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O HOMEM CHAMADO UMBOPA
ОглавлениеDurante o resto da jornada pensei constantemente na proposta do barão. Mas nem eu nem elle voltamos a fallar de Neville ou da travessia para as minas. Na tolda e no beliche as nossas conversas rolavam todas sobre caça, sobre aventuras de caça na Africa. Os dois, homens de grande sport, não se fartavam de escutar. E eu, velho palrador, cheio de memorias e já anecdotico, não me fartava de contar.
Finalmente, n’uma esplendida tarde de janeiro (que é aqui o mez mais quente do anno) avistámos a costa de Natal--com a esperança de dobrar a ponta de Durban ao sol-posto. Toda esta costa é adoravel, com as suas longas dunas avermelhadas, os ricos tapetes de verdura clara, as alegres aringas dos Cafres espalhadas aqui e além, e a orla espumosa e alva do mar que rebenta nas rochas. Mas, justamente perto de Durban, a região toma uma incomparavel riqueza de tons. Nas ravinas, cavadas pelas enxurradas de seculos, faiscam riachos innumeraveis: o verde do matto é mais intenso: os outros verdes de jardins entremeiam-se com as plantações d’assucar: e a espaços uma casa muito branca, sorrindo para a azul placidez do mar, põe uma linda nota, humana e domestica, na vastidão da paizagem.
Como disse, contavamos dobrar, antes do sol-posto, a ponta de Durban. Mas quando deitámos ancora já era crepusculo cerrado, tarde de mais para entrar a barra. Tinhamos ainda essa noite a bordo: e descemos ao salão, para um jantar quieto em aguas serenas, depois de vêr o salva-vidas remar para terra com as malas do correio.
Quando voltámos á tolda, a lua ia alta, e tão brilhante sobre mar e praia, que quasi offuscava os lampejos largos do pharol. De terra vinham, através do ar calmo, aquelles picantes e dôces aromas de especiarias, que, não sei por quê, me fazem sempre lembrar hymnos de egreja e missionarios. O bairro de Berea parecia em festa, com todas as varandas alumiadas. N’um grande brigue, ancorado ao lado, os marinheiros estavam cantando, ao som do banjo. Era uma noite d’encanto, como só as ha n’este abençoado sul d’Africa, que lançava sobre a alma uma infinita paz, infinita e suave como a luz que derramava a lua cheia. Até o bull-dog d’um passageiro irlandez, que não cessára de rosnar ferozmente durante toda a jornada, cedera emfim ás pacificadoras influencias do sul, e dormia, estirado no convés, com um ar de tregoa e de perdão aos homens.
O barão, o capitão John e eu, estavamos sentados junto á roda do leme, olhando e fumando em silencio.
--Então, snr. Quartelmar? Exclamou de repente o barão, sorrindo. Aqui estamos em Durban... Pensou nas nossas propostas?
--Vamos ou não vamos de companhia á busca do snr. Neville? Echoou do lado o amigo John.
Não tugi. Mas ergui-me, e fui devagar sacudir para fóra da amurada a cinza do meu cachimbo. A verdade é que, depois de muito matutar, eu ainda não tomára uma resolução,--ou antes a minha resolução permanecia vaga, informe, mal assente, necessitando um pequeno impulso exterior que a definisse e a fixasse. E foi justamente aquella exclamação risonha dos dois, o movimento de me erguer e de me abeirar da amurada, que tudo fixou e definiu no meu animo. Ainda a cinza não cahira na agua e já eu estava resolvido a partir.
--Pensei e vou! Declarei, voltando a sentar-me. E se os cavalheiros me dão licença, direi as razões por quê, e as condições com quê.
Expuz logo as condições, muito claramente:
O barão, em primeiro logar, corria com todas as despezas; e qualquer achado de valor, diamantes, ouro ou marfim, feito durante a expedição, seria irmãmente dividido entre mim e o capitão John. Em segundo logar, o barão pagar-me-hia em dinheiro de contado, antes de partirmos, quinhentas libras, compromettendo-me eu a acompanhal-o e fielmente servil-o até que a jornada terminasse ou por um triumpho, ou por um desastre, ou simplesmente por se reconhecer a sua inutilidade. Em terceiro logar, o barão obrigar-se-hia por uma escriptura a dar annualmente a meu filho, emquanto durassem os seus estudos, uma pensão de duzentas libras, no caso de eu morrer ou ficar inutilisado...
Ainda eu não findára, já o barão aceitára tudo, largamente, alegremente! «O que eu quero, seja por que preço fôr (dizia elle), é a sua companhia, snr. Quartelmar, é o soccorro da sua experiencia!»
--Muito bem. Pois agora, depois de dizer as condições em que vou, quero dizer as razões por que vou. É porque se nós tentarmos atravessar as serras de Suliman, não voltamos de lá vivos! O que succedeu ao velho Silveira, ao que tinha Dom, ha trezentos annos; o que succedeu ao outro, ao que não tinha Dom, aqui ha vinte; o que succedeu naturalmente ao snr. Neville, é o que nos vai succeder a nós! Não sahimos de lá vivos.
Olhei attentamente para os dois homens. O amigo John arripiou um bocado a face. O barão ficou impassivel, murmurando apenas:--«Corremos-lhe o risco!»
Eu prosegui:
--Agora dirão os cavalheiros: «Se julgas que não sahes de lá vivo, para que vaes lá?» Em primeiro logar, porque sou fatalista. Se Deus já decidiu que eu hei de morrer nas montanhas de Suliman, nas montanhas de Suliman hei de morrer ainda que lá não vá. E se Deus decidiu já o contrario, posso lá ir impunemente e de cara alegre. Isto é claro. Em segundo logar, estou velho, e já vivi tres vezes mais do que costuma viver na Africa um caçador de elephantes. De sorte que, continuando n’esta carreira, e desgraçadamente não tenho outra, que posso eu durar ainda? Uns annos. Ora se morresse agora, com as dividas que me pesam em cima, o meu pobre rapaz ficava n’uma situação má, coitado d’elle! Emquanto que assim, com quinhentas libras soantes, saldo as dividas; e se estourar, o meu rapaz tem diante de si duzentas libras por anno para acabar o curso e para se estabelecer. Ora aqui têm os cavalheiros a coisa em duas palavras.
O barão ergueu-se, excellente homem! E apertou-me as mãos com effusão.
--Essas razões, a ultima sobretudo, fazem-lhe immensa honra, snr. Quartelmar. Immensa honra! Emquanto a sahirmos vivos ou não da aventura, o tempo dirá. Eu por mim estou decidido a ir até ao cabo, seja qual fôr, triumpho ou morte! Em todo o caso se temos assim de morrer tão cedo, não me parecia mau que antes d’isso, pelo caminho, arranjassemos uma batida aos elephantes. Sempre desejei caçar o elephante, e com a perspectiva de deixar assim os ossos nas serras de Suliman, é prudente que me apresse... Não é verdade, John?
--Com certeza!... De resto, todos nós vimos já muitas vezes a morte diante dos olhos. É um detalhe; para que se ha de insistir n’elle? Viemos á Africa com certo fim. Ha perigos? Acabou-se. Deus é grande.
--Está tudo portanto decidido, conclui eu, e parece-me que chegou a occasião d’um grog.
Fomos ao grog.
No dia seguinte desembarcámos. Alojei os meus amigos n’uma «barraca» que possuo na Berea, e a que chamo em dias d’orgulho «a minha casa». É construida de tijolo, com um telhado de zinco que abriga tres quartos e uma cozinha. Em redor, porém, está plantado um bom jardim, com esplendidas arvores e flôres, que um dos meus caçadores, chamado Jack, traz lindamente tratadas. É um pobre homem a quem um bufalo esmigalhou a perna na terra dos Sikukunes. Já não póde seguir a caça; mas na sua qualidade de Griqua, jardina bem--coisa que um Zulú nunca faria decentemente. O Zulú tem horror ás artes da paz.
O barão e o seu amigo dormiram n’uma tenda que lhes armei no jardim (dentro de casa não havia espaço), no meio do laranjal. Aqui em Durban as laranjeiras têm ao mesmo tempo a flôr e o fructo: de sorte que com o perfume todo em torno, e o brilho das laranjas côr d’ouro, e o murmurio d’aguas correntes, o sitio era aprazivel e grato. Ha peor na Europa.
Logo no dia seguinte, sem mais tardança, começámos os preparativos. Antes de tudo fomos ao tabellião lavrar a escriptura em que o barão se obrigava a pensionar o meu rapaz: houve difficuldade por jazerem em Inglaterra as propriedades do barão: mas arranjou-se uma «tangente», e segura, graças ás artes de um Advogado, que pelos seus serviços apresentou a conta infame de vinte libras! Depois recebi o meu cheque de quinhentas libras. Satisfeita assim a prudencia, passámos a comprar o carrão e as juntas de bois. Descobrimos um carrão excellente, com eixos de ferro, solido e leve, que já fizera uma excursão a Lourenço Marques--o que garantia a firmeza e resistencia das madeiras. Era um carrão dos que chamamos de meia-tenda--isto é, toldado sómente até ao meio, e aberto em frente para as bagagens. Sob o toldo tinha almofadões onde podiam dormir bem duas pessoas: além d’isso suspensões para as espingardas e bolsos de guardar roupa. Custou-nos cento e vinte e cinco libras, e sahiu barato. As juntas de bois eram dez, magnificas. Ordinariamente para uma jornada atrellam-se oito juntas: mas para uma aventura d’estas, vinte bois não vão de mais. Todos eram de raça zulú, a mais pequena d’Africa, mas a melhor; e todos elles salgados. Chamamos aqui salgados aos bois já muito jornadeados pelo sul d’Africa, e á prova portanto da «agua vermelha»--que destroe ás vezes todas as juntas d’um carrão. Além d’isso, todos tinham sido vaccinados contra a maleita de pulmões, fórma horrivel de pneumonia, que é n’estas terras um flagello para o gado.
Em seguida organisámos provisões e remedios. Este detalhe demandava sciencia e cuidado, porque convinha, n’uma empreza tão accidentada, que nem faltasse o necessario, nem o carrão partisse abarrotado e carregado em demasia. Para os remedios foi-nos de grande utilidade o capitão John, que em tempos estudára para medico da Armada, e que (além de possuir, muito a proposito para nós, um estojo de cirurgia e uma pharmacia de viagem) conservára conhecimentos genericos e uma toleravel pratica. Durante a nossa estada em Durban cortou elle o dedo pollegar a um Cafre com uma maestria--que fazia appetite vêr! O que o perturbou foi o Cafre (que observára a operação em perfeita impassibilidade) pedir-lhe depois para lhe pôr outro dedo novo.
Restava emfim a importante questão de creados e armas. Armas tinhamos por onde as escolher--entre as que eu possuia e a collecção esplendida que o barão trouxera de Inglaterra. Sete espingardas de dois canos para differentes cargas e differentes caças, tres carabinas Winchester, tres rewolvers Colts--assim ficou constituido o nosso armamento. Emquanto a creados, depois de muita consulta e reflexão, decidimos limitar o numero a cinco--um guia, um boieiro, e tres serviçaes. Boieiro e guia achámos nós facilmente em dois Zulús, que se chamavam--um Goza e outro Tom. Mas os serviçaes eram de mais difficil e delicada escolha. Da paciencia, da fidelidade, da coragem dos serviçaes poderiam muitas vezes depender as nossas pobres vidas n’esta aventura sem igual.
Finalmente arranjei dois, um Hottentote chamado Venvogel, e um rapazito zulú, de nome Khiva, que tinha o merito (consideravel para os meus companheiros) de fallar inglez com fluencia. O Hottentote já eu conhecia. Era um dos melhores «farejadores de caça» de toda a Africa. Ninguem mais rijo nem mais resistente. O seu defeito sério consistia na bebida. Mas como iamos para região onde não ha «aguas-ardentes» nem quasi aguas correntes, pouco importava esta fragilidade do digno Venvogel.
Tinhamos pois dois serviçaes. O terceiro parecia impossivel descortinar. Tentei, tentei--até que resolvemos partir sem elle, esperando encontrar, antes de mettermos para o deserto, algum homem aproveitavel entre Inyati e Zukanga. Na vespera porém da nossa partida estavamos jantando, quando Khiva, o rapaz zulú, veio annunciar que um homem se viera sentar no meu portal, á minha espera. Mandei entrar. Appareceu um rapagão muito esbelto, robusto, magnifico, apparentando trinta annos, e claro de mais para Zulú. Floreou no ar o cajado á maneira de saudação, encruzou-se sobre o soalho, a um canto, e ficou calado com singular dignidade. Não lhe dei logo attenção. Assim se deve proceder com os Zulús. Se o branco lhes falla com promptidão e agrado o Zulú conclue immediatamente que está tratando com pessoa de pouco commando. Observei no emtanto que este homem era um Keslha, um homem-de-annel--isto é, que trazia na cabeça aquella especie de rodilha, feita de gomma, e toda lustrosa de sebo, que elles entremeiam na grenha e usam, quando chegam a uma idade de respeito ou attingem nas suas aringas uma posição superior. Tambem me pareceu reconhecer aquella cara--realmente bella.
--Bem, disse por fim, como te chamas?
--Umbopa, respondeu o homem n’uma voz lenta e grave.
--Estou a pensar que já te vi algures.
--Já, Makumazan!
Makumazan é o meu nome cafre--e significa aquelle que se levanta pelo meio da noite para vigiar; ou antes, aquelle que conserva sempre os olhos bem abertos.
--Makumazan, continuou o Zulú, viu-me em Izand-luana, na vespera da batalha...
Lembrei-me então completamente. Eu fui um dos guias de Lord Chelmsford, na desgraçada guerra com os Zulús. Por acaso, na vespera da batalha de Izand-luana, que consummou o desastre das tropas inglezas, fui mandando levar para fóra do acampamento uns poucos de carrões de bagagens. Quando se estava atrellando o gado, este homem (que commandava um troço de Cafres, dos indigenas auxiliares) veio para mim, dizendo que o acampamento não estava seguro, que era certa uma surpreza, e que o vento trazia cheiro de inimigo. Respondi-lhe que «dobrasse a lingua», e deixasse a segurança do acampamento a melhores cabeças que a d’elle. Pois grande razão tinha o Zulú! Logo n’essa noite o acampamento foi terrivelmente assaltado... Tudo isso porém vem na Historia.
--Que queres tu? Perguntei. Lembro-me perfeitamente de ti. Dize o que queres.
--Quero isto. Correu aqui voz que Makumazan vai para o norte, n’uma grande expedição, com os chefes brancos que vieram d’além do mar. É verdadeira a voz?
--Verdadeira.
--Correu aqui tambem voz que Makumazan e os chefes iam para o rio Lukanga, que fica a um bom quarto de lua de jornada do districto de Manica. É verdade?
Franzi o sobr’olho, descontente de vêr assim tão conhecido o roteiro da nossa expedição.
--Para que queres tu saber? Que tens com isso?
--Tenho isto, oh brancos! Que se ides assim para tão longe, eu quereria ir comvosco.
Havia uma altivez nas maneiras d’este homem, e especialmente no seu emprego da expressão «oh brancos» em logar de «oh inkosis» (chefes), que me surprehendeu grandemente.
--Estás esquecendo a quem fallas! Repliquei. As palavras sahem-te demasiadas e imprudentes. Como é o teu nome? Onde é a tua aringa? É necessario saber quem temos diante de nós!
--O meu nome é Umbopa. Sou da raça dos Zulús, mas não sou Zulú. O sitio da minha tribu é muito longe, para o norte: os meus ficaram lá quando os Zulús desceram para aqui, ha muito, ha mais de mil annos, antes de Chaka ser rei. Não tenho aringa. Muitos annos vão que ando errante. Quando vim do norte era creança. Depois fui dos homens de Cetewayo no regimento de Nomabakosi. Por fim fugi dos Zulús, e vim para o Natal para vêr as artes dos brancos. Foi então que servi na guerra contra Cetewayo, e que te encontrei, Makumazan! Agora tenho trabalhado no Natal. Mas estou farto, quero ir para o norte. O meu logar não é aqui. Não peço soldada, mas sou valente, e valho bem o pão que comer. Eis as palavras que tinha a dizer.
Este homem e a sua grande maneira de fallar--intrigavam-me singularmente. Era certo para mim que só dissera a verdade: mas na côr, nos modos, differia muito do Zulú ordinario; e a sua offerta de vir comnosco sem soldada, extraordinaria n’um Africano, enchia-me de desconfiança.
Na duvida traduzi as estranhas fallas aos meus amigos, solicitei-lhes conselho. O barão pediu-me que mandasse pôr o homem de pé. Umbopa ergueu-se, deixando escorregar ao mesmo tempo o vasto casacão militar que o envolvia, e ficou diante de nós, mudo, erecto, soberbo, todo nú, com um simples pedaço de pano em torno dos rins e um fio de garras de leão enrolado ao pescoço. Era, realmente, um esplendido homem! Tinha mais de dois metros de altura, e largo em proporção, agil, admiravel de fórmas. Na luz da sala em que estavamos, a pelle parecia apenas muito trigueira, como a d’um arabe. Aqui e além, pelo corpo, conservava cicatrizes terriveis de antigos golpes de zagaia.
O barão foi direito a elle, e cravou-lhe os olhos nos olhos, que se não baixaram, e que rebrilharam:
--Gósto de ti, Umbopa, disse em inglez, e tomo-te ao meu serviço.
Umbopa evidentemente comprehendeu, porque murmurou em zulú:
--Está bem.
Depois, atirando um olhar para a grande estatura e força do branco, accrescentou:
--Somos dois homens, tu e eu!