Читать книгу A Illustre Casa de Ramires - Eca de Queiros - Страница 12
ОглавлениеQue farás tu, mais velho dos Ramires?
Se ao pendão leonez juntas o teu
Trahes o preito que deves ao rei vivo!
Mas se as Infantas deixas indefezas
Trahes a jura que déstes ao rei morto!...
Esta duvida, porém, não angustiára a alma d'esse Tructesindo rude e leal que o Fidalgo da Torre rijamente modelava. N'essa noite, apenas recebera pelo irmão do Alcaide d'Aveyras, disfarçado em beguino, um afflicto recado da senhora D. Sancha—ordenava a seu filho Lourenço que, ao primeiro arreból, com quinze lanças, cincoenta homens de pé da sua mercê e quarenta besteiros, corresse sobre Monte-mór. Elle no emtanto daria alarido—e em dous dias entraria a campo com os parentes de solar, um troço mais rijo de cavalleiros acontiados e de frecheiros, para se juntar a seu primo, o Souzão, que na vanguarda dos leonezes descia d'Alva-do-Douro.
Depois logo de madrugada o pendão dos Ramires, o Açor negro em campo escarlate, se plantára deante das barreiras gateadas: e ao lado, no chão, amarrado á haste por uma tira de couro, reluzia o velho emblema senhorial, o sonoro e fundo caldeirão polido. Por todo o Castello se apressavam os serviçaes, despendurando as cervilheiras, arrastando com fragor pelas lages os pesados saios de malhas de ferro. Nos pateos os armeiros aguçavam ascumas, amaciavam a dureza das grevas e coxotes com camadas d'estopa. Já o adail, na ucharia, arrolára as rações de vianda para os dous quentes dias da arrancada. E por todas as cercanias de Santa Ireneia, na doçura da tarde, os atambores mouriscos, abafados no arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cabeços, ratatam! ratatam! convocavam os cavalleiros de soldo e a peonagem da mesnada dos Ramires.
No emtanto o irmão do Alcaide, sempre disfarçado em beguino, de volta ao castello d'Aveyras com a boa nova de prestes soccorros, transpunha ligeiramente a levadiça da carcova... E aqui, para alegrar tão sombrias vesperas de guerra, o tio Duarte, no seu Poemeto, engastára uma sorte galante:
Á moça, que na fonte enchia a bilha,
O frade rouba um beijo e diz Amen!
Mas Gonçalo hesitava em desmanchar com um beijo de clerigo a pompa d'aquella formosa sortida d'armas... E mordia pensativamente a rama da penna—quando a porta da livraria rangeu.
—O correio...
Era o Bento com os Jornaes e duas cartas. O Fidalgo apenas abriu uma, lacrada com o enorme sinete d'armas do Barrôlo—repellindo a outra em que reconhecera a lettra detestada do seu alfaiate de Lisboa. E immediatamente, com uma palmada na mesa:
—Oh diabo! quantos do mez, hoje? quatorze, hein?
O Bento esperava com a mão no fecho da porta.
—É que não tardam os annos da mana Graça! De todo esqueci, esqueço sempre. E sem ter um presentinho engraçado... Que secca, hein?
Mas na véspera o Manoel Duarte, na Assembléa, á mesa do voltarete, annunciára uma fuga a Lisboa por tres dias, para tratar do emprego do sobrinho nas Obras Publicas. Pois corria a Villa-Clara pedir ao snr. Manoel Duarte que lhe comprasse em Lisboa um bonito guarda-solinho de sêda branca com rendas...
—O snr. Manoel Duarte tem gosto; tem muito gosto! E então o Joaquim que não selle a egoa; já não vou ao Sanches Lucena. Oh, senhores, quando pagarei eu esta infame visita? Ha tres mezes!... Emfim, por dous dias mais a bella D. Anna não envelhece; e o velho Lucena tambem não morre.
E o Fidalgo da Torre, que decidira arriscar o beijo folgazão, retomou a penna, arredondou o seu final com elegante harmonia:
«A moça, furiosa, gritou: Fu! Fu! villão! E o beguino, assobiando, aligeirou as sandalias pelo corrego, na sombra das altas faias, emquanto que por todo o fresco valle, até Santa Maria de Craquêde, os atambores mouriscos, tararam! ratamtam! convocavam á mesnada dos Ramires, na doçura da tarde...»