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Capítulo XII: Meia hora embaixo da cama

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Não tardou que Filipe, como bom amigo e hóspede, viesse em auxílio de Augusto. Em verdade que era impossível passar o resto da tarde e a noite inteira com aquela calça, manchada pelo café; e, portanto, os dois estudantes voaram à casa. Augusto, entrando no gabinete destinado aos homens, ia tratar de despir-se, quando foi por Filipe interrompido.

— Augusto, uma idéia feliz! Vai vestir-te no gabinete das moças.

— Mas que espécie de felicidade achas tu nisso?

— Ora! Pois tu deixas passar uma tão bela ocasião de te mirares no mesmo espelho em que elas se miram?... De te aproveitares das mil comodidades e das mil superfluidades que formigam no toucador de uma moça?... Vai!... Sou eu que to digo; ali acharás banhas e pomadas naturais de todos os países; óleos aromáticos essências de formosura e de todas as qualidades; águas cheirosas, pós vermelhos para as faces e para os lábios, baeta fina para esfregar o rosto e enrubescer as pálidas; escovas e escovinhas, flores murchas e outras viçosas...

— Basta, basta; eu vou, mas lembra-te que és tu quem me fazes ir e que o meu coração adivinha...

— Anda, que o teu coração sempre foi um pedaço d’asno.

E isto dizendo, Filipe empurrou Augusto para o gabinete das moças e se foi reunir ao rancho delas.

Ai do pobre Augusto!... Mal tinha acabado de tirar as calças e a camisa, que também se achava manchada, sentiu o rumor que faziam algumas pessoas que entravam na sala.

Augusto conheceu logo que eram moças, porque estes anjinhos, quando se ajuntam, fazem, conversando, matinada tal, que a um quarto de légua se deixam adivinhar; se é sediço e mesmo insólito compará-las a um bando de lindas maitacas, não há remédio senão dizer que muito se assemelham a uma orquestra de peritos instrumentistas, na hora da afinação.

Ora, o nosso estudante estava, por sua esdrúxula figura, incapaz de aparecer a pessoa alguma: em ceroulas e nu da cinta para cima, faria recuar de espanto, horror, vergonha e não sei que mais, ao belo povinho que acabava de entrar em casa e que, certamente, se assim o encontrasse, teria de cobrir o rosto com as mãos; e portanto, o pobre rapaz seguiu o primeiro pensamento que lhe veio à mente: ajuntou toda a roupa, enrolou-a, e com ela embaixo do braço escondeu-se atrás de uma linda cama que se achava no fundo do gabinete, cuidando que cedo se veria livre de tão intempestiva visita; mas, ainda outra vez, pobre estudante! Teve logo de agachar-se e espremer-se para baixo da cama, pois quatro moças entraram no quarto. E eram elas d. Joaninha, d. Quinquina, d. Clementina e uma outra por nome Gabriela, muito adocicada, muito espartilhada, muito estufada, e que seria tudo quanto tivesse vontade de ser, menos o que mais acreditava que era, isto é... bonita.

Depois que todas quatro se miraram, compuseram cabelos, enfeites e mil outras coisas que estavam muito em ordem, mas que as mãozinhas destas quatro demoiselles não puderam resistir ao prazer, muito habitual nas moças, de desarranjar para outra vez arranjar, foram, por mal dos pecados de Augusto, sentar-se da maneira seguinte: d. Clementina e d. Joaninha na cama, embaixo da qual estava ele; d. Quinquina de um lado, em uma cadeira; e d. Gabriela exatamente defronte do espelho, do qual não tirava os olhos, em outra cadeira que, apesar de ser de braços e larga, pequena era para lhe caber sem incômodo toda a coleção de saias, saiotes, vestidos de baixo e enorme variedade de enchimentos que lhe faziam de suplemento à natureza, que com d. Gabriela, segundo suas próprias camaradas, tinha sido um pouco mesquinha a certos respeitos.

Depois de respirarem um momento, as meninas, julgando-se sós, começaram a conversar livremente, enquanto Augusto, com sua roupa embaixo do braço, coberto de teias de aranha e suores frios, comprimia a respiração e conservava-se mudo e quedo, medroso de que o mais pequeno ruído o pudesse descobrir: para seu maior infortúnio, a barra da cama era incompleta e havia seguramente dois palmos e meio de altura descobertos por onde, se alguma das moças olhasse, seria ele impreterivelmente visto. A posição do estudante era penosa, certamente; por último saltou-lhe uma pulga á ponta do nariz, e por mais que o infeliz a soprasse, a teimosa continuou a chuchá-lo com a mais descarada impunidade.

— Antes mil vezes cinco sabatinas seguidas, em tempo de barracas no campo! ... dizia ele consigo.

Mas as moças falavam já há cinco minutos; façamos por colher algumas belezas, o que é na verdade um pouco difícil, pois segundo o antigo costume, falam todas quatro ao mesmo tempo. Todavia, alguma coisa se aproveitará.

— Que calor!... exclamou d. Gabriela, afetando no abanar de seu leque todo o donaire de uma espanhola; oh! não parece que estamos no mês de julho; mas, por minha vida, vale bem o incômodo que sofremos o regalo que têm tido nossos olhos.

— Bravo, d. Gabriela!... Então seus olhos...

— Têm visto muita coisa boa. Olhe, não é por falar, mas, por exemplo, há objeto mais interessante do que d. Luisa mostrar-se gorda, esbelta, bem feita?

— É um saco!

— E como é feia!...

— E horrenda!

— É um bicho!

— E não vimos a filha do capitão com sua dentadura postiça?... Agora não faz senão rir!...

— Coitadinha! Aperta tanto os olhos!

— Se ela pudesse arranjar também um postiço para o queixo!

— Ora, d. Clementina, não me obrigue a rir!...

— D. Joaninha, você reparou no vestido de chalim de d. Carlota?... Quanto a mim, está absolutamente fora da moda.

— Ainda que estivesse na moda, não há nada que nela assente bem.

— Ora... é um pau vestido!... Tem urna testa maior que a rampa do largo do Paço!...

— Um nariz com tal cavalete, que parece o morro do Corcovado!

— E a boca?... Ah! Ah! Ah!

— Parece que anda sempre pedindo boquinhas...

— E que língua ela tem!

— É uma víbora!

— Eu não sei por que as outras mulheres não hão de ser como nós, que não dizemos mal de nenhuma delas.

— E verdade, porque se eu quisesse falar...

— Diga sempre, d. Quinquina.

— Não... não quero. Mas, passando a outra coisa... D. Josefina aplaude com prazer a moda dos vestidos compridos!

— Ora... porque tem pernas de caniço de sacristão.

— Pernas finas também é moda, presentemente.

— Deus me livre!...acudiu d. Clementina; pelo menos para mim nunca deve ser, pois não posso emendar a natureza, que me deu pernas grossas.

— Não lhe fico atrás, juro-lhe eu! exclamou d. Quinquina. Nem eu! Nem eu! disseram as outras duas.

— Isso é bom de se dizer, tornou a primeira; mas, felizmente, podemos tirar as dúvidas.

— Como?

— Facilmente: vamos medir as nossas pernas.

Ouvindo tal proposição, o nosso estudante, apesar de se ver em apuros embaixo da cama, arregalou os olhos de maneira que lhe pareciam querer saltar das órbitas; porém, d. Gabriela, que não parecia estar consigo e que só por honra da firma dissera o seu ‘‘nem eu", veio deixá-lo com água na boca.

Havia de ser engraçado, disse ela, arregaçarmos agora os nossos vestidos!

— Que tinha isso?... acudiu d. Quinquina; não somos todas moças?... Dir-se-ia que não temos dormido juntas.

— E verdade, acrescentou d. Clementina e, além do que, não se veria demais senão quatro ou cinco saias por baixo do segundo vestido.

— E talvez algum saiote... vamos a isto!

— Não... não... disse, por sua vez, d. Joaninha.

— Pois por mim não era a dúvida, tornou d. Clementina, com ar de triunfo, recostando-se mole e voluptuosamente nas almofadas, e deixando escorregar de propósito uma das pernas para fora do leito, até tocar com o pé no chão, de modo que ficou à mostra até o joelho.

— Quem me dera já casar! ... suspirou ela.

Pobre Augusto! ... Não te chamarei eu feliz?... Ele vê a um palmo dos olhos a perna mais bem torneada que é possível imaginar!...Através da finíssima meia aparecia uma mistura de cor de leite com a cor-de-rosa e, rematando este interessante painel róseo, um pezinho que só se poderia medir a polegadas, apertado em um sapatinho de cetim, e que estava mesmo pedindo um... dez... cem... mil beijos; mas quem o pensaria? Não foram beijos o que desejou o estudante outorgado àquele precioso objeto: veio-lhe ao pensamento o prazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quase que já não se podia suster... já estava de boca aberta e para saltar... Porém, lembrando-se da exótica figura em que se via, meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes e, apertando-os com força procurava iludir a sua imaginação.

— Quem me dera já casar!... repetiu d. Clementina.

— Isto é fácil, disse d. Gabriela; principalmente se devemos dar crédito aos que tanto nos perseguem com finezas. Olhem, eu vejo-me doida!... Mais de vinte me atormentam! Querem saber o que me sucedeu ultimamente?... Eu confesso que me correspondo com cinco... isto é só para ver qual dos cinco quer casar primeiro; pois bem, ontem, uma preta que vende empadas e que se encarrega das minhas cartas recebeu das minhas mãos duas...

— Logo duas?...

— Ora, pois, apesar de todas as minhas explicações, a maldita estava de mona: mesmo dizendo-lhe eu dez vezes: a de lacre azul é a do sr. Joãozinho e a de verde é do sr. Juca, sabem o que fez?...trocou as cartas!

— E o resultado?...

— Ei-lo aqui, respondeu d. Gabriela, tirando um papel do seio; ao vir embarcar, e quando descia, a tal preta, com a destreza precisa, entregou-me este escrito do sr. Joãozinho: "Ingrata! ainda tremem minhas mãos, pegando no corpo de delito da tua perfïdia! Escreves a outro!? Compareces por tão horrível crime perante o júri do meu coração; e, bem que tenhas nesse tribunal a tua beleza por advogado, o meu ciúme e justo ressentimento, que são os juízes, te condenam às perpétuas galés do desprezo; e só te poderás livrar se apelares dessa sentença para o poder moderador de minha cega paixão."

— Bravo, d. Gabriela! O sr. Joãozinho é sem dúvida estudante de jurisprudência?

— Não, é doutor.

Bem mostra pelo bem que escreve.

— Mas eu sou bem tola! Conto tudo o que me sucede e ninguém me confia nada!

— Isso é razoável, disse d. Clementina; nós devemos pagar com gratidão a confiança de d. Gabriela. Eu começo declarando que estou comprometida com o sr. Filipe a deixar esta noite, embaixo da quarta roseira da rua do jardim, que vai direta ao caramanchão, um embrulhozinho com uma madeixa de meus cabelos.

Que asneira!... Por que lho não entrega ou não lho manda entregar?

— Ora... eu tenho muita vergonha...antes quero assim; até parece mais romântico.

— São caprichos de namorados! falou d. Quinquina; havia tempo para isso! Mas, enfim, de futilidades é que o amor se alimenta. Querem ver uma dessas? O meu predileto está de luto e por isso exige que eu vá á festa de... com uma fita preta no cabelo, em sinal de sentimento; exige ainda que eu não valse mais, que não tome sorvetes, para não constipar, que não dê dorninus tecum a moço nenhum que espirrar ao pé de mim, e que jamais me ria quando ele estiver sério; e a tudo isso julga ele ter direito, por ser tenente da Guarda Nacional! Pois, por isso mesmo, ando agora de fita branca no cabelo, valso todas as vezes que posso, tomo sorvetes até não poder mais, dou dominus tecum aos moços mesmo quando não espirram e na() posso ver o sr. tenente Gusmão sério sem soltar uma gargalhada.

— Olhem lá o diabinho da sonsa! murmurou consigo mesmo Augusto, embaixo da cama.

— E você, mana, não diz nada?... perguntou ainda a d. Joaninha.

— Eu?... O que hei de dizer? respondeu esta; digo que ainda não amo.

— E a única que ama deveras! pensou o estudante, a quem já doíam as cadeiras de tanto agachar-se.

— E o sr. Fabrício?... E o sr. Fabrício?... exclamaram as três.

— Pois bem, tornou d. Joaninha, é o único de quem gosto.

— Mas que temos nós hoje feito nesta ilha?... Que triunfo havemos conseguido?... Vaidade para o lado: moças bonitas, como somos, devemos ter conquistado alguns corações!

— Juro que estou completamente aturdida com os protestos de eterna paixão do sr. Leopoldo, disse d. Quinquina; mas é uma verdadeira desgraça ser hoje moda ouvir com paciência quanta frivolidade vem, não direi à cabeça, porque parece que os tolos como que não a têm, porém aos lábios de um desenxabido namorado. O tal sr. Leopoldo... não é graça, eu ainda não vi estudante mais desestudável!...

— Você, d. Joaninha, acudiu d. Clementina, tem-se regalado hoje com o incomparável Fabrício. Não lhe gabo o gosto... só as perninhas que ele tem!...

— Ora, respondeu aquela; ainda não tive tempo de lhe olhar para as pernas... mas também você parece que não se arrepia muito com a corcova do nariz de meu primo; confessemos, minha amiga, todas nós gostamos de ser conquistadoras.

— Pois confessamos... isso é verdade.

— Pela minha parte não diga nada, assobiou d. Gabriela mirando-se no espelho; mas enfim... eu não sei se sou bonita, mas, onde quer que eu esteja, vejo-me sempre cercada de adoradores: hoje, por exemplo, tenho-me visto doida... perseguiram-me constantemente seis... era impossível ter tempo de mangar com todos a preceito.

— Mas, d. Gabriela, onde está o seu talento?...

— Pois bem, que se ponha outra no meu lugar.

— Alguns homens zombariam de doze de nós outras a um tempo... Houve já um que não teve vergonha de escrever isto em um papel:

Num dia, numa hora,

No mesmo lugar

Eu gosto de amar

Quarenta,

Cinqüenta,

Sessenta:

Se mil forem belas,

Amo a todas elas.

— Que pateta!

— Que tolo!...

— Que vaidoso!

— Essa opinião segue também o Augusto!

— Qh!... e esse paspalhão!...

Ei-las comigo... murmurou entre os dentes o nosso estudante, estendendo o pescoço a modo de cágado.

— Como lhe fica mal aquela cabeleira!... Assemelha-se muito a uma preguiça.

— Tem as pernas tortas.

— Eu creio que ele é corcunda.

— Não aquilo é magreza.

— Forte impertinente! Falando, é um Lucas...

— Há de ser interessante dançando!

— Vamos nós tomá-lo à nossa conta?

— Vamos; pensemos nos meios de zombar dele crue lmente... Pois pensemos...

Mas elas não tiveram tempo de pensar, porque, nesse momento, ouviu-se um grito de dor, ao qual seguiu-se viva agitação no interior daquela casa, onde ainda há pouco só se respirava prazer e delícias. As quatro moças levantaram-se espantadas.

— Pareceu-me a voz de minha prima Carolina, exclamou d. Joaninha.

— Coitada! Que lhe sucederia?...

— Vamos ver.

As quatro moças correram precipitadamente para fora do quarto.

Augusto, que não estava menos assustado, saiu do seu esconderijo, vestiu-se apressadamente e ia, por sua vez, deixar aquele lugar, em que se vira em tantos apuros, quando deu com os olhos na carta do sr. Joãozinho, que, com a pressa e agitação, havia d. Gabriela deixado cair.

O estudante apanhou e guardou aquele interessante papel, e com prontidão e cuidado pôde, sem ser visto, escapar-se do gabinete.

Um instante depois foi cuidadoso procurar saber a causa do rumor que ouvira.

O grito de dor tinha sido, com efeito, soltado por d. Carolina.

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