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DIA 2
SOBRE COMO DESCUBRO AS MARAVILHAS DA SELVA

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– Não, não o matem! –gritei, agitando-me convulsivamente e causando minha queda da árvore com um ruído abafado.

Agitei-me de um lado para outro, fugindo de meus próprios fantasmas, ignorando a dor da queda. Olhei para todos os lados totalmente desorientado e fiquei quieto momentaneamente, encolhido, gemendo como um animal gravemente ferido. Enquanto esfregava as costas machucadas me dei conta de que havia sido um pesadelo, um pesadelo muito realista, já que havia sonhado que voltava a vivenciar a morte de Juan, a colisão do avião, outra vez o corpo inerte de Alex entre minhas mãos. O suor me escorria pelo rosto, minhas mãos tremiam. Respirei fundo por um momento e decidi me mover, somente desejava me distanciar o máximo possível do avião em que havia perdido parte da minha vida. Meu passado era terrível, meu futuro desolador.

Doíam-me muito as costas pela posição que havia tomado, pela queda ou por ambas as coisas ao mesmo tempo, e estava um pouco trêmulo. Subi lamuriante para pegar as mochilas e me dei conta de que a mochila com a comida havia sumido. O pulo que dei com o susto quase me derruba da árvore novamente. Sem essa mochila não teria nada que fazer. Procurei assustado por entre os galhos e, quando supus que nunca a encontraria, vi que estava caída ao solo com todo o seu conteúdo esparramado. Possivelmente eu a havia jogado, arrastando-a na minha queda ou me movendo durante a noite. Desci cuidadosamente com a outra mochila no ombro e recolhi tudo o que localizei: três latas de refresco, um sanduíche de linguiça, uns biscoitos mordiscados e cheios de formigas, uma caixa com saquinhos de sal para usar nas saladas e duas caixas, que eram de marmelo. O resto havia desaparecido, suponho que tenham sido levados por animais. Isso me fez concluir que havia caído durante a noite.

Decidi fazer um inventário de tudo o que levava para ver o que me podia ser útil e tirar o que não o seria. Não havia sentido em carregar peso inútil e eu precisava saber de que meios podia dispor. Na minha mochila, além da comida, levava a navalha que havia comprado para o meu pai, todas as figuras de madeira, um livro de viagem sobre a África Central, um pacote de lenços de papel, binóculo 8x30, um gorro de tecido cáqui e uma camiseta onde se lia "I love Namibia". Do estojo de remédios me restavam uma caixa de aspirinas pela metade, uma caixa inteira de antidiarreico, uma bandagem, três curativos adesivos e alguns comprimidos contra enjoo. Além, é claro, da documentação. Na mochila de Juan também estava a documentação dele, e além disso, três mantas e um travesseiro do avião, um pequeno livro com frases em suaíli, seus óculos de sol, um boné, umas barrinhas de chocolate, uma garrafa plástica de água de um litro quase vazia, um garfo, uma grande figura de madeira de um elefante e várias menores, um maço de cigarros quase cheio e um isqueiro.

No entanto, não podia carregar duas mochilas, de modo que guardei tudo na minha, que estava em melhores condições, exceto uma das mantas, o travesseiro que ocupava muito espaço e todas as figuras de madeira, inúteis nesse meio; enterrei tudo e tampei com folhas secas do chão. Enquanto ia descartando algumas coisas, lembrava das pessoas para quem elas eram destinadas; Elena, minha família, meus amigos, Alex, Juan… e não tardei a começar a chorar de novo. Nunca mais voltaria a vê-los, nenhum deles. Bem, Alex e Juan eu veria logo, no paraíso ou aonde quer que se vá depois de morto.

As barras de chocolate comi nesse momento, derretidas pelo calor, limpando a embalagem com a língua até que não sobrasse nem rastro. Estava delicioso. Também bebi a pouca água que restava na garrafa. Foi então que me dei conta de que teria que parar um pouco para refletir quais seriam os próximos passos que devia dar. Algumas perguntas sugiram em minha mente: Os rebeldes sabiam que eu estava vivo? Para onde deveria ir agora?

Com respeito à primeira pergunta não tinha resposta. Na melhor das hipóteses haviam conseguido que algum passageiro confessasse que me havia visto, ou procuraram nas redondezas e encontraram minhas pegadas ou a lata que joguei no chão depois de beber (isso foi um grande erro, ainda que naquele momento tivesse que fugir), ou estavam por todos os lados e me encontrariam de qualquer jeito, ou não sabiam de nada. Fosse o que fosse, a partir de agora deveria tentar ser mais cuidadoso e deixar menos rastros possíveis por onde passasse.

Com respeito a para onde me dirigir. Parecia me lembrar que desde o avião, durante a aterrissagem vertiginosa, vi que havia um povoado no horizonte e uma grande clareira na selva. O que não sabia era se seria a base dos rebeldes ou não, mas era muito provável que fosse, já que estava muito próxima de onde nos haviam atacado. Como íamos do sul da África para o norte, devia supor que indo sempre na direção norte eu sairia da selva, chegaria a outro país e teria mais possibilidades de encontrar ajuda. Como sentia falta dos meus amigos nesse momento! Agora me cairiam muito bem o entusiasmo, o otimismo e a alegria abundante de Alex e a capacidade de análise fria, a serenidade e o poder de decisão do Juan. Como precisava da companhia deles para me encorajar e enfrentar este desafio que se apresentava de forma inevitável! Com eles isto seria mais fácil, inclusive seria uma aventura para contarmos na volta; mas estavam mortos, assassinados, exterminados sem piedade como moscas sem valor, aniquilados na melhor fase da vida… e eu teria que sobreviver conforme possível. Desgraçados, filhos da…! Calma, Javier, calma, devia tentar manter a calma. Era minha única opção para ter alguma chance. Bem, supomos o sol nascendo no leste e se pondo ao oeste, e sabendo que amanheceu mais ou menos por esse lado… deveria andar naquela direção. Se com esse sistema de orientação chegasse a algum lugar não seria habilidade e sim milagre. De todos os modos, para me assegurar, subi cuidadosamente em uma das árvores mais altas que pude ver.

Foi fácil, já que ela tinha muitos galhos para usar como degraus, ainda que quanto mais subia, menores e mais flexíveis eles se tornavam. Assim, tive muito cuidado em ir pisando justamente na base dos ramos, que é a parte mais larga e resistente. Sobressaía por cima da maioria e quando cheguei ao topo a paisagem era estarrecedora. Um mar verde se estendia em todas as direções como um tapete, subindo e descendo, seguindo o contorno do solo, imitando as ondas, uma vasta extensão de vida. Apenas algumas árvores solitárias muito mais altas do que o resto se destacavam na imensidão desse tapete formado pela fronde das copas infinitas da selva. Não via mais que copas de árvores em todas as direções, sem fim. Nem com ajuda do binóculo consegui ver alguma coisa por lado nenhum. De fato isso não me ajudava em nada na busca de que direção seguir. Desci da árvore e escondi a mochila de Juan com tudo o que deixava nela meio enterrada debaixo de um tronco caído. Em um último momento decidi ficar com a girafa para Elena, caso voltasse a vê-la gostaria de ter um presente para ela. Dei uma última olhada ao redor para comprovar que não deixava sinais claros da minha presença e, quando estava mais ou menos convencido, comecei a andar sem muita esperança. Como precisava de meus amigos!

Durante toda a caminhada encontrei uns pássaros coloridos com peitos vermelhos chamativos e o resto do corpo esverdeado6. Revoava um bando de uns doze ou quinze entre os galhos das árvores com incrível agilidade. Quando fiz um algum ruído, desapareceram de minha vista em um instante. Somente esses belos animais me tiraram por um momento da sensação esmagadora de solidão com que a selva me golpeava implacavelmente: um mundo opressor, hostil, impiedoso, na sombra permanente de que a agonia, o cansaço e o sufoco não eram mais que companheiros habituais da viagem.

O caminho era difícil. Constantemente tinha que dar voltas ou saltar obstáculos. Às vezes havia pequenas clareiras, mas as circundava com medo de ficar muito visível. Suava sem parar e tinha muita sede, mas não queria tomar outra lata pois só me restavam três. Devia estar fazendo uns 25°C com altíssima umidade, o que fazia com que a angústia e o calor aumentassem. Durante um tempo tirei a camisa, mas tantos mosquitos me picaram que tive que vesti-la novamente. Em alguns momentos o pequeno bosque ficava tão espesso que tinha que abrir caminho com uma vara que havia catado e que fazia as vezes de facão. Nesses casos, praticamente não avançava, já que com a vara o máximo que conseguia era afastar os galhos do caminho enquanto passava, e não cortá-los. Além disso, tinha a parte baixa das pernas e os antebraços cheios de feridas produzidas pelo roçar contra as plantas naqueles lugares onde a roupa não me cobria. O rosto também me ardia em diversas partes, sinal de que também o tinha cortado.

Às vezes o chão estava cheio de ramos ou troncos derrubados, outras vezes o solo era macio, coberto de folhas caídas e eu tinha que andar com cuidado para não torcer um tornozelo em algum buraco ou deslizamento, porque isso seria fatal. Em algumas zonas, as copas das árvores se juntavam tanto que impediam a passagem da luz, criando ambientes de luz e sombras certamente desalentadores; ou formavam vários planos de luz de matizes distintas de acordo com as alturas. Nessas partes eu passava assustado porque tinha a impressão de me ver constantemente atacado por fantasmas, que na realidade eram os galhos mais altos das árvores movendo-se ao som do vento que devia haver no trecho verde da selva e que, de passagem, fazia com que produzissem um uivo assustador que me atormentava por todos os lados. Várias vezes a selva se espessava tanto que era absolutamente impraticável e era preciso dar grandes voltas para seguir avançando. Nunca imaginei que fossem possíveis tantas plantas diferentes juntas. Já não via o romantismo em andar pela selva como os exploradores, aliás, desejava sair o quanto antes deste lugar. Além do mais, como geralmente andava fazendo muito barulho, tinha o coração apertado, pensando que se estivessem me seguindo seria muito fácil me localizar.

Mesmo havendo na noite um ruído incessante por todos os lados, não era o mesmo ruído, mas também se ouvia o zumbido de insetos, cantos estranhos de pássaros na copa das árvores e alguns gritos que supunha fossem de macacos ou algo assim. Ao menos não se ouviam os rugidos inquietantes, que deviam ter sido de algum caçador noturno, ou assim eu queria acreditar. Não via muitos animais, mas podia sentir todos eles.

Olhei a hora no meu relógio. Eram dez da manhã. Estava andando há uma hora e não conseguia mais. O joelho já começava a enviar sinais de aviso, notava como estava um pouco inflamado. Várias vezes os ligamentos, ou algo que o valha, haviam se deslocado e eu tinha que colocá-los com a mão de novo no lugar, massageando suave porém firmemente. Sentei-me no chão para descansar um pouco, apoiado em um tronco de uma árvore altíssima e esfreguei o joelho com as mãos. O calor me forneceu um certo alívio. Estava em uma zona bastante clara. Quando passei um tempo sentado, vi em um galho de árvore em frente a mim um pássaro7 parecido com um papagaio de plumagem azulada fosca, cuja única nota de cor era o vermelho de seu pescoço, com uma aréola branca ao redor dos olhos, o bico negro e que emitia chiados quase humanos. Girava a cabeça em praticamente todas as direções sem mover o resto do corpo, me fazendo lembrar a menina de O Exorcista. Aproximou-se bamboleante de um fruto da árvore e começou a bicá-lo. O fruto era de cor avermelhada-alaranjada, do tamanho de uma mão e com forma semelhante à abóbora.

– Claro que você sabe onde está –disse para mim mesmo–, claro que sim. Fiquei descansando quase meia hora e depois tornei a caminhar. Cada vez que contornava uma clareira e tinha que retomar a direção supostamente correta estava mais convencido de que podia estar dando voltas durante anos sem me dar conta. Tudo me parecia igual e o sol já não me servia de muita ajuda. Olhava a que altura se encontrava, comprovava com a hora do relógio e chegava à conclusão de não ter a menor ideia do que estava fazendo. Segui o mesmo ritmo toda a manhã; andava uma hora e descansava um pouco. Nos momentos de descanso lia o livro de frases em suaíli ou o de viagens para entreter a mente com algo, pelo menos serviria para poder me comunicar com alguém em um encontro hipotético. Cada vez me custava mais para me levantar e continuar, o joelho me fazia mancar e por volta das duas da tarde caí, rendido.

A culpa de tudo era minha, eu havia arrastado meus amigos a este lugar infernal, por minha culpa haviam morrido. Se lhes tivesse dado ouvidos estaríamos agora voltando da Itália com um monte de fotos de Veneza e algum cartão postal da Toscana. Culpa minha, tudo era culpa minha.

Estava sedento e meu estômago rugia sem parar. Tinha um dilema:  Comia em condições para recuperar as forças ou economizava devido a escassez de comida de que dispunha e me arriscava a que me acontecesse algo? Seria de se supor que em uma selva conseguir comida e água deveria ser fácil, ou era o que acreditava nestes momentos, e eu tinha muita fome. Assim, optei por beber uma das latas de refresco e comer os biscoitos mordiscados, afastando as formigas aos sopros, e o sanduíche. Abrandei um pouco o apetite voraz. Guardei o marmelo, pensando que demoraria mais a estragar. Logo caí no sono pelo cansaço e por não ter podido dormir na noite anterior.

Quando despertei, ouvi um sibilo bem próximo. Devia haver uma serpente ao meu lado. Fiquei completamente quieto tentando aguçar o ouvido para descobrir onde poderia estar. O medo me comprimiu o estômago e começou a me dificultar a respiração. Uma vez havia visto uma reportagem sobre umas serpentes que se chamavam "serpentes dos três passos", porque quando mordiam só dava tempo de dar três passos antes de cair morto. No fundo isso não seria má situação, mas se me mordesse uma que me fizesse agonizar durante horas, perdendo o controle do corpo pouco a pouco, chegando ao paroxismo da loucura… tinha tanto medo de sofrer, tanto pânico da dor. Se fosse morrer, que fosse rápido, quase o desejava para me libertar da situação em que estava. Eu merecia. Parecia que o sibilo estava cada vez mais próximo, também podia ouvir o estalar das folhas pela sua passagem. Vinha na minha direção, estava certo. Quase podia sentir como se deslizava por cima do meu corpo, subindo pela perna na direção do meu pescoço, quase estava chegando, ia me morder. Fechei os olhos por um momento e respirei profundamente tentando me acalmar. Logo voltei a abrir os olhos e, sem me mexer nem um centímetro, girei-os em todas as direções tentando localizá-la. Por fim consegui vê-la. Estava quieta enroscada um galho de uma árvore a três metros à minha direita, a uns dois metros de altura. Somente movia a cabeça de um lado para outro, como se vigiasse algo. Era de cor verde com um leve toque azulado, um pouco amarelada nas costas, com a cauda longa, com algo mais de um metro de comprimento e o corpo delgado, como se comprimido lateralmente, quase invisível entre as folhas8. Quando se deslizou pelos galhos pude ver que tinha o ventre esbranquiçado.

Fiquei mais um pouco sem me mover, escutando, até que me convenci de que era essa que havia escutado e o resto havia sido fruto de minha imaginação. Levantei-me devagar e observando atentamente o solo em busca de outra serpente, mas a que via era a única. Pelo menos a única que localizei. No princípio pensei em dar uma volta e me distanciar, mas logo me lembrei de que sempre diziam que a carne de serpente tinha gosto semelhante à de frango, que era muito boa. Ou assim contavam os avós como anedotas da Guerra Civil e da fome que passaram. Parecia uma boa oportunidade de conseguir comida e, se tiver gosto bom, melhor ainda. Procurei uma vara comprida com ponta em forma de "V" para tentar prender-lhe a cabeça. Também tirei a navalha do bolso, a abri e a coloquei no cinto da bermuda. Encontrei um galho caído adequado e lhe dei a forma que buscava, recortando uma das extremidades em forma de V e sem perder a serpente de vista. O processo de preparação me pareceu interminável e me esgotou ao extremo, ainda que na realidade não exigisse nenhum esforço físico considerável.

Quando estava preparado, me aproximei sorrateiramente da serpente. Ela não pareceu se dar conta ou me ignorou, mas o caso é que não prestou a menor atenção em mim. Quando estava a meio metro levantei a vara e a golpeei na cabeça com toda minha força. Com o primeiro golpe ela ficou meio dependurada, então lhe apliquei mais dois golpes até que caísse ao solo. Logo lhe enganchei a cabeça com a forquilha da vara e a apertei bem forte contra o solo. A serpente se agitava convulsivamente, sibilando sem parar e eu estava aterrorizado. Se a soltasse para tomar distância com a vara ela poderia me atacar, a outra opção seria me aproximar mais e cravá-la com a navalha. Juntando coragem, aproximei-me mais e pisei na cauda com força, apertando-a contra o chão em uma tentativa de mantê-la quieta. Agachei-me e cravei a navalha logo abaixo da cabeça do ofídio, junto da vara, deixando-a fincada ao chão. Ainda assim continuava se agitando, de modo que descravei a navalha e cortei o pescoço dela, separando a cabeça do resto do corpo. Logo dei um pulo para trás temendo, ignorante, que ela ainda pudesse me atacar. A cauda continuava batendo sem parar, cuspindo sangue por onde antes se encontrava a cabeça. Golpeei-a algumas vezes com a vara, mas não fez diferença, então decidi deixá-la um momento. Em questão de menos de meio minuto parou de se mover paulatinamente até que ficasse completamente parada. Dei-lhe ainda alguns toques com a vara mas ela não mais se movia. Estava definitivamente morta. Por fim pude respirar tranquilo.

Meu primeiro triunfo na selva. O homem havia dominado a besta. Senti-me totalmente eufórico, por um momento todos os meus problemas se dissolveram como açúcar em um copo de leite quente. Agora sabia que subsistiria e conseguiria sair dali. Era um autêntico aventureiro, um sobrevivente nato. E nada poderia evitar que encontrasse a saída nesse labirinto verde e que regressasse a casa, ao lar. Havia sido desafiado pela mãe Natureza e havia demonstrado meu valor, minha capacidade de adaptação e de sobrevivência. Agora sabia, eu era o vencedor deste combate desigual contra mim mesmo e contra os elementos adversos.

Peguei a serpente e a abri pela metade com a navalha, tirando-lhe as tripas o melhor que pude, não sem que me causasse bastante asco. Para isso, segurei por uma ponta e a girei sobre mim mesmo a toda velocidade, dando giros rápidos e as tripas saíam voando em todas as direções. Logo pensei que isso ia contra meu plano de ser discreto e não chamar atenção, mas já havia restos de serpente por todos os lados e não tinha a menor vontade de catá-los. O que restou, terminei de limpar com a navalha, me causando alguma ânsia de vômito, já que era nojento. Depois a esfolei. Quando estava pronta me dei conta de um problema. Não podia fazer fogo para cozinhá-la pois revelaria minha existência e minha posição. Teria de comê-la crua. Reparei na carne sanguinolenta. Cortei um bom pedaço e o meti na boca. Se os animais comiam cru eu também podia. Mastiguei algumas vezes e cuspi tudo. Estava repugnante! Tinha uma consistência de plástico, como se estivesse tentando comer uma boneca de minhas irmãs ou uma cartilagem meio desfeita. Sempre gostei de carne bem passada, não conseguia comê-la mal passada e assim, completamente crua, menos ainda. O que mais me causava repulsa eram as coisas de consistência como essa carne: pele de frango mal passada, toucinho, dobradinha…

Totalmente desiludido, catei todos os restos da serpente e os da minha comida e os enterrei. Coloquei umas folhas por cima para disfarçá-lo melhor. De que me adianta poder conseguir comida se não posso comê-la? Correr o risco de que uma serpente me morda e me mate, para que? Além disso, havia o problema da água. Tinha que encontrar algo porque não desejava ter uma sede terrível e só me sobravam dois refrescos. Deixei-me cair no chão, suando copiosamente pelo esforço realizado de capturar a serpente. Derrotado, bebi um dos refrescos e joguei a lata fora. Que me descubram, afinal de contas é melhor morrer crivado de balas do que de fome, demora menos. Ademais, havia espalhado tripas de serpente em um círculo de dois metros ao meu redor. Adeus triunfador, adeus sobrevivente nato, olá fracassado que ia morrer em um jardim selvagem. Era o que merecia, então não podia me queixar. Havia matado os meus dois melhores amigos. De todo modo, sabia que havia visto algo na televisão sobre a água na selva, me lembrava que diziam que era fácil conseguir em um lugar, de uma forma correta, mas não me lembrava onde.

Durante um tempo, que não calculei, fiquei ali, sentado no chão, com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça abaixada, com a mente em branco, me deixando levar. Resignação, conformismo, abandono, renúncia à vida. O acidente aéreo com a morte de Alex, ver como metralharam Juan, a euforia da serpente e a decepção posterior, o cansaço, o sonho… coisas demais em praticamente vinte e quatro horas, emoções demasiado intensas. Por que Juan teve que ser tão estúpido e sair correndo daquele jeito? Por que me havia deixado sozinho? Pelo menos se estivéssemos os dois tudo seria diferente; mas não, tive que tentar fugir desse modo tão… tão… Queria voltar para casa, fechar os olhos e que ao abri-los novamente estivesse em minha cama e tudo tivesse sido um pesadelo muito realista, um sonho ruim como qualquer outro, uma anedota para contar quando estivesse à tarde com a namorada e os amigos. Comecei a chorar, mas quase não caíam lágrimas de meus olhos.

Perdido, desanimado, desiludido e quase desmaiando de cansaço e sono. Não sabia o que fazer. Por fim, por puro automatismo, enterrei a lata que havia jogado no chão e me levantei para seguir andando, ainda que agora a um ritmo muito mais tranquilo, deixando-me levar, quase arrastando os pés. Fui andando e parando intermitentemente até que dessem oito horas da tarde. As paradas eram cada vez de maior duração, os momentos de andar cada vez mais curtos. Fazia de cajado a vara que havia usado contra a serpente, assim descarregava a pressão do joelho lesionado, ainda que nesses momentos já nem sentia as pernas. Andar por andar, sem tentar sequer fixar bem o meu rumo, no fim das contas, não sabia com certeza como fazer e quase podia dizer que não me fazia diferença. Por que tive que convencê-los a vir aqui, por quê? Nunca escutava ninguém, sempre tendo que prevalecer minha vontade. Veja para onde me trouxe minha vontade de controlar tudo, de mandar em tudo. Juan, idiota, por que saiu correndo dessa maneira, se suicidando? Isso era culpa sua, eu não tinha nada a ver com isso. Culpa sua. Sua.

Quando não consegui mais, comi uma das caixas de marmelo inteira e bebi a lata que sobrou, escondendo todos os restos, inclusive uma das duas mantas que estavam comigo. Para que queria duas? quanto menos peso carregar, melhor. Ademais, me davam muito calor e quando carregava a mochila tinha a impressão de que estavam assando minhas costas, levando a camiseta permanentemente grudada ao corpo pelo suor, o que produzia uma sensação incômoda. Também havia começado a ter uma sensação constante de enjoo, possivelmente porque estava desidratado. Não me estranhava, os refrescos matavam a sede no momento mas não ofereciam muita hidratação. O efeito ioiô, como chamava um colega do colégio, dizia ele, por causa do açúcar.

Como estava anoitecendo e não tinha vontade de voltar a dormir tão incomodamente em uma árvore, busquei um lugar um pouco resguardado, com a terra seca, fabriquei um magro colchão de folhas e galhos verdes, me aconcheguei coberto com a pequena manta como pude e com a mochila como travesseiro e dormi. Havia passado meu primeiro dia inteiro na selva e já estava mais do que farto, rendido e com vontade de que isso terminasse de qualquer maneira.

6

Fauna: Surucuá (Trogon) de narina, Apaloderma narina

7

Fauna: Papagaio cinzento, Psittacus Erithacus

8

Fauna: Cobra-cipó, Leptophis ahaetulla marginatus

Ndura. Filho Da Selva

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