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VI
O DEUS DOS BONS

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Tinha tambem a minha parte a cumprir no movimento que devia ter tido logar, e havia-a acceitado sem discutir.

Havia entrado no serviço do estado como marinheiro de primeira classe da fragata Eurydice. A minha missão era alcançar proselytos para a nossa causa, e para conseguir este fim tinha feito tudo quanto me era possivel.

Dado o caso que o nosso movimento tivesse bom resultado, devia com os meus companheiros apoderar-me da fragata e pôl-a á disposição dos republicanos.

Não havia querido, impellido pelo ardor que sentia, limitar-me a este papel. Tinha ouvido dizer que um movimento teria logar em Genova, devendo por esta occasião apoderarem-se do quartel dos gendarmes situado na praça de Sarzana. Deixei aos meus companheiros o cuidado de se assenhorearem do navio, e proximo da hora em que devia rebentar a rebellião de Genova deitei uma canôa ao mar e desembarquei na alfandega, gastando poucos momentos a chegar á praça de Sarzana, onde, como já disse, estava situado o quartel.

Esperei quasi uma hora, mas nenhum indicio de rebellião appareceu. Bem depressa ouvi dizer que tudo estava perdido, havendo-se posto os republicanos em fuga: dizendo-se tambem que varias prisões haviam sido feitas.

Como não me tinha engajado na marinha sarda senão para ajudar o movimento republicano, julguei inutil voltar a bordo do Eurydice, começando a pensar nos meios de me pôr em fuga.

No momento em que fazia estas reflexões, alguma tropa prevenida sem duvida do projecto de nos apoderarmos do quartel, começou a guarnecer a praça.

Vi então que não havia tempo a perder. Refugiei-me em casa de uma vendedeira de fructa e confessei-lhe a situação em que me achava.

A excellente mulher não fez nenhuma reflexão e escondeu-me nos quartos interiores do seu estabelecimento. No dia seguinte procurou-me um fato completo de camponez, e pelas oito horas da noite sahi, como se andasse passeando, de Genova pela porta da Lanterne, começando então essa vida de exilio, luto e perseguição, que, segundo todas as probabilidades, ainda não finalisou.

Estavamos a 5 de fevereiro de 1834.

Abandonando os caminhos batidos e trilhados dirigi-me por atalhos para as montanhas. Tinha bastantes jardins que atravessar, e muitos muros que saltar. Felizmente estava familiarisado com estes exercicios, e depois de uma hora de gymnastica achava-me fóra do ultimo jardim.

Encaminhado-me para Cassiopea, ganhei as montanhas de Sestri, e no fim de dez dias, ou antes de dez noites; cheguei a Niza, dirigindo-me logo a casa de minha tia, na praça da Victoria, a fim de que ella prevenindo minha mãe lhe tirasse todos os cuidados.

Descancei um dia, e na noite seguinte parti acompanhado por dois amigos, José Jaun, e Engelo Gostavini.

Chegados ao Var, achamol-o innundado pelas chuvas, mas para um nadador como eu, não era isto um obstaculo. Atravessei-o metade a nado, metade a vau.

Os meus dois amigos haviam ficado na outra margem. Disse-lhe adeus.

Estava salvo, ou quasi, como se vae vêr.

N'esta esperança dirigi-me a um corpo de guardas da alfandega; disse-lhe quem era, e qual o motivo porque havia deixado Genova.

Os guardas disseram-me que era seu prisioneiro, até nova ordem, e que a iam mandar pedir a Paris.

Julgando que acharia facilmente occasião de fugir, não fiz nenhuma resistencia, e deixei-me conduzir a Grasse, e de Grasse a Draguignan.

Em Draguignan metteram-me em um quarto do primeiro andar, cuja janella sem grades, dava para um jardim.

Aproximei-me d'ella como se quizesse vêr o jardim: da janella ao chão havia a altura de quinze pés. Dei um salto, e em quanto os guardas, menos ligeiros e estimando mais as pernas do que eu estimava as minhas, saíam pela escada; ganhei-lhe muita dianteira embrenhando-me nas montanhas.

Não conhecia o caminho, mas era marinheiro, e lendo no ceo, n'esse grande livro, aonde estava habituado a lêr, orientei-me e dirigi-me a Marselha. No dia seguinte de tarde cheguei a uma villa de que nunca soube o nome, porque nem tive tempo para o perguntar.

Entrei n'uma estalagem. Um mancebo e uma mulher ainda joven estavam á mesa esperando pela ceia.

Pedi alguma cousa de comer: desde a vespera que não havia tomado nenhum alimento.

O dono da hospedaria convidou-me para ceiar na sua companhia e de sua mulher. Acceitei.

A comida era boa, o vinho do paiz agradavel, e o fogo excellente. Senti então um d'esses momentos de bem estar e felicidade, como só se experimentam depois de se haver passado um perigo, e quando se julga não haver mais nada a receiar.

O dono da hospedaria felicitou-me pelo meu bom appetite, e pelo meu rosto alegre e prasenteiro.

Disse-lhe que o meu appetite não tinha nada de extraordinario, porque não tinha comido havia dezoito horas e que o achar-me alegre e satisfeito era por haver escapado talvez á morte no meu paiz – e em França á prisão.

Tendo-me adiantado tanto, não podia fazer segredo do resto. O estalajadeiro e sua mulher pareciam-me tão boas pessoas que lhe contei tudo.

Então, com grande espanto meu, o estalajadeiro ficou pensativo.

– Que tem? lhe perguntei.

– É que depois da confissão que acaba de fazer, respondeu elle, não tenho remedio senão prendel-o.

Dei uma grande gargalhada porque não tomei este dito ao serio, e demais se o fosse eramos um contra um, e não havia no mundo um unico homem que eu temesse.

– Bem, disse eu, mas como julgo que não tem muita pressa, peço-lhe que me deixe ceiar com todo o descanço, pois temos muito tempo depois do dessert. E continuei comendo sem mostrar a mais leve inquietação.

Infelizmente vi bem depressa que se o estalajadeiro tivesse necessidade de ajudantes para realisar os seus projectos, esses ajudantes não lhe faltavam.

A sua estalagem era o logar aonde toda a mocidade da villa se reunia ás noutes para beber, fumar, e fallar da politica.

A sociedade do costume começava a reunir-se, e bem depressa estavam na estalagem mais de doze mancebos, jogando as cartas, bebendo e fumando.

O estalajadeiro não tornou a fallar na minha prisão, mas tambem não me perdia de vista.

É verdade que não tendo eu a mais pequena mala, não tinha cousa alguma que lhe assegurasse o pagamento da minha despesa.

Como tinha na algibeira alguns escudos, fiz barulho com elles, o que pareceu socegar o meu homem.

No momento em que um dos bebedores acabava, no meio dos applausos geraes, de cantar uma canção, ergui o copo que tinha na mão:

– Agora pertence-me, disse eu:

E comecei a cantar o Deus dos bons.

Se não tivesse outra vocação teria podido fazer-me cantor, porque tenho uma voz de tenor que cultivada alcançaria uma certa extensão.

Os versos de Beranger, a franquesa com que eram cantados, a fraternidade do estribilho, a popularidade do poeta, arrebataram todo o auditório.

Fizeram-me repetir dois ou tres couplets e abraçando-me todos quando acabei, gritaram – Viva Beranger! Viva a França! Viva a Italia!

Depois de haver obtido tal successo era escusado pensar em prender-me; o estalajadeiro conheceu isso porque nunca mais me fallou de tal, ignorando eu por isso se elle fallava seriamente ou se zombava.

Passou-se a noite a cantar, jogar e a beber; e ao romper do dia todos os meus companheiros da noite se offereceram para me acompanhar, honra que acceitei sem difficuldade: caminhámos juntos seis milhas.

Com toda a certeza Beranger morreu sem saber o grande serviço que me prestou.

Memorias de José Garibaldi, volume I

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