dos outros é responsavel a sociedade.

—Não diga a sociedade. V. ex.ª tem zombado de todos os deveres. Tem reduzido seu pae a um estado de tristeza que faz dó. Tem-se divorciado de todas as pessoas de bem. Affronta a opinião publica apresentando-se nos lugares mais frequentados com uma mulher, sem pudor, uma libertina que nem ao menos o salva de se degradar com ella em publico. Se me acha ainda uma constante censora dos seus desatinos, é porque sei a historia triste do seu nascimento, sympathisei com os infortunios de sua mãe, e tomei sobre mim o inutil zêlo da honra de seu filho. Não tenho conseguido nada: nada espero conseguir. Deus sabe quantas lagrimas me tem custado este desvelo{31} quasi maternal. Por vontade do visconde, já v. ex.ª não entra n'esta casa. Reprehende-me todos os dias a familiaridade com que o recebo, e é preciso que eu o traga illudido com a esperança de que um dia será possivel a sua reforma de costumes. Senhor Luiz da Cunha, pense no futuro. Condôa-se de seu pae, que já não tem animo de ouvir pronunciar o nome d'um filho que perdeu como seu amor. Veja que póde ainda remediar o mal que fez... Aparte-se d'essa mulher. Viva com seu pae. Convença pelo seu procedimento as pessoas, que já não acreditam na possibilidade da sua emenda. Eu tambem me persuado de que v. ex.ª deve estar cansado. Creio que deve ter momentos de envergonhar-se; outros de remorso, e outros de esperança. Não cerre os ouvidos ao que a esperança lhe promette. Se o instincto do bem lhe aconselha a virtude, obedeça-lhe, e verá como a vida lhe póde ainda ser agradavel. Olhe que a virtude tem consolações incomparaveis com os prazeres momentaneos do vicio. Tenho quarenta annos. Sei o que é o mundo. Combino todos os desgostos para os saber afastar de mim, e recebo-os, quando elles são mais fortes, como desvios do errado caminho em que entrei aos quinze annos. V. ex.ª não sabe que mulher lhe falla, nem imagina o prazer que me daria se me viessem dizer que a virtude não fôra repellida d'esse coração que todo o mundo considera fechado para a luz da honra.

—Fez-me impressão, senhora viscondessa! Tem-me assim fallado tantas vezes, e nunca me feriu tanto. Eu não sei bem se o que me aconselha é possivel... Creia que vou empregar os esforços. Se o não conseguir, é porque não posso, é porque ha em mim um desgraçado condão de força sobrenatural.

A conversação, n'este sentido, foi demorada.

No dia seguinte, Liberata recebia de Luiz da Cunha um bilhete que a eximia dos compromissos de fidelidade, auctorisando-a a dispôr de tudo que lhe fôra dado. O bilhete foi recebido de manhã, e á tarde o lugar de Luiz da Cunha estava preenchido pelo primeiro oppositor á vacatura. Na proxima noite de theatro, Liberata, no camarote, ria, olhava, requebrava-se do mesmo modo, com a{32} notavel differença de que o seu companheiro era um capitão de marinha ingleza, que accumulava ás delicias de uma conquista de tal ordem os gosos d'uma solemne embriaguez de vinho.

João da Cunha acreditou na regeneração do filho, quando o viu entrar contrito em casa, tão diverso do que fôra, accusando-se por uma tristeza silenciosa, e captivando a benevolencia dos familiares com palavras brandas. Por conselho da viscondessa de Bacellar, orgulhosa do seu triumpho, João da Cunha não lhe disse uma palavra de reprehensão. O passado não veio nunca irritar o pae, nem envergonhar o filho.

Os incredulos riram da subita mudança do «mulato.» Os crentes no poder maravilhoso da conversão explicavam o phenomeno por um toque sobrenatural. Não faltou quem dissesse que a reforma do peccador fôra obra d'um egresso varatojano que operára admiraveis conversões nas casas onde almoçava e jantava. Não sabiam dizer ao certo se tambem convertêra alguem nas casas onde dormia. Eu tambem não, supposto que acho muito possivel o caso affirmativo.

O que sei de sciencia certa é que Luiz da Cunha não conhecia o dito egresso melhor que eu e o leitor. Penso que o varatojano perderia o seu latim, se tentasse engrossar com a moral franciscana os alicerces fundados pela viscondessa de Bacellar. A emenda do filho de Ricarda não tinha nada com a moral christã, pelo menos o atheo não sabia que a moral de Jesus é o codigo por que se rege a honra sobre a terra, e se conquista no ceo a eterna bem-aventurança, que não é exclusivo dos pobres de espirito.

João da Cunha passava algumas noites com seu filho em casa do visconde de Bacellar. Rosa Guilhermina revia-se na sua obra, e agradecia a Deus têl-a feito instrumento da sua vontade, para, com braços debeis, arrancar do abysmo um filho, restituindo-o ao amor de seu pae.

Assucena não se maravilhava do presente de Luiz da Cunha por que não lhe conhecêra o passado. Sabia, por meias revelações de sua mãe, que aquelle homem desmerecêra no conceito do mundo, por causa do seu mau procedimento. Os crimes, as infamias, as impudencias nem sua mãe lh'as explicava, nem ella saberia comprehendêl-as.{33} O que ella via era um mancebo melancolico, quasi sempre calado, fixando-a com frequencia, fugindo d'ella se os olhos se encontravam, trocando palavras de absoluta necessidade, e conversando com viveza, e muitas vezes, com sua mãe, como se ella só lhe merecesse attenções. Andaria aqui um incentivo de vago ciume? A manifestação inexprimivel d'um germen de sympathia? O resentimento do desdem que Luiz da Cunha aparentava por ella?

Se vos digo que sim, não digo cousa nenhuma do outro mundo, e obedeço á verdade.{34}

A Neta do Arcediago

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