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AVES MIGRADORAS

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—Mas tu és minha amiga, balbuciava a creatura querendo tomar-lhe as mãos n'uma supplica desolada. Devias ter dó d'esta fatalidade que me leva ao encontro de Ruy. Oh, tu não sabes! A idéa d'elle tira-me o somno, embebeda-me, convulsiona-me, vai commigo a toda a parte. Tu ao menos tiveste familia, irmãos, alguem. A mim nunca ninguem me quiz. Os garotos puxavam-me os cabellos, meu pai batia-me em estando embriagado. Aos dez annos puzeram-me fóra, que fosse trabalhar. E andei descalça atraz dos porcos, ia aos sabbados pedir esmolas ás portas dos ricos. Um verão agarram-me a furtar uvas n'uma vinha: o vinheiro era um bruto, jogou-me um tiro; e cheia de sangue, quasi morta, uns cavadores que passavam, foram levar-me a casa da minha madrasta. Mas á embocada da aldeia, como eu ia estendida n'uma padiola de ramos, a senhora marqueza viu-me passar da sua janella, e por caridade, recolheu-me. Alli se fôra creando, a fazer companhia ao menino. Ruy n'esse tempo era um despota, obrigava-a a saltar muros, a pendurar-se de cordas, a fazer de cavallo. E batia-lhe. Em compensação Luiza adorava-o com um amor de cadella agradecida. Do fundo da sua humildade, nascia-lhe um deslumbramento inexplicavel, uma curiosidade, uma cegueira de Ruy. E nervosa, franzininha, como a figura d'uma borboleta na melancholia pallida d'um sonho, adquirira já precocidades: e os seus grandes olhos remordiam na belleza do pequenito, substractos de muitissimas aspirações. Na quinta, os trabalhadores ás vezes perguntavam-lhe:

—Queres ser amiga além do menino?

Ella abria os seus olhos vorazes, dizendo com a cabeça que sim. Entrementes o pequeno ia crescendo. Era alto, delgado, divinamente perfeito. Tinha já essa attitude desinteressada d'enthusiasmos, indifferente aos impulsos fortes, desdenhosa, petulante, das creaturas nascidas em meios altos, e destinadas ao predominio. As suas mãos davam cobiça, brancas de cera, e com detalhes mimosos d'obra prima. Oh, mas a bocca, inexplicavel, trazia embrionada na esculptura dos labios, todas as florações mysteriosas d'uma ascendencia patricia—bocca de chefe pela austeridade, de diplomata pela ironia, e de mulher pela doçura com que a descerrava, em sorrisos cicatrizadores das esgarçaduras que a sua altivez antes fizera. Quando elle veio do collegio a primeira vez, empallidecera: mas a expressão dos seus olhos era uma coisa indescriptivel d'encanto, de melancholia e suavidade.

Á enformatura tenra, oscillando como a haste anemica d'uma flôr de estufa, viera juntar-se o mysterio poetico d'um espirito insexualmente delicado, cujas infantilidades corrigia a cada instante um fogo-fatuo d'idéa, e a graça grave, indecifravel cambiante, da esphinge que contempla, sem desmentir jámais a prega austera da bocca. Era já, n'essa idade, a creatura de gostos raros, avara de palavras e gestos, fria, correcta, com preguiças d'ataxica e relampagos de crueldade na pupila augusta de Cesar, adorando o luxo dos palacios antigos, tendo a mania do bibelotage, e antegostando, como todos os homens da sua familia, uma especie de deleite perverso no desnortear pelo testemunho das suas impressões prevaricadas, a sensibilidade reputada normal pela outra gente. Essa susceptibilidade depressa se embotava todavia, reclamando intercadencias, e por vezes derivando em passageiras allucinações. Indole toda de nuances, refrangida d'um sangue com predominio de soro, como uma luz coada através da sêda d'um biombo, elle parecia arvorar o pallido como flamula de guerra da hoste macabra dos nevrosados, cuja vida o tédio do vulgar envenena. Por seu lado, Luiza conseguira ganhar pela viveza dos seus expedientes e remoques, o espirito da senhora marqueza, ao tempo enlanguescido no estranho mal que ia varrendo as gentes da sua raça, mercê das allianças consanguineas em que esta teimára immobilisar-se. Em cinco annos, nada restava já da pequena mendiga chegada ao palacio n'uma padiola de ramos, com os cabellos nos olhos, os pés enlameados, coberta de trapos, e resequida n'uma magreza dolorosa. Era uma bruna de beiços rubros, dentes pequenos, com fórmas d'esculptura e sadias destrezas d'amazona. Desde a partida de Ruy para Campolide, que ella não tinha na casa occupações definidas. Conservavam-n'a, um pouco por gratidão, e por amor tambem, um quasi nada. E assim era um bocado de tudo—leitora, enfermeira, guarda das estufas, esmolér-mór, creada de mesa e bordadora—e assim podera conservar a sua selvageria d'origem, tão familiar aos serviços da propriedade.

Luiza era intelligente: alli se fôra educando, aprendendo, adquirindo pela familiaridade da boa companhia e da riqueza esparsa em obras de gosto, através dos velhos aposentos, essa cultura interior de sentimentos, essa exoticidade de preferencias, essa indiscutivel distincção de conversar e receber, que a tornaram depois tão appetecida cá fóra—isto realçado co'a turbulencia da creatura nascida em pleno campo, espojada nos fenos, e rebelde no sangue, longe das peias deformantes da sociedade. Só de longe a longe, á força de hydrotherapias complicadas, a senhora marqueza obtinha uma ou outra hora de vida serena, e conseguia furtar-se aos lugubres nervosismos da enfermidade. Era o feitio de Ruy, menos a juventude, mais a impaciencia. A custo lhe sahia o espirito das abstracções e somnolencias em que ficava embrenhado horas e horas; e exiguamente, distillando a lucidez como uma essencia, gotta a gotta, n'um ting-ling monotono. A sua vida passava-se n'um canto de capella, entre sombras, enterrada n'um fauteuil com baldaquino, e só de lá sahia para se entregar ao cultivo de quatro ou seis predilecções extravagantes. Resentia-se do claustro onde passára os primeiros annos de educanda, e da côrte onde tinha gosado os primeiros mezes de casada. Era uma natureza extatica, adorando as pompas do culto, os requintes subtilisados da lithurgia, os movimentos dramaticos do orgão no instrumental das grandes cerimonias—um pouco de mysticismo, n'um pouco de miguelismo, n'um pouco de idiotismo,—com paixões de plantas monstruosas e aves singulares, alimentando-se de fructas, vestida de antigos damascos e pompadours de raminhos, e tendo sempre bolos d'ovos no beniterio do seu genuflexorio. Era vêr a ternura de Luiza durante as crises da boa senhora, e a meiga servilidade da sua voz rebuscando as mais enternecidas musicas, para pedir perdão de lhe não ter adivinhado mais cedo o pensamento.

Essa ternura, Luiza não a fazia nascer exclusivamente da gratidão que nutria pela castellã: vinha antes da emoção que Ruy lhe dava, da febre que lhe produzia a lembrança da sua belleza fruste e singular. Todas as dedicações se fundiam n'ella, e assim todas as especies de desejos inquietantes. Vinda d'uma mancebia d'aldeia, onde rolavam a toda a hora palavras bebedas e acções quasi medonhas, Luiza achára entre os moços da quinta, nas conversas surdas da cozinha e da arribana, á hora da ceia, a continuação do que vira e ouvira em casa da madrasta. Fôra preciso um cuidado assiduo, nos primeiros tempos, para refazer-lhe o vocabulario, e transviar para intuitos mais limpidos, a tendencia de vicio que ella trazia no sangue, em purulentos coagulos. Se a educação e o mimo em que fôra subindo, á proporção que se insinuava nas sympathias do palacio, lhe haviam feito a lingua casta, e a expressão virginea, já por fim, no fundo, o terrivel sangue conspirava n'ella, co'as herdanças fataes da vida airada, phosphorejando ardores que a nubilidade ás vezes desencadeava em verdadeiras procellas. Inda creança, o seu amor pelo Ruy já não podia dizer-se immaculado. Não era esse idyllio de bambinos colligados na mesma adoração por uma boneca, nem a celeste comedia, inolvidavel, de duas cabecinhas attentas para o mesmo malmequer que se esfolha á beira d'um campo de trigo, sob o guarda-sol de sêda que a ama baloiça, sorrindo de os vêr tão sérios, os dois noivos pequeninos. Mas uma paixão d'inferior que se deslumbra pelos filhos da raça cujas perfeições não pôde igualar, paixão com haustos de posse, indeclinavelmente physica, prematura, perversa, e cheia d'estonteamentos já torpidos. Com a idade, aquella ancia de Luiza não se corrigia nem purificava, senão ia crescendo, accentuando, colorindo, na medida da sua adolescencia cada vez mais radiosa em seducções.

Nas férias, mal se sonhava o dia em que Ruy devia chegar, já ella não parava quieta em parte alguma. E eil-a passando os dias nos aposentos do menino, revolvendo alcatifas, mudando o logar do leito, perturbando a ordem dos quadros, a disposição dos mobilamentos, agrupando plantas, pelo que sabia das predilecções de seu amo—pondo stores e biombos em todos os portaes por onde francamente entrassem a luz e o ar. Na casa, os creados sorriam, como quem sabe de tudo—gallinha canta... E os ditinhos pullulavam. Mas um que era já ruço, muito gordo, quasi sacerdotal pela rigidez da compostura, costumava deter-se á porta dos quartos, tossindo devagarinho, a vêl-a trabalhar.

—É o Ezequiel menina Luiza.

Ella gostava d'esse, que a defendia sempre das animadversões da creadagem, e por toda a parte a cercava de deferencias tocantes. Mesmo, das suas palavras paternas, ruminadas n'um fundo de reflexão um poucochinho canalha, vinha-lhe uma sorte de lisongeira coragem. Ezequiel era o unico que parecia não pôr em duvida a ascendencia de Luiza sobre a outra creadagem. Emtanto elle ás vezes punha-se a esquadrinhal-a, na sua bonhomia de velho, deixando cahir palavras descuidosas aqui e além, para a fazer dar á lingua, e espaçando reticencias de proposito, no sitio onde a rapariga, simploriamente, logo ia prender revelações.

—Muitos parabens, menina Luiza. Faltam só quatro dias.

Ella, fingindo não entender:

—Ora essa! Para que, Ezequiel?

Elle ia entrando, punha o espanejador ao canto da porta, enxugava os dedos da pitada ao avental.

—Estas raparigas, estas raparigas!... E d'ahi que tinha? Não ha tanta menina pobre casada com pessoas grandes? Eu sempre queria vêr...

—Vossê, Ezequiel, nunca tem melhores lembranças. Ora o mofino!

E o velho, conciliador:

—Acaso admira que vossemecê goste de Ruy? O contrario é que espantava. Creados de pequeninos, no mesmo berço quasi... E olhe que têem muita força os beijos a que uma pessoa se acostuma de creança.

Ella empallidecia e córava sem escrupulo, surprehendida no divino tormento que lhe extasiava o espirito em fogos multicôres.

—Olhe cá, Ezequiel. Cada um no seu lugar. O que diriam de mim, santo Deus?

—Coisa nenhuma, coisa nenhuma. Todos vêem como a senhora marqueza trata comsigo. Zús d'aqui, zús d'alli, está-lhe sempre a chamar minha filha. Olhe que é muita amizade, é amizade de mais para uma servente. Eu sei que isto enfurece os invejosos. Não faça caso, menina Luiza, não faça caso.

—Ah, não tenha medo, Ezequiel.

—E o menino Ruy então, não fallemos. Esse gosta, e gosta muito. Até cartas lhe manda. Não se faça encarniçada, menina Luiza.

—O disparate!

—Já cá sabemos tudo; pois então!

—Crédo! Santo Nome! São cartas que elle manda para a senhora.

—Para a senhora, sim, para a senhora mais nova. Eh! Eh! fazia elle batendo as palmas, n'um tom maligno d'avô condescendente. Essa cama que fique bem fofa, essa campainha que fique bem perto. Rapaziada, rapaziada!

Ouvindo estas coisas, Luiza abandonava-se, perdia a cabeça. E do coração subiam-lhe á bocca ondas de confidencias, gritos d'alma, brutaes franquezas de rebelde. A intensidade do seu sonho interior era tão forte, tão sobreexcitado o delirio da sua imaginação, que para seguir-lhe a trajectoria, Luiza compromettia-se mentindo, gabando-se de scenas imaginarias, sem quasi perceber que se calumniava. Não, Ruy não lhe escrevia. Não, Ruy não gostava d'ella. Mas Luiza, Luiza morria por tel-o ao pé de si. Esses dias eram uma doidice, e Luiza não dormia, Luiza não comia, Luiza não dava attenção á leitura, Luiza estava distrahida á missa da senhora marqueza. A cada instante, omissões no serviço, pequenos confortos descurados nos aposentos, portas abertas deitando correntes d'ar, stores erguidos nas janellas, que endoloriam os olhos da enferma, apenas familiarisados co'as penumbras cinzentas do seu canto d'oratorio.

Então a fidalga impacientava-se: as impaciencias traziam-lhe o nervoso. Era um horror. Para poisar os dedos no braço de Luiza, abrir o livro de rezas, dar uma dentada n'um bolo, a pobre creatura estava minutos em sobresaltos choreicos, debatendo-se contorcida, sentando-se e erguendo-se apenas se sentava, lançando da bocca palavras improprias, repetindo certos adverbios no meio das phrases: e amargurada, presa de terror, por ter a consciencia de não estar fallando bem.

Raro, raro, o senhor marquez que residia em Lisboa, na roda dos alegres viveurs d'então, se aventurava até áquelle deserto da quinta, calado, religioso, e com uma expressão claustral d'austeridade. N'essas poucas visitas, sua excellencia não vinha por certo estancar saudades de sua mulher, senão solicitar da pobre dama, mais uma vez, assignatura para alguma hypotheca que o auctorisasse a proseguir na sua vida libertina de velho rapaz. Chegava então pela noite, em caminho de ferro, estava até ao outro dia, e na madrugada seguinte, zut! elle ahi vai. As palavras que os dois esposos trocavam, eram uma simples formula de deferencia imposta pelo orgulho ás cogitações chocarreiras da creadagem, em que ella buscava mostrar o desdem que nutria pelo esposo, e o esposo parecia artificialisar ainda mais, a sua amabilidade correcta de marido desencantado. Na primavera comtudo, a visita do marquez prolongava-se d'alguns dias, como era o tempo das caçadas. Trazia então quatro ou cinco velhos amigos, alguns creados, e as matilhas de galgos requeridas para a diversão. A marqueza recluia-se mais, se é possivel, no seu angulo de palacio, pretextando que a luz lhe encadeava a vista, que o ruido lhe exasperava a migraine, e o aspecto da alegria dos outros mais fazia contrastar a sua mortal e esmaecida tristeza de antiga moribunda. E os caçadores ficavam sós, livres inteiramente para deixar correr sem respeito, n'aquellas duas ou tres semanas de campo, uma impetuosa existencia de barões feudaes, accesa nas risadas do bom vinho das cavas, nas correrias em pós das rapozas e lebres, e castigando-se á noite, finda a ceia, Deus sabe, entre os braços das mulheres que Ezequiel recrutava discretamente pelo burgo, na grande sala de lambeis gobelinos, com mobilias marchetadas de quatro seculos. Todas as manhãs, Ezequiel ia aos aposentos da senhora marqueza deixar galantemente um ramilhete da parte de seu amo, que á volta da caça lhe mandava em plateau tambem, a melhor peça da correria. Os fidalgos de ha trinta annos eram ainda mais inuteis que os de hoje. A mordomos e intendentes abandonavam a gerencia dos seus negocios interiores. Restos d'altivez faziam-lhes encarar desprezivelmente o que elles chamavam classes subalternas. Isto contrastando nas suas horas lucidas com a intimidade que a mór parte abria a fadistas e toureiros, nos momentos de vinhaça, por esses bordeis que ficaram celebres em cantigas do fado. Este marquez de Selmes foi como os outros, um perdulario espargindo fortuna e forças no rodilhão dos prazeres mais em voga ao tempo. Em Lisboa, dava talher a uma turba de litteratos, graciosos e moços de curro, com quem elle gostava de mesclar os seus jantares d'intimos, por manter o ar d'um grande senhor amigo das artes, requestado pela popularidade dos varios conventiculos elegantes da capital. E na quinta, aquelle mundo heterogeneo de parasitas representava-se um pouco, mais resumido, pelo critico Lagoaças, Alberto M., Marquez das Flôres, grande pegador de bois, pai nobre Cezario, e festejado Mattos, que fazia rir a sociedade referindo historias da Lisboa duvidosa, no seu aranzel comico de tatibitati. N'aquella primavera, a surpreza do marquez fôra Luiza, a grande Luiza que lhe surgia de repente uma senhora, e cujas infantilidades o velho galante distrahidamente afagára até ahi. Lagoaças, que era forte apreciador de fructos no cedo, foi o primeiro a chamar-lhe a attenção para a deliciosa frescura d'aquella maçã prohibida, que promettia co'os seus acres succos perfumar a bocca de quem lhe cravasse os dentes primeiro. Foi então um movimento geral de galantaria no grupo dos caçadores, sobre Luiza. Com a sua nonchalance habitual, o marquez dava carta de corso aos amigos, admittindo-lhes correr palacio a qualquer hora, em pós da famosa presa, se tudo fosse discretamente acontecido. Quem mais lesto e galanteador se antolhasse, mais esperanças poderia nutrir de successo. Alberto M. começou uma elegia.

Deliciosa aranha delicada,

E com pennugens d'oiro revestida:

Ligeira, dôce, setinosa e leve...

Tens a peçonha lubrica mettida,

Na caricia das patas côr de neve.

.................................

Marquez das Flôres era outro genero: confiava na mocidade viril dos seus braços, e nas casacas vermelhas de caçador com que apparecia todas as manhãs no grande pateo da casa, soado o primeiro hallali nas trompas dos monteiros. E a batalha começou, estando Ezequiel empenhado em fazer triumphar o marquez.

Uma manhã fazia Luiza o ménage dos passaros, sobre o terraço, Ezequiel que chega d'acaso. Bons dias d'um lado, bons dias do outro, e começou uma conversa d'introito, ao fim da qual, sem se saber como, Ezequiel já fallava nas graças de seu amo, ideal dos fidalgos generosos, nata dos amigos commodos, e non plus ultra dos amantes discretos. Não é verdade, menina Luiza, não é verdade? Ui! que gorgetas elle lhe dava! Pares de calças que lhe abandonára, novinhos em folha! E a sua maneira de tratar então, como d'igual para igual!

—Boa pessoa, fez machinalmente a rapariga, é muito boa pessoa.

—Uma coisa não sabe a menina. Elle está doido por si.

—Ai! o tramouco do velho...

—Diz que a ha-de fazer muito feliz.

—Brr! Pois quem somos nós?

—Tanto que me encarregou...

—Vossê alcovita agora, Ezequiel?

—Desejaria vêl-a amparada, menina Luiza. Conheci-a pequena n'esta casa, vi-a medrar e fazer-se mulher, e gosto de si como os avôs das netinhas tagarellas. D'ahi, não promette grandes dilatamentos a vida da noss'ama: cedo, tarde, quando menos cuide, ahi vai ella caminho dos anjos. E fallando claro: a situação que ella lhe fez n'esta casa, é uma coisa postiça que lá fóra a menina não poderá continuar sem uma protecção. Quer que mudemos de conversa?

—Posso, Ezequiel, isso posso. Não digo a servir, mas escolhendo rapaz com quem me case.

—Da aldeia, da quinta... Que creação é a d'esses homens? Afeitos ao trabalho das terras, querem mulher da sua condição, que sache, que monde, que moireje, e vista d'estamenha, e tenha rijeza p'ra lhes parir um creanço, em todas as paschoas de Deus. Além d'isso, duas naturezas desiguaes na educação—marido ciumento da mulher que não merece—mulher desprezando o marido que a não soube captivar. D'ahi zangas, ralhos, maus tratos, que sei eu? Ao passo que sendo rica, poderia encontrar um moço d'estimação que lhe fizesse a vida doirada, n'uma casa cheinha como um ovo.

—Mas rica, rica... Vossê conhece a minha gente. Morrem todos de fome, lá por casa. Se me não comem os olhos, é que não podem tirar-m'os sem que eu dê por isso. Ser rica, de que modo, por que processo? Diga.

—Eu a bem dizer, não tenho plano. Idéas vagas, muito d'alto, que se não podem assim contar a uma rapariga nova e com principios diversos dos meus. Idéas de velho que viu mundo e sabe chamar os bois pelo seu nome. Olhe. Quando eu era rapaz tive uma patrôa viuva, entradota, mais que medonha—inda esbraseada por noivar, pobre senhora!—que uma noite me beliscou o assento, de passagem por um corredor ás escuras. Eu não quiz: gostava muito mais da cozinheira: opiniões de galucho, menina Luiza! Fui p'ra rua como era de justiça. Quatro annos depois estava o cocheiro nomeado visconde do appellido da minha antiga adoradora. Perdidinha por mim, menina Luiza, perdidinha. Carago! E eu tão bruto que não quiz! Se lhe ponho as calças em cima, andava agora de sege por essas capitaes.

—Fallando claro, o teu sermão quer dizer: amiga-te com o senhor marquez, rapariga. Não é isto? Por sua morte, talvez sejas rica; em vida d'elle por força has-de ser feliz.

Ezequiel não retrucou, mas poz-se a contar historias de raptos, vergonhosos amores, coisas cynicas e patuscas, sem apparente colligação de sentido. A voz fizera-se-lhe surda, d'uma firmeza espaçada que lhe espargia na face aspectos graves de prégador e de magistrado. E recapitulou da prédica, pitadeando, que a vida era um quotidiano mercado onde a gente adquiria o que por acaso tivesse de sobrecellente. Manoel Antonio Ferro, sahira da aldeia com elle, Ezequiel, em 40, com tres pintos no bolso, e o saquito da roupa branca. Entrado marçano n'uma loja do Porto, roubou o dono: primeira façanha, vá vendo... Foi ao Brasil mercandejar nos escravos, volta millionario. Chegado a Lisboa n'um estadão de principe, recommendado até aos olhos, nenhuma casa se abriu para o receber. Trazia na consciencia duas mortes, ao que se contava, e uns poucos de processos por contrabando e moeda falsa. O homem não se ralou muito co'a recepção dos patricios. Fez tranquillamente um palacio na Junqueira, talhou jardins, comprou herdades, derribou azinheiras, plantou vinha, fez eleições: e um bello dia, quando já entrava a ser necessario, deu doze contos para escolas, reclamando farda de moço fidalgo, pelos Ferros de Santo Thyrso, que eram ladrões d'estrada e sapateiros. Toda a gente entrou a chamar-lhe venerando, desde os doze contos. Hoje, ninguem funda um banco sem o nomear director, e não se inaugura uma escóla sem elle lá ir botar discurso, com os seus ares de pai-avô. Está par, está conde; e se ainda não põe na cabeça a corôa real, é que já tem uma de cornos, mimo da mulher, a sogra d'este Marquez das Flôres que ahi está de visita. A duqueza de Montes, menina Luiza, hoje velha, e tão virtuosa senhora, que manda rosarios da Terra Santa a noss'ama... era uma dançarina do primeiro café-concerto que se fundou em Lisboa, cheia de molestias. Depois da dança, vinha p'ras mesas embebedar-se com genebra, sentada no collo de quem lhe desse dois pintos. Eh! Eh! Tudo se vende e se compra: caras geitosas, virgindades velhas e novas, familia, patria, salvação, condecorações, reputações, sapatos d'ourello e garrafas de vinho. Quer um bom camarote no reino dos céos, menina Luiza? Dê quatro contos ao papa: manda-lhe a chave na volta do correio. Faz-se de côres? Ora adeus! Não digo que seja dos Evangelhos, esta doutrina. Mas é o resumo de cincoenta annos de trambulhões e miserias. Seja-me rica! A primeira felicidade é ter que vender. Mas a unica, a verdadeira, é poder comprar.

—Ezequiel, vossê tem a alma ruim.

—Por lhe confessar que só os imbecis se portam bem? Por lhe dizer que este mundo é dos descarados? Ai, se eu tivesse podido convencer-me d'estas coisas na sua idade! Não traria agora senão a libré de mim proprio, e o mundo havia de fazer o que me viesse á cabeça. Faça o que quizer, menina Luiza. Mas esta fabula é clara como agua. O senhor marquez gosta de si. Qualquer dia a senhora marqueza, trrr... foi-se. Que ha de fazer a Luizinha? Estará resolvida a dar-se por mulher ao primeiro labrego que venha? Mas creatura! Voltar para os casebres da sua madrasta, d'onde fugiu a honra com medo aos piôlhos? Brada aos céos! Viver pura como a luz, uma vida escura como a noite? Olha a tolice! Despir trajos de senhora, deixar este palacio e os confortos da vida farta, a que se afez desde pequena?.. Bau! Bau! não tem coragem. Isso sim! Vá, tane as mãosinhas em trabalhos que humilham e não salvam da pobreza e da fome. Hum! Hum! menina Luiza. Esses olhos não mentem no que deixam adivinhar. Venda, venda! O senhor marquez gosta de si.

As lagrimas saltavam já dos olhos de Luiza.

—É mais facil morrer, disse ella.

—Pois minha rica, não será rondando o Ruy noite e dia, mais de noite que de dia, que a menina ha de ir á cova de capella e palmito. Gostar do filho, tem todos os inconvenientes de gostar do pai, menos as vantagens. Esse pequeno é um cabeça louca; póde fazer apetite ao femeaço—o que não faz com certeza é uma bizarria que a deixe independente a si. Porque não póde! Porque não tem! D'ahi, tarefa inutil perseguil-o. O fedelho por ora não larga os amiguinhos do collegio. A menina não tem fortuna, parece-me ambiciosa... Venda. O seu genero está na alta. Dezoito annos. Uma lindeza! Venda. Bocca de morango, voz de seraphim... Venda, venda. O senhor marquez gosta de si.

Era o tempo das florações e dos ninhos. Divinas juventudes explodiam d'amor nas seivas da terra, na luz e nos perfumes do ar. O céo dôce, todo o campo uma distillaria d'essencias: lá baixo, na aldeia, as romarias começavam, e os casamentos tambem. Luiza guardava silencio, co'os olhos longe, vendo subir a manhã pelo cantar dos passaros. Comprar e vender. Vender e comprar. Uma carinha bonita, um corpinho perfeito. O senhor marquez gosta de si.—E Luiza chorou todo o santo dia.

N'essa cabeça de fogo entretanto, surgia cada vez mais fascinadora, a imagem de Ruy, toda abrasada d'estranhos prestigios: e diante d'ella ardendo sempre o lampadario d'um culto cego e inexoravel. Com o pequeno tinham vindo á quinta passar as férias da Paschoa, tres ou quatro dos seus companheiros mais intimos—Palhalvo, já gordo aos quinze annos, cujas bochechas tinham o geito d'estarem soprando uma desconforme trombeta, á semelhança d'esses anjos papudos que fazem apotheose ao calix mystico, nos frontões das capellas-móres—Mattoso, filho d'um criado velho, que a senhora marqueza destinava ao sacerdocio, e dominava o grupo com os seus modos severos de preceptor—Jorge Forjaz, primo d'Albertina, era o litterato, e recitava Rodrigues Cordeiro e Palmeirim nos banhos da Nazareth e Praia da Vieira—emfim Biscaya, especie d'aranhiço adunco, côr de feno, sempre tossindo, era um engeitado que o marquez recolhera e mandára ensinar, e cuja maldade e azedume transpareciam já nos seus dichotes de gaiato. Esta ronda de meninos bonitos, uns mais precoces do que outros, alvoroçava o palacio logo ao romper da manhã, extravasando nos pateos em exercicios de força e gymnastica, furtando beijos ás moças por onde quer que as topasse, partindo n'uma algazarra, em carretas de lavoira, para as searas onde mondassem raparigas, ou organisando correrias, d'onde os cavallos voltavam desferrados e cobertos d'espuma. Póde-se calcular o que estes diabos accrescentavam de desordem á volta dos festins do marquez: excepto Ruy, que ia ao almoço e jantar fazer companhia a sua mãi. Era a unica imposição tambem da boa senhora, ter o filho em toilette, defronte de si, nas refeições. E isto enchia d'importancia o pequeno, todo esforçado em infiltrar na melancolia austera da enferma, um raio da sua graça juvenil. Mesmo, o seu respeito por ella, timbrava em mimos, pieguices, ternuras, pequenas dedicações que a velha dama absorvia sem transluzir na face exangue emoção d'especie alguma.

Desde que Ruy chegára á quinta, a marqueza dispensava Luiza de lhe lêr as orações e velhos livros de pastoraes, villancicos ou novenas aos santos patronos mais dilectos. Era então Ruy o encarregado de lhe percorrer as passagens estimadas. Elle a tudo se prestava, com um tocante respeito de pagem amoroso, tentando seguir nos olhos d'ella o grau de satisfação que promovia, e evitando as crises com uma ligeireza d'alma adoravel e compadecida. Immovel por traz da cadeira da marqueza, Luiza servia-os, interpondo a enferma como medianeira innocente, no jogo galante em que ella buscava encasular a adolescencia do rapaz. Alguma vez este lhe dirigia a palavra, a buscar apoio n'uma asserção, a preferir o conselho de Luiza no tocante a qualquer pormenor de solicitude para com a mãi. E a alegria da pobre creatura, quando elle erguia aos olhos d'ella, os seus olhos picados de scentelhas leaes! N'essa alma de collegial, toda escrupulosa no froufrou da sua alvinitente plumagem, parece, nenhuma idéa de mulher passára ainda. E Luiza interrogava-se, sofreava-se, confusa, estonteada, aterrada das suas audacias, e sem coragem de revolver co'a sombra d'uma coquetterie, o lago azul d'aquella pureza celeste.

Uma manhã, cedo ainda, Luiza ia acordar Ruy para um almoço na horta, antes da caçada, quando se deteve á porta do quarto, sentindo rir e cochichar por entre as cortinas do leito. Talvez que Palhalvo, madrugador, a tivesse antecedido. Uma avidez de saber espicaçava-a entretanto. Pé ante pé, esgueirou-se por entre os batentes da porta, franzindo pouco o reposteiro, para se ir acocorar, sutilosa, por traz do grande biombo de coiro que resguardava a entrada. Era um dialogo abafado, d'um tom unido, e com palavras expirantes que ás vezes se perdiam entre murmurios de suspiros e beijos. Luiza avançou traiçoeiramente a cabecita de vibora para fóra do esconderijo. E os seus olhos estavam como uma interrogação rancorosa, através das phantasticas elegancias d'essa camara, que nos seus mais pequenos detalhes evocava em estatua a organisação desconnexa, fruste, mysteriosa, desigual, que lá vivia. Bem podia a estranheza da installação ser tomada em amostra de faculdades singulares. D'aquellas fórmas erraticas e symphonicas de côres amortecidas, via Luiza exhalar-se, sob um dia novo, a alma exotica a que ellas serviam d'involucro. As paredes eram forradas de velludo sombrio, já desbotado nos sitios do sol, e com pinturinhas vaporosas de figuras e flôres. Sombrios tapetes, quasi uma relva, amorteciam a bulha dos passos, até aos degraus do immenso leito toucado d'escuro, á laia d'eça, e com cercaduras á moda das da armação mural. Uma quantidade de moveis singulares: credencias d'ébano sobre ligeiros pés, trabalhadas como uma renda preciosa de volutas, entre ferrarias de prata batida a martello; nudezas d'estatuas aos cantos, brancas d'insomnia no rasgo genial das suas attitudes, servindo de cabide a chapéos de mil formatos: grandes jarrões sobre cubos esculpidos, em cujas arestas noctiluziam douradas vagas de pregos: e mesas carregadas d'estatuetas, marfins, velhas miniaturas, bocetas esculptadas: espelhos de metal, tenebrosos, por cima dos canapés, fazendo surgir da sua agua verde, esqualidos phantasmas d'enforcados: roupões de grandes desenhos na espalda dos tamboretes: e defronte do leito, um enorme divan com os cochins em desordem, alguns atirados, e livros por cima, cujas folhas os galgos iam passando entre as patas, por distrahir-se, nos intervallos da somneca. De cada um d'esses pormenores, um braço sahia e apontava um capricho, escaninhos velados de religião instinctiva, qualquer coisa de cavalheiroso em que palpitava uma raça, ou se iam espreguiçando as passivas mollezas da anemia hereditaria. Lentamente, os olhos de Luiza afizeram-se a divagar por toda aquella confusa penumbra. Pela direita, acima do genuflexorio, n'uma especie de tryptico negro, havia um quadro: era estranho: duas mãos brotavam da carbonosa noite do fundo, implorativas, mãos d'asceta devorado pela tentação: uma cabeça funebre movia-se nas sombras d'um capuz, insistindo em affirmar o quer que fosse d'asperrimo—se a lampada gothica de tres bicos, cahida do tecto, oscillava, no tom mortiço que as luzes têm de dia, mesmo ás escuras. Aquillo parecia um templo, sob a agonia terrivel da lampada. Mas já lambendo o muro, o clarão d'ella fazia valer tropheus d'armas, radiando d'estapafurdias panoplias: a mitra d'um bispo, cravejada de joias, um parasol de coiro arrancado ás escavações d'um templo romano, em Evora, peitoraes d'uma antiga cota sarracena... E dir-se-hia uma sala d'armas então. Porém do outro lado, a luz ia aclarar perto do leito, um perfumador de cobre sobre tripé de bronze. Luiza reparou. Ligeiros fumos fugiam á tona da caçoila, espojando arômas de flôres de Takeoka, bolas de styrax, coiro da Russia, jasmins... E santo Deus! a narina farejava lupanar. De quando em quando, as cortinas do leito mexiam, e pelo ar respirado da peça, aquelles perfumes torpidos erravam, n'essa calentura das alcovas habitadas pela reminiscencia de muitos amores sobrepostos. Luiza sentia-se desfallecer, á idéa d'outra mulher antes d'ella, ter captivado o estudante. Mas que mulher? dizia a camareira emparvoecida. O nome d'ella? O feitio d'ella? Dentro do palacio, por mais que procurasse, não descobria uma rival. Sua irmã não era bella: e fatigada, arrastando saias de barra immunda... Na cozinha, as creadas, todas feias de perder os sentidos. Alguma creatura de fóra? Isso é que não! De noite, Luiza rondava os corredores: a galeria que abraçava exteriormente o quarto de Ruy, era Luiza que lhe fechava a grade de ferro, aberta sobre os jardins. E irresoluta, tinha um suor na raiz dos cabellos. Aquelle sonso! Aquelle vil!—A sua primeira gana tinha sido correr ao leito, afastar as cortinas, ir contar tudo á senhora. Mas um terror apoderára-se dos seus membros. Que medonha noite na sua alma, que singular e perfida violação do seu destino, quando ella visse com os seus olhos, palpasse com os seus dedos, o que já alcunhava de traição a uma fé que ninguem lhe havia ainda jurado! E lá dentro, n'aquelle infame ninho de volupias, sempre o murmurio de beijos e suspiros. Urgia emtanto chamal-o para o almoço. Já no pateo havia rumores de vozes e relinchos de cavallos. Luiza sahiu pé ante pé, para entrar outra vez com grande ruido de portas atiradas. Mas ainda ella não transpunha a área de resguardo marcada pelo biombo, Ruy sahiu do leito com impeto, muito pallido, vestido apenas d'uma camisa de sêda: e vindo a ella, volubilmente, abraçou-a a plenos braços, deu-lhe um beijo furioso na bocca, e de rodilhão pôl-a fóra, fechando a porta sem mais explicações. Foi n'aquelle idyllio triste a unica impressão feliz que ella sentira: e todo o dia, toda a noite, lhe sabia a bocca áquelle beijo de rapaz que lhe entrára na carne pela furia virulenta da lingua.

D'alli a pouco, os caçadores deixavam o pateo direito ao laranjal. Luiza chegou-se ao terraço a vêl-os partir. Era o resto. Alberto M., empurrava para a porta Marquez das Flôres, retardado em dizer madrigaes á camareira. Festejado Mattos ia bifurcado n'um burro, immovel como um bonzo por baixo d'um grande chapéo de esteira do Algarve, entre cabazes de provisões. Marquez de Selmes fôra o ultimo a transpôr a porta. Reparando em Luiza, gentilmente:

—Tira a cabeça do sol, não adoeças.

E mandou-lhe um beijo nos dedos. Então ella alongou a vista para além dos muros do pateo, viu Ruy pelo braço de Mattoso, conversando a passos vagarosos.

—Menina Luiza.

Era Ezequiel com uma caixa de marroquim.

—Da parte do senhor marquez.

Luiza abriu o cofre, na ingenua expansão de Margarida ao atacar a aria das joias, na scena do jardim.

—Joias, joias! e houve no orgulho d'ella, um romper do sol vertiginoso.

—Para começo, é do melhor, dizia Ezequiel. E Luiza tocava n'um bracelete ao acaso, com safiras e pequenas perolas d'agua duvidosa. Havia mais um afogador, seu par de brincos, outra pulseira... E a sua bocca sorria de pasmo, na sua cara enxovalhada de pejo.

—Vale quarenta libras, toda esta caganifancia, quarenta. O homem faz limpamente os seus negocios, dizia Ezequiel. Eh! Eh! ponha lá as pulseiras, menina Luiza:—abriu uma.—Que lindeza! Metteu-lh'a no braço. É para vêr como fica.

Luiza toda se arrepiava ao frio do metal na pelle trigueira do seu punho. Lembravam-lhe aquelles beijos na camara de Ruy, pela manhã. E fechou o cofre de repente, dizendo a Ezequiel que o tornasse a levar ao marquez. Com certeza houvera engano. Ella não podia aceitar presentes d'aquelles.

Então c'o gesto grave, Ezequiel:

—Nada, nada. Seu amo ficaria fulo, se visse as joias recambiadas.

Mas Luiza não o escutava, nem ouvia. De novo, o ciume lhe fizera derivar a attenção por outra corrente.

Oh, a mulher que estava com elle! Não poder ella agarral-a sem testemunhas! Não lhe poder tomar o nó da goela entre os pollegares furiosos; e desagregar-lh'o, e esmagar-lh'o fazendo-lhe espalmar a lingua para fóra da bocca, até á base toda sangrenta nas mordeduras da agonia! Via-o então apparecer d'entre as cortinas—como elle vinha, lesto, branco, em sobresaltos!—na sua esguia camisa de sêda, vermelha e longa, muito franzida á volta do pescoço, e toda ella moldando a estatura elançada d'algum d'esses reisinhos loiros das phantasmagorias poeticas de Shakespeare. E o beijo que lhe déra, tão sapido de delicias inéditas, bocca a bocca, Luiza tinha-o sempre no fremito dos seus labios, e guardava-lhe o perfume no halito, como se o embalsamára uma pastilha de harem.

—Além de que, tenho fé que a menina vai d'aqui a pouco mudar de tenção. Olá se vai!

—Que está a rosnar, Ezequiel?

—Nada, nada. Aceitar, que quer dizer? É um presente: meu amo não pede nada por elle. D'ahi, seria a primeira vez... Eu cá recusei deitar-me co'a viuva, que era barbosa e medonha, mas sempre lhe fui recebendo bom relogio de oiro. Gente pobre põe de banda orgulhos tolos. É metter n'algibeira, menina Luiza. É de boa creação.

Luiza ficou cogitando. Joias tinha-as ella visto nos gavetões da marqueza, em grandes cofres de setim desbotado: estylos modernos, velhos estylos, todos os metaes, todos os esmaltes, pedras de todas as aguas e de todas as côres. O mal da pedraria, que faz cúpida a mulher do alto luxo, Luiza não podia soffrel-o ainda, no seu humilde papel de camareira. Vagamente ella entrevia a seducção d'aquellas faiscantes areias, que os romances acclamam como talisman de todas as concessões, sem todavia desconfiar que atmosphera mordente põem de roda á belleza, as fulgurantes pedras lapidadas. Ir contar tudo á senhora marqueza? Boa idéa. Luiza foi aos aposentos da enferma. Ahi lhe daria o ataque de nervos, desharmonia na casa, e talvez para ella o olho da rua... Muito embora! Entrou. Mas logo ao entrar ouviu tossir. A velha passára mal durante a noite, vomitos sêccos, uma ponta de febre, e a manhã passou-se n'isto. A marqueza não tinha querido erguer-se da cama, e ouviu missa mesmo deitada, pela porta entreaberta do oratorio. A cada momento, Luiza tinha que voltal-a, trazer-lhe um livro, executar uma ordem, aconchegar uma cortina, vêr o tempo. E só pelo meio dia pôde tirar um bocado para se ir vestir. O quarto d'ella era junto aos aposentos da senhora, com uma porta sobre o grande corredor que levava aos quartos de Ruy, não longe dos quaes demorava Ezequiel. E Luiza começou um toilette minucioso e cuidado. Ao canto fumegava o banho, em que ella entornára meio frasco d'agua flórida. E sobre a commoda, o cofre aberto, deixava vêr os presentes do marquez. Das gavetas saccou Luiza a roupa que precisava: uma camisa d'abertos, bem fina e trabalhada por ella, saias brancas—era um domingo—e d'uma gaveta pequena, o retrato de Ruy que poz á vista, sobre o pequeno movel de cabeceira. Já uma a uma, as saias d'ella iam cahindo, diante do espelho, com a friorenta graça, um pouco crispada, d'um faisão que se banha no regato, ruflando as plumas, depois de haver bebido. E ainda apoiando ao seio a camisa, que despira, espremeu d'alto, vagarosamente, sobre a tina, a esponja ensopada em agua tépida. Desnastrára os seus cabellos, que eram grandes, espiralados, bem fartos, reluzentes e negros, torcendo-os após sobre a nuca, n'um grande molho de serpentes, como nas estatuas classicas, os cabellos da Venus aphrodite. Espiralitas doidas, carrapitos finos, muitos frisados, soltavam-se-lhe do turbilhão de cabellos, por brinquedo, cocegando-a na pelle doirada do pescoço. Emfim a camisa cahiu; e era assim adoravel de nudez, triumphante de mocidade, cheia de revelações e surprezas virginaes. Quasi morena, a sua pelle vestia uma carne rija, symetrica, cantando sonatas perfidas de volupia, em que resoavam estribilhos de dentadas, gritos hystericos, spasmos e soluços d'insaciavel peccado. Mesmo, á volta da banheira, dirieis que as coisas abriam palpebras, e por entre as palpebras, olhos que a fitavam, furiosos de deboche, gritando infamias por centenas de boccas invisiveis. Ui! como a sua divina garganta, rapazes, parece crystallisar em bellezas inéditas, toda a luxuria em que as gerações têm urrado, sedentas da fórma, ha tantos seculos! Que bazar de tentações delirantes era o seu peito, que duas pétalas de rosa maculam, tão altas, tão iguaes, tão erecteis, que antes pareciam beicitos de criança, estendidos n'um momo candido para aceitarem o beijo d'um velho amigo da casa.—E mergulhou, espanejada, dilatada de prazer, cantarolando baixo uma cantiga. A espaços chapinhava a agua, immergia, tornava a cahir, amollecida n'um desejo, sonhando noites de nupcias com elle, sobre o leito de cortinas sombrias, onde as suas respirações se estrangulassem entre um murmurio de beijos e suspiros. O retrato de Ruy nem a fitava, receando a perscrutação impreterivel dos seus olhos, e o jugo d'aquelles braços, absorvente e pantanoso.

Uma hora no relogio do corredor.

Ainda agora Luiza não sabe explicar, como é que tendo jurado a si mesma, recambiaria o estojo ao marquez, se encontrou no fim do banho em frente ao espelho, núa como Cypris na areia de Cythéra, ensaiando o effeito do afogador e dos braceletes, na pelle rosada ainda dos attritos da esponja. Á medida que ia fixando sobre o espelho, tantos e tantos detalhes de perder a cabeça, passava no clarão dos seus olhos o mudo extasi de si propria, e a coriscação do oiro novo, nas flocosidades brunas da garganta e dos hombros. E comsigo mesmo acabou por achar razão a Ezequiel. Por fim de contas, aceitar que quer dizer? É um presente. O senhor marquez não pede nada em demasia da offerta. Virava a cabeça para vêr o luzeiro dos brincos, ageitava o colar, punha as pulseiras... Deliciosa, fascinadora, appetecivel! Se Ruy pudesse vêl-a a plena luz, assim despida, e sem a hypocrisia do mais ligeiro véo, talvez que elle sustasse de vez tantas repulsas—ai, talvez!—e viesse cahir-lhe aos pés absorvido na sua belleza immortal. Oh, como da esbelteza nervosa dos dois corpos, ventre a ventre, se evolaria o poema de mysteriosas caricias n'esse instante, rimado a beijos, labio a labio; esse divino poema, através de cujas estancias rola a batalha do gozo, e do calice de cujas imagens gotteja a tripla-essencia das mais celestes devassidões! Duas vezes ou tres desenrolára a camisa, esfregando-a da gomma entre as mãos sobresaltadas: e ainda por fim se adorava no espelho adulador, furiosa por dar-se, n'um paroxismo que ia até ao deslumbramento. De repente pareceu-lhe ouvir rumor no quarto proximo. Enfiou a camisa á pressa, atarantada; pé ante pé foi indo de mansinho até á porta, receosa, d'ouvido á escuta occultando a nudez por traz dos reposteiros. Não se enganára. Estava entreaberta a porta do corredor. Então lançou um chale pelos hombros, enfiou as chinellas á pressa, sem se atrever a perguntar quem andava lá. Mas deu um grito de susto, vendo Ezequiel diante d'ella, lívido de morte, tremulo e babado como um satyro decrepito.

Luiza apenas tivera tempo de acocorar-se a um canto da peça, buscando encobrir-se toda no chale, pallida de vergonha e gritando ao malandro que se fosse.

Porém este, apopletico, nem fallar podia, fulminado por aquella visão de mulher núa, e com o cuspo a espessar-se em grossos fios nos cantos da bocca.

—Aquelle ruivo, menina Luiza, tartamudeou elle por fim, rolando os olhos,—o que faz versos... Entregou-me este papel para vossemecê.

—Bem, bem, vá-se embora. Ande! Não ha maior atrevimento.

—Ouve, Luizinha, rica filha, eu já me vou. É uma coisa que eu trago aqui guardada. Des'que te vi. E tão núasinha, tão boa, Jesus do céo!

—D'aqui p'ra fóra! Já! Ou chamo gente.

—Os outros querem-te por uma vez, pai, filho, moços e velhos, anda tudo atraz de ti. É uma canalha, já t'o disse, é uma canalha. Até me propuzeram que te amordaçasse, uma noite, p'ra se refocilarem comtigo, aquelles ladrões.

A sua voz rastejava, o seu aspecto era terrivel.

—Pelo amor de Deus! supplicou elle. Ouve-me ainda.—Estou quasi rico. Estou velho. Oh, chega-te a mim! Podemos casar. Ámanhã. Hoje mesmo. Filhinha! Que és bonita d'offender a Deus no céo.

Estendia os braços para cingil-a, co'a lingua sêcca na bocca, e alongando os beiços lividos contra os claros de nudez que lobrigava.

—Anda commigo. Sahirás d'esta espelunca. Só em Lisboa, tenho doze contos no banco, á minha ordem. Pratas, inscripções arrecadadas ao canto do meu bahú. Ouve, Luiza! Tu matas-me, diabo! tu estás deitando a minha alma no inferno. Um beijo só n'essas carninhas. Deixa dar. Que mal te faz?

E vergado á tremura senil dos debochados, Ezequiel cambaleava, crispava-se, indo para ella de rastros, assim como um cão leproso conquistando a codea que lhe negam, sob golfões de chicotadas.

—Não tenho herdeiros. Um pobre velho! De hoje p'r ámanhã posso morrer. Lembras-te do que te tenho dito? Os conselhos, os mimos... tristezas que eu soffro por causa de ti. Eh! Eh! Está decidido que aceitarás.

Então conseguiu agarrar-lhe um braço, o que desligou Luiza das algemas nervosas que a sustinham, estarrecida, perante o sapo de cujo visco escorria tanta lascivia torva d'impotente. Houve uma lucta. Os cabellos de Luiza rolaram.

—Larga-me, ladrão! dizia ella n'um choro baixo, rapido, soluçando em convulsões. Comtigo, nem morta, estupor! Doira-te, a vêr se eu te não cuspo n'essa cara. A tua vida, todos a conhecem. Devias andar na costa d'Africa, amarrado com cadeias a algum canzarrão da tua parecença. Larga-me, larga-me, quando não dou cabo de ti!

Elle porém, retendo-a, sem violencia ainda:

—Tu deves lembrar-te, Luizinha, do bem que eu te tenho feito. Os teus desejos, ando a adivinhal-os. O teu nome é-me sagrado em toda a parte. Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus!

—Rua d'aqui! De quem eu gosto é do menino. Eu hei-de ser d'elle por força. Inda que eu haja d'entrar na vida depois.

Os dentes do velho rangeram. Chorava, ria, esse homem, cobrindo o peito de baba; era assombroso de vexame! Luiza conseguira libertar uma das mãos; e pregou-lhe nas ventas uma bofetada medonha. Áquella affronta, Ezequiel perdeu a cabeça. As obscenidades golfaram-lhe da bocca, como granizos espessos, pintando toda a decrepita infamia da sua alma. Ella estava de pé junto da porta, quasi núa, sem se importar. Tinha no collo e nas orelhas as joias que lhe mandara o marquez. O velho viu-as.

—Eh! Eh! Sempre aceitaste o cofre de meu amo. Já lhe posso ir contar que o mais difficil trabalho está vencido. É melhor ser amásia de fidalgo que mulher de creado de servir. Inda tu procedeste com brio. Ha marafonas honradas! Podias ter escolhido as duas profissões ao mesmo tempo. Ella ria-lhe na cara. E o miseravel, volvida a crise, apresentou-lhe as ultimas concessões. Ajoelhára. E jurou-lhe consentiria o adulterio. Dava-lhe as suas riquezas por uma noite só d'intimidade. Casada com elle—ao dia seguinte, podia partir com dinheiro dos seus cincoenta annos d'escravidões e economias.

Luiza não retrucou: agarrára um papel de cima da cama.

Deliciosa aranha delicada...

Mas casualmente, erguendo os olhos, viu na bandeira da porta tres cabeças gravemente assestadas á vidraça, gozando a comedia com a paz d'alma de bons espectadores das galerias. Marquez das Flôres tinha um grande binoculo com que a mirava. O poeta estava em extasi. Do festejado Mattos mal se via a careca luzente, como era mais pequeno, e uma ponta do nariz guloso que vinha adejar contra os vidros, como um focinho de morcego encandeado contra a luz d'uma fogueira.

Perto da quinta, sobre um outeiro coberto de cevada verde, do outro lado da aldeia, houvera de tarde uma festarola d'ermida. Todas as creadas tiveram licença para ir até lá, depois do jantar, excepto Luiza que estava de serviço á marqueza, e Ezequiel que, já velho, quizera ficar junto de seu amo. Dos terrados do palacio via-se, já noite, a foguetaria estrondeando no adro, e clarões de fogueiras lambendo as saias das moças na sarabanda dos bailaricos. De quando em quando, uma labareda mais clara desenhava no azul profundo a branca fachada da igreja, d'onde sahia um campanario em agulha, cujas sinetas desde a manhã tagarellavam festivamente. Extinctos os rumores das officinas, no andar terreo, silenciosas as cocheiras e mais dependencias da casa, toda a enorme residencia dir-se-hia acachapada n'uma somnolencia lugubre, entre a confusão dos arvoredos. Apenas nos quartos da fidalga cochichavam tres ou quatro velhas damas das quintas perto, que tinham vindo de visita, aproveitando a aberta do dia santo; e na casa de jantar, logo depois do café, o jogo começára entre os convidados do marquez.

Sósinha no terraço, Luiza seguia a curva dos foguetes no céo primaveril, esmagada pela espantosa scena com Ezequiel. Queixar-se..., ella tinha pensado em queixar-se. Mas Ezequiel contaria a scena do afogador e das pulseiras, a sua loucura pelo Ruy, e todas as tagarellices que a pobre cahira em confiar-lhe. Á tardinha, vencida de remorsos, ainda ella ousára ir com o estojo ao marquez, a recusar-lhe nitidamente aquellas offerendas que não merecia. Elle olhou-a com a bondade um pouco ironica que costumava ter.

—Meu padrinho, eu vinha...

—Ah, não me agradeças, pequena. Sei da companhia que fazes á senhora. É uma lembrança de minha parte. Nas raparigas bonitas é que essas coisas dizem bem. Vai.

E Luiza não tivera coragem d'insistir.

Essa noite, Ruy que passeava, fumando, ao longo da balaustrada, observou-lhe:

—Estás com pena de não ter ido ao arraial?

—Eu cá sim! respondeu ella. Olhe que ha de ser por lá uma balburdia. Se lá estivesse, o que eu fazia era voltar.

—Ainda é tempo, se queres. Minha mãi dá-te licença.

—Ai, não. Gosto pouco de romarias.

—O que é que tens então? Pareces triste. Pareces doente.

—Eu não tenho nada, menino.

Elle fez mais duas vezes o comprimento da balaustrada, lentamente, fumando: e o seu passo não fazia ruido sobre o xadrez da plataforma.

—Só se te zangaste esta manhã... Foi brincadeira minha, não faças caso.—Mas Luiza sorriu-se: zangar, porque?

—Eu sei! Podias não ter gostado.

—D'um beijo? Ora! não vinha talvez p'ra mim.

Ruy tossiu um pouco. De cada vez que elle dava costas, os olhos de Luiza seguiam-n'o. E a sua figura perdia-se no escuro, ficava um instante indecisa entre as sombras das arvores. Luiza aguardava então que elle voltasse, com extasis de devota, e quando o lume do seu cigarro apparecia, ella retomava a sua postura de Manon batida.

—Já sei, que tem um namoro, disse ella em voz baixa, ao fim d'um esforço.

Elle voltou-se.—Eu!

—Tem, tem.

Ruy estava muito familiar.

—Póde ser. Na vizinhança ha bonitas raparigas.

—Não, não, cá em casa.

E o pequeno rindo.—Então és tu.

—Ai, a mim ninguem faz festa. Acham-me feia.

—Ao contrario. Toda a gente anda por ahi a fazer-te a côrte. Eu percebo.

—Esses!... disse ella, fazendo olhinhos de gata sobre Ruy. E encolheu desdenhosamente os hombros.

—Mas, emfim, quem namóro eu?

—Não disfarce. Quando entrava no seu quarto esta manhã, ouvi...—Já elle proseguia no giro interrompido, como se entendera a indiscrição. Essa vez demorou-se mais. E ao topal-a, bruscamente:

—E tu que recebes presentes! Dizes que não.

—Ah, sabe.

—Esta manhã.

—Á hora dos beijos... juntou Luiza para lhe metter ferro.

Elle tinha ficado nervoso.—Hein? presentesinhos...

—Quem m'os deu explicou-me o motivo porque m'os dava. A minha recusa seria prova de soberba, e tinha de passar por desagradecida aos olhos de meu padrinho.

—Quero dizer, eu não me importa...

—O tal Ezequiel que enxafurda os outros na calumnia, devia lembrar-se das muitas infamias da sua vida. Olhe que se eu quizesse fallar!

—Não. Isso cautella. É um creado velho, elle prudente, elle fiel... Emfim, agrada-me.

—Deus fará com que se desilluda, menino, quanto mais depressa melhor. Mas ao menos, devia ter-lhe contado tudo, o intrigante.

—E achas pouco? tornou elle em ar de mofa.

Luiza interdicta, não sabia bem ao que elle se estava referindo. Ficaram calados.

Até que resoluta, um pouco tremula, pondo-lhe as mãos sobre as mãos:

—Ha uma pessoa só de quem eu gosto, disse ella.

—Cá em casa estão muitas. Provavelmente gostas de todas.

Ella dava grandes suspiros, afflicta: e desatou n'um choro subitamente.

—Mas vamos! Que é isso? Porque choras tu?

—Não é nada, não é nada...

—Não, isso has de dizer.

Ella deitou-se-lhe aos joelhos, e n'uma anciedade:

—Oh não me deixe! Não me deixe! Se elle soubesse! Era tão desgraçada, tão maldita! Todos na casa queriam perdel-a; Ezequiel antes de todos, lhe infundia um pavor funebre e desgrenhado. Que mal fazia ella? Porque insistiam em lhe fazer sentir a sua falsa posição n'aquella casa?

—Mas cita os nomes, conta o que te fazem, insistia Ruy por acalmal-a.

—Não sei, não sei, dizia a rapariga: e soluços bruscos abalavam-lhe o peito. Era uma angustia que a tomava, uma tristeza que lhe vinha sugar o coração. De noite acordava espavorida, com um novello nas goelas, sem poder respirar. Tinha que dormir fechada á chave, por sentir passos de roda do seu quarto, sombras fugindo na curva dos corredores... Tudo lhe parecia hostil n'aquelle palacio agora... os olhares dos homens, as tagarellices das creadas, os proprios rumores indistinctos d'altas horas.—Ezequiel dissera que a havia de perder.

—Olha a mania! Ezequiel não passa d'um pobre velho.

Ella quasi o cingia pela cintura, estreitamente, fazendo-se pequenina, e como se quizesse abrigar-se no concavo das suas axillas. Supplicava em voz surda, com a bocca collada ao peito d'elle. Dirieis uma liana de martyrio enlaçando a haste flexivel d'um cipó.

—Não, não, menino Ruy. Luiza bem adivinhára os intentos d'aquelle homem sinistro. Elle queria-a. E ousára dizer-lh'o com que palavras, sabe Deus!—E outros ainda. Marquez das Flôres, que outro dia, ao encontral-a no jardim... Finalmente Biscaya vinha arranhar-lhe á porta do quarto... O ruivo mandava-lhe poesias... Nas cozinhas, em ella entrando, todas as moças tossiam como se lhe soubessem d'um pôdre. Até os da cocheira tinham ousado chalaças crúas, quando succedia toparem-n'a de perto. E Luiza tremia, Luiza perdia a cabeça!—Uns por ciumes da protecção que os senhores lhe dispensavam; outros por maus desejos que ella sempre tinha repellido; e todos buscando precipital-a da sympathia de Ruy e da marqueza. Oh, já não sabia como fugir áquella calcinante atmosphera de odio e rancor.

—Casar, disse elle. É o que deves fazer. E o seu olhar evitava-a.

—Casar, ella! quem queria uma mulher sem fortuna, e com a educação mais alta que o nascimento? Os habitos que contrahira n'aquella casa prohibiam-lhe de se unir a um qualquer homem do campo que ella de resto não saberia amar sinceramente. Esses mesmos habitos haviam compromettido a serenidade da sua consciencia, e quem sabe se auctorisado os desbragados propositos dos que buscavam perdel-a? Mesmo, a sua razão tresvairava: era necessario um esforço desesperado para varrer da cabeça as loucuras que por lá corriam.

Loucuras, sim?

Ella não delirava. Casar com este ou com aquelle, tudo era cahir do sonho radioso a que se afizera primeiro. O homem que ella adorava, jámais poderia sem descer, tocar-lhe com os labios na testa. E o seu futuro, ella bem no via, descendo n'uma espiral d'angustias e desalentos. Em creancinha, quando o menino estava ausente, Luiza dir-se-hia no palacio a filha unica da marqueza, que todos acariciavam de passagem, buscando por ella captar a benevolencia da fidalga. A felicidade era tão facil d'aprender! Assim se fôra educando, como se a destinassem a algum homem de condição superior. Até a familiaridade de Ruy, n'aquelle tempo, lhe ajudára a fomentar a sua illusão de grandeza. Agora Ruy estava um homem—adeus encantamento! Luiza teria de voltar a ser uma guardadora de porcos.

Elle apadrinhou-a com um magnifico gesto fidalgo. Quasi nem metade das suas palavras ouvira, porque havia um instante, surpreso, se escutava, sentindo-se invadir d'um sentimento indefinivel, delicioso, inquietante, que lhe ascendia no sangue, e o esbraseava no mais recondito da sua carne, e lhe punha fervores pela nuca, até ás fontes, como se fôra um veneno. Aquillo espraiava-se n'elle em bruscas ondas: era uma sensação inexplicavel de vaga delicia, sobresalto, receio, queimadura... Já trinta vezes quizera afastar Luiza, sacudir os filtros que vinham da sua provocadora belleza, retomar o seu bello ar de principe herdeiro, impassivel aos arrulhos do serralho: e outras trinta sentira faltar-lhe a coragem. Entrou então a dizer-lhe consolações ao acaso. Ella estava por força na sentimentalidade ephemera d'um mau momento, vendo côr de cinza por uma ennublação instantanea da sua viveza de rapariga—nem admirava, com a doença da senhora marqueza... E senão, que queria dizer tudo o que lhe ouvira? Das suas palavras, não resahia uma só causa de soffrimento legitima. Era quasi tudo pesadello romantico, trahindo a crise dos nervos convulsivados, hemorrhagia sem lançada, preludio d'amor latente, que fluctuava ainda sem escolha d'idolo. No fundo d'essa avenida de projecções melancolicas, era evidente que a sombra d'um homem adejava, mas sem physionomia, sem cabeça... uma insurreição do feminino em cata de nupcias. As mulheres aos vinte annos vibravam todas n'aquella passageira crise do sexo reclamando o culto para que foi votado. O necessario agora era pôr uma cabeça sobre os hombros d'aquella translucida apparição, dar-lhe face, dar-lhe caracter, dar-lhe nome... Finalmente, tornar o phantasma em homem!—E sorrindo: hei de procurar-te um noivo, deixa estar.

Luiza erguera a cabeça.

—Tu?

Surprehendido, elle encarou-a. Viu-lhe o perfil dealbado por um lampejo da sulfatara interior, e a lascivia da bocca aspirando o halito das suas benignas palavras.

—O meu noivo, balbuciava ella n'uma especie de amoroso delirio, poetisado pelas cadencias da voz debordando em melodias. Procura-o perto. Talvez te não responda, apesar dos meus suspiros que o chamam, noite e dia. É uma estranha creatura, esse noivo, bella como a apparição do Christo a Santa Thereza, porém fria e fatal aos que se lhe approximam. Só prostrada na terra eu ouso chegar-me a elle, como um reptil a uma corça branca dos bosques. Entre nós, eu bem conheço, ha o boqueirão d'uns poucos de seculos de cultura. Quero preencher com a minha belleza esse formidavel precipicio que me prohibe de o adorar. Ai de mim! Embalde os meus braços tremulos se lhe estendem, e os meus olhos extaticos vão pousar-se, como pombas, no esplendor da sua belleza tão pura. Elle não quer ouvir os meus soluços, nem derramar nos meus cabellos a calorosa uncção das suas caricias. É nobre, é altivo. O seu destino o preserva das minhas traiçoeiras ciladas. Todas as aflicções da minha alma, todas as reluctancias da minha juventude, dias de esperança, noites de delirio, nostalgias a olhar do angulo d'um terraço o cotovello d'estrada por onde a sua carruagem se sumiu... tudo ahi fica murcho e desfeito no caminho dos seus passos, sem que elle volte a cabeça para me lêr no branco dos olhos a cruciantissima dôr que a sua pisadura fez verter. Annos e annos, esta cegueira luctou por captivar-lhe a misericordia, sem reparar nas concessões infamantes que a minha alma ia fazendo aos desejos que a torturavam. Quiz transfigurar primeiro o meu amor n'um celeste e casto poema, todo espiritual, todo intimo; subtilisal-o em dedicações, impôr-lhe sacrificios... devotar-me emfim á sua felicidade, calando o grito do meu coração que reclama sem partilha, essa creatura em que elle não póde pensar sem deslumbramentos. Protesto inutil! Filha de grosseiras gentes, puidas de miseria, e fazendo do vicio desforço para amordaçar o desespero, estava escripto que eu havia de andar a rojo, como a serpente, tentando a claridade immortal da sua adolescencia.

Luiza calou-se, arquejante. E os seus cabellos roçavam pela bocca de Ruy, mordicando-lhe a pelle do queixo com uma titilação imperceptivel.

—Emfim, a minha paixão chega a um limite e rebenta, prevendo o instante em que elle me vai fugir para não voltar. Oh não me abandones tu!

—Vem gente, tornava Ruy n'um sobresalto.

A mesma loucura os tomava e fazia pulsar estreitamente unidos, assim como n'uma bocca muda, um labio a outro labio.

—Não! É um minuto mais, dizia ella. Eu já não sei o que digo. A idéa de que outra mulher terá beijado a tua bocca tira-me o somno, e o meu sangue tumultua e allucina-se desde que perdi a esperança de te captivar a um simples fremito das minhas sobrancelhas. Eu não te peço um desses amorfos e dessorados amores que sob a umbella da igreja podem mostrar-se a toda gente, na atonia estupida em que a lei amosenda as fioriture do coração. Tornei-me um animal de luxo, não é assim? cuja posse disputam em tua casa esses homens. Então escolho-te! Estou no meu direito. E como uma escrava, estatelo-me no chão que tu pisas, para que me esmagues a cabeça depois de me haveres cingido, uma vez só que seja.

Ella cahira-lhe aos pés, e beijava-lh'os com a exaltação d'uma louca e os phrenesis d'uma enfeitiçada. N'aquele instante, Ruy nem sequer teve um gesto para apanhal-a do chão. Fizera-se muito pallido. Os seus braços tinham cahido. E um terrivel sorriso zigzagueava na sua bocca enygmatica. Dirieis uma creança, que chegada ao fim d'um bello conto, subito se desencanta do entrecho, e passa adiante, sem lhe ligar mais attenção. Assim elle entrou nos quartos da marqueza, bruscamente, deixando-a prostrada nos primeiros degraus da escadaria.

Por conseguinte, Ruy tinha-a recusado, depois de a ouvir monologar como uma actriz fastidiosa. Interdicta e buscando vencer o asco que de si mesma lhe vinha, Luiza escutava o furioso debater da sua vaidade sacudida na estriadura d'aquella humilhação. Sahiram as visitas, voltaram da festa os creados, que pouco a pouco, ceia finda, iam desertando para os seus dormitorios. Luiza trouxe o caldo á marqueza, vazou-lhe o calice de Madeira com a mesma solicitude machinal, sem ter reparado na escarradeira cheia de sangue, na somnolencia e na pallidez da pobre dama. Renovou o azeite da lampada do oratorio, desceu á cozinha onde sua irmã pela centesima vez insistia em lhe aconselhar o casamento com Ezequiel, como mastro de cocagne para a familia inteira: e de joelhos, na capella, para as rezas da noite, por mais que fizesse, o seu espirito perdia-se em oceanos de magua: até que afogueada, estupida de scismar no seu destino, veio ao terraço banhar a cabeça nas brisas da noite.

Os ultimos romeiros desciam do monte, e amadornavam por esses caminhos os echos das cantigas, deixando atraz de si n'uma espectativa lugubre, a somnolencia espectral dos arvoredos. Uma livida noite amortalhava o immenso descampado. Entre cerraceiros de nevoa, a lua minguante subia por ondas de claridade torva, gordurenta, sem reflexos, como uma agua-forte sinistra que rolasse as suas tragedias de cinzento, desfazendo nos macissos as ultimas nuances de paisagem. Ai, pobre Luiza! Aquella repulsa fazia-a rolar na sua idéa a uma condição, além de cuja ignominia ella julgava se não podia descer mais. Quanto daria ella agora, a pobre tonta, por voltar a ser na estima d'elle a sua companheira de brinquedos, a sua pessoa de confiança, a sua amiga, a sua irmã?... e poder encaral-o com os olhos limpidos d'outr'ora, sem córar por aquella scena de seducção premeditada, que até na propria consciencia a envilecia! Agora ella olhava á roda de si cahida da exaltação que a levára a cingir-se com elle, interrogando-se, perscrutando-se, dizendo-se indigna de todas as commiserações. Era uma mulher sem vergonha, quasi ignobil, que inspirára o nojo, mesmo formosa, mesmo intacta, ao primeiro homem a quem estendera as pomas dos seus desejos. Podia aceitar quaesquer das infamantes soluções que lhe propunham: ser a amante do creado, ou ir saciar o deleite ephemero d'um dia ao marquez e aos mais debochados do seu sequito. O seu desejo extincto, tudo o mais lhe era indifferente; e a morte começava d'ali por diante, com a frialdade do seu coração prohibido de bater por alguem. Mesmo, não via outro destino além de prostituir-se ou matar-se. Para ella o mundo começava em Ruy, acabava em Ruy, e só durára no cyclo em que elle a trouxera enfeitiçada. Ruy sequestrado ao seu amor: adeus mocidade, alegria chilreante, manhãs no terraço á hora de dar alpista aos canarios, projectos, ardores, phantasias, esperanças! Elle recusára-a: de que lhe serviam pois as turgidas pomas, a cinta ondulosa de serpente, e o divino ventre de geraneo e espuma, todas as expansões, todos os calafrios, todos os mimos, de que a adolescencia avelluda e povôa o corpo da mulher? Na contensão capitosa dos seus extasis, Ruy vira apenas a selvageria do goso que extravasa em gestos de braços e na effervescencia torpida dos beijos. Além da grosseira exterioridade lasciva e calida, tudo o mais lhe escapára d'aquelle amor confessado violentamente, refinamentos, fremitos, intellectuaes sobresaltos... o prazer dos sentidos vibrantes á visão da pessoa que se adora... os infinitos respeitos, supplicas balbuciadas por entre os dentes cerrados, transluzindo ameaça—e delicadezas submissas d'escrava—e esse fluido que sobrenada da alma amorosa, e enche de poesia tudo o que se palpa e respira, em torno d'ella.

Desceu ao jardim, direita ao poço. Havia um silencio opaco e terrivel, que pesava no ambito á semelhança d'um remorso que fibra a fibra estivesse roendo um coração. O poço era largo, com uma nora por cima, e a amura de pedra escancarada ao ar. Se ao menos elle diria «Coitada!» quando lhe fossem contar como ella tinha morrido!... E inhalava para se dar alento, grandes haustos d'ar frio. Os seus olhos deram co'as janellas do palacio, illuminadas ainda. Eram, d'uma banda, as janellas de Ruy, e da outra a lampada do oratorio, cuja porta abria sobre o quarto de dormir da senhora marqueza. Vamos! era preciso ser forte. Nossa Senhora estenderia os braços para impedir que ella se despenhasse no inferno. E pôz-se a medir a queda, esburcinada no boccal de pedra da nascente. Atafulhada de sombra, a pavorosa goela não mexia. De quando em quando, uma gotta escapava-se dos alcatruzes da nora, indo fazer lá no fundo um plhau! glacial. Entretanto a nevoa fazia aos arvoredos, toilettes de gaze, para a festa funebre de Luiza. Solicitamente o luaceiro vinha, aqui, além, tocar o bojo d'uma perola d'orvalho, as transparencias d'uma renda de bruma, os claros da argentea brancura immaculada... Ella desfolhou a rosa que puzera nos cabellos. Ergueu o espirito para o alto, com uma doçura branca de martyr; e persignando-se, enxugava as ultimas lagrimas. Na calada começou então a retinir uma campainha. Nos quartos da marqueza? Era a chamar Luiza. Oh pobre madrinha! Luiza estava já sentada á beira do poço, prompta a escorregar-se á agua. Porém uma instantanea sombra tinha passado nos stores do oratorio, cujas vidraças soaram no terraço em bocadinhos. Que era aquillo? Alguma coisa de anormal se estava passando. Quem gritára? Engano? Allucinação? Luiza fez um salto, esquecida da morte, e deitou a correr para d'onde o barulho partia. Quando entrou no quarto da marqueza, cahira pelas escadas, derribára Ezequiel que vinha pelo corredor, rasgára as saias nas portas, tropeçando nos moveis umas poucas de vezes. Viu a cama vazia e toda cheia de sangue nos travesseiros. A porta do oratorio estava aberta, e sobre a alcatifa, entre portas, a pobre senhora estorcia-se, quasi núa, vomitando sangue em espumosas golfadas. Luiza agarrou-se a ella, gritando que lhe acudissem: e em toda a casa, de repente, tinha sido um alvoroço extraordinario. Ezequiel, que foi o primeiro a chegar, inda viu a velha revolver os olhos, dar um estremeção que lhe retezou as pernas ao comprido. E de repente ficou-se.

Aves Migradoras

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