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Bernardo Soares

Aos deuses uma coisa se agradeça:

Aos deuses uma coisa se agradeça:

O sono. A vida esqueça

Já que não pode nunca ser feliz.

Por isso, com um rito definido

Encostemos a fronte ao travesseiro

E deponhamos como ante um juiz

O nosso anseio derradeiro.


Sim, o sono, o sossego, o não ser nada

A morte sempre ansiada

[...]

No sossego da fronte que repousa

Alheia a toda a coisa.

O apagamento, bem ou mal, de tudo.

Como quem, roçando um arco às vezes

(early morning)


Como quem, roçando um arco às vezes

Por um violino, ao acaso,

Súbito som excessivamente belo e saudoso

Ouve-se, e não se pode encontrar outra vez,


Às vezes, sou certos gestos súbitos do Momento,

Gemo irrespiradas sensações...

E são um tédio repentino à cor e à hora das coisas

E uma lamúria e longínqua paixão de não estar no mundo.


Árvores longínquas que esperam por mim desde Deus...

Paisagens mais perto da alma... Ou são grandes pálios

Em procissões interminavelmente a mesma...

Levando-me num triunfo de coisa nenhuma, sonolento e voluptuoso,

E perdido fico no Tempo como um momento em que se não pensa em nada...

Ela canta e as suas notas soltas tecem

Ela canta e as suas notas soltas tecem

Penumbras de sentir no (...) ar...

Em torno as coisas todas entristecem

Só para que ela lhes possa ser luar.


Ó alma derramando-se invisível,

Ó natural requinte da expressão...

Rio de som em tua água

Vai boiando em silêncio (...) e insensível

E debruça-se a vê-lo o inextinguível

Esforço de ser perfeito de imperfeição.


Asas de borboletas de só-espírito

Volteiam (...) em torno dos sons

Que a tua voz em espirais

(...)

Loura a face que espia

Loura a face que espia

Cose, debruçada à janela,

Se eu fosse outro pararia

E falaria com ela.


Mas seja o tempo ou o acaso

Seja a sorte interior,

Olho mas não faço caso

Ou não faz caso o amor.


Mas não me sai da memória

A janela e ela, e eu

Que se fosse outro era história [?]

Mas o outro nunca nasceu...

Semitis desilientis aquae

No ar frio da noite calma

Bóia à vontade a minha alma,

Quase sem querer viver

Sente os momentos correr,

Como uma folha no rio,

Sente contra si o frio

Das horas fluidas levando

Seu inerte corpo brando.


Mais do que isto? Para quê?

Tudo quanto o olhar vê

A mão toca, o ouvido escuta,

A consciência prescruta,

É inútil que se escutasse,

Que se visse ou se pensasse.


Entre as margens com arbustos

Luze, na noite dos sustos,

Só o luar repousado,

Ao correr vago e amparado

Do rio deixado em livre

A alma passa, a alma vive.

Ninguém. Só eu e o segredo

Do luar e do arvoredo

Que das margens causa medo.


Nada. Só a hora inútil

Só o sacrifício fútil

De desejar sem querer

E sem razão esquecer.


Prolixa memória, toda.

Rio indo como uma roda,

Noite como um lago mudo,

E a incerteza de tudo.


Recosto-me, e a hora dorme.

Corre-me o que a noite enorme

Atribui à minha mágoa,

Como um ser murmuro de água.


Ninguém; a noite e o luar.

Nada; nem saber pensar.

Raie o dia, ou morra eu

Volte no oriente do céu

O sol ou não volte mais,

Só sempre os tédios iguais

E as horas, calem o medo,

Como o rio entre o arvoredo,

De nocturna consistência,

Com fluida, vaga insistência.

O mal é haver consciência

O peso de haver o mundo

Passa no sopro da aragem

Que um momento o levantou

Um vago anseio de viagem

Que o coração me toldou.


Será que em seu movimento

A brisa lembre a partida,

Ou que a largueza do vento

Lembre o ar livre da ida?


Não sei, mas subitamente

Sinto a tristeza de estar

O sonho triste que há rente

Entre sonhar e sonhar.

Mestres da Poesia - Fernando Pessoa

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