Читать книгу Fausto - Johann Wolfgang von Goethe - Страница 7

QUADRO II

Оглавление

Aposento gótico, altamente abobadado. Uma porta ao fundo, e janela à direita. Entre um fogão, que fica à esquerda, arredado da parede, e o primeiro plano, uma porta que deita para um corredor. É noite. Por uma fresta ao alto coa o luar. Estantes. Alfarrábios volumosos. Pergaminhos. Máquinas. Retortas. Vidros. Esqueletos, etc.; tudo em grande confusão.

CENA I

FAUSTO (dessocegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso.)

Ao cabo de escrutar co'o mais ansioso estudo

filosofia, e foro, e medicina, e tudo

até a teologia... encontro-me qual dantes;

em nada me risquei do rol dos ignorantes.

Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;e em dez anos vai já que, intrépido impostor, aí trago em roda viva um bando de crendeiros, meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros. O que só liquidei depois de tanta lida, foi que a humana inciência é lei nunca infringida. Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade, do que toda essa récua inchada de vaidade: lentes e bachareis, padres e escrevedores. Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores de diabos e inferno, atribulados sonhos e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.

Mas, com te suplantar, fatal credulidade,

que bens reais lucrei? gozo eu felicidade?

Ah! nem a de iludir-me e crer-me sábio. Sei

que finjo espalhar luz, e nunca a espalharei

que dos maus faça bons, ou torne os bons melhores;

antes faço os bons maus, e os maus inda piores.

Lucro, sequer, eu próprio? Ambiciono opulência,

e vivo pobre, quase à beira da indigência.

Cobiço distinguir-me, enobrecer-me, e vou-me

co'a vil plebe confuso, à espera em vão de um nome.

E chama-se isto vida! Os próprios cães da rua

não quereriam dar em troco desta a sua.

(Depois de longa pausa meditativa)

Só falta recorrer às artes da magia.

No espírito há poder; na voz cabe energia,

que a transforma em cominando. Então, consociada

a palavra ao querer, talvez lhe seja dada

força para arrancar com soberano império

à natureza avara o íntimo mistério.

Se o chego a conseguir... que júbilo! que dita!

Não precisarei mais, desde essa hora bendita,

após trabalhos mil como esses que frustrei,

dar por certas ao mundo as coisas que não sei.

Ser-me-á fácil dizer o vínculo profundo

que uniu partes sem conto, e fez do todo um mundo;

ver a força motriz de tanto movimento,

e consignar-lhe a causa. Ah! desde esse momento

em que o cerrado enigma alfim me for notório,

foi-se o torpe chatim de estulto palavrório.

(Depois de pausa, e voltando-se comovido, para a fresta por onde entra o luar)

Oh minha lua cheia, oh minha doce amiga!

Possas tu não mais ver em tão cruel fadiga

o homem que tanta vez dos céus hás contemplado

a desoras velando, em livros engolfado.

Melancólica amante! a claridade tua

achou-me sempre a ler. Se hoje um teu raio, ó lua,

me levasse a pairar nos cumes apartados,

a borboletear nos antros frequentados

dos espíritos só, a saltitar liberto

da científica névoa, em fundo de um deserto,

à luz crepuscular que tácita derramas

aos selvosos desvãos, por entre as móveis ramas!

Que refrigério d'alma um banho nesse rócio

não dera, amada lua, às febres do teu sócio!

(Silêncio. Cai em desalento. Depois levanta-se, e percorre com a vista o aposento)

Que masmorra que é isto! E aqui me vou gastando

neste covil infecto, abominoso, infando,

lôbrega escuridade a que o celeste dia,

prazer da terra toda, um raio a custo envia

pelos vidros de cor em treva mascarado.

Para onde quer que fuja o olhar do emparedado,

bate nesta Babel de livros bolorentos,

pastagem da polilha, informes, sonolentos,

e em rumas de papeis, do tempo denegridos,

caótico tropel de abortos esquecidos,

que trepa, galga, encobre, enluta, afeia, inunda,

a casa desde o solho à abobada profunda;

sem falar no sem-fim de drogas, pós, essências,

máquinas, que sei eu! misérias, importâncias,

que já me infundem tédio. E a isto se apelida

o meu mundo! Isto é mundo, ou esta vida é vida?

(Dolorosamente)

E inda perguntarás, pobre homem, donde vem

a angústia que te rala, e as forças te retém?

Toda a gente a gozar dos bens que o Factor Sumo

lhe faculta na terra; e eu... neste ascoso fumo

entre ossos de animais e esqueletos!

Sus! Sus!

Fausto, longe daqui! Torna-te ao ar, à luz!

(Vai a sair. Retrograda lentamente)

Mas... agora me ocorre; é bom tentar. Vejamos

que nos diz no seu livro o sábio Nostradamus.

Não há guia melhor.

(Tira da livraria um calhamaço, e põe-no numa alta estante de coro, que está colocada a um lado do proscénio)

Aqui se põe patente

dos planetas o influxo; e logo em continente,

percebido o teor da natureza, tomo

com ela intimidade, e a meu sabor a domo;

trato-a de igual a igual. A espíritos é dada

esta mútua influência. Eis a teoria achada...

(Pausa)

Sim; mas o praticá-la! O humano entendimento

não pode só por si colher o pensamento

que o nosso abstruso autor depôs nestas figuras.

Génios que me cercais, volantes e às escuras,

se me ouvis, respondei!

(Continua a folhear o livro. Encara na estampa do Macrocosmo)

Que imagem peregrina!

que inefável delícia enleva repentina

todo todo o meu ser! enchentes de doçura,

nunca de mim sonhada! A mão que tal figura

aqui delineou, à fé que era divina,

pois só vê-la me acalma, a dor já me não mina.

O coração me exulta, alegre, alvoroçado,

sôfrego, crente, certo, ufano, endeusado

de atingir afinal explicação completa

do enigma que há já tanto os dias me inquieta.

Dar-se-á que eu seja um deus? Não sei. A claridade

que me cresce em redor, não é da humanidade.

Neste debuxo morto avisto claramente

a vivaz natureza, universal nascente,

estar-se em criações contínuas prorrompendo.

Vejo-o c'os olhos d'alma. Agora, agora intendo

a sentença do sábio:

(Em tom de quem recita coisa decorada)

- «O mundo espiritual

«a ninguém é vedado. O porque o julgas tal

«é por teres o senso obtuso, e o coração

«defunto. Rompe a inércia! Expulsa a indecisão,

«discípulo covarde, e engolfa-te brioso

«no arrebol que entrevês.»

(Contempla a estampa)

Quadro maravilhoso!

Como tudo se tece e junto se unifica!

Nora imensa e possante, esplendorosa, rica,

música e gemedora, esvaziando e haurindo

das matrizes dos céus, com jogo alterno e infindo,

vida e morte, uma à outra amplíssimo tesoiro,

tudo permisto e a flux nos alcatruzes de oiro,

e tudo de auras mil de bênçãos ventilado,

almo consolo empíreo ao mundo trabalhado!

Que visão teatral! mas ai! visão somente!

Oh Natureza enorme, oh tentação presente,

hei-de entrar-te...

Mas como? Onde é que tens sumidos

os seios da abundância, a que andam suspendidos

céu e terra? O meu ser, murcho, desanimado,

almeja ir lá sugar leite caudal, jorrado

a quanta sede há 'í! vê que só eu definho

faminto na abundância.

(Voltando impaciente uma porção de folhas do livro)

Avante! Outro caminho!

(Dá com a figura do Espírito da Terra)

Acho influição melhor nesta figura.

É Génio mais vizinho este da Terra.Recresce-me vigor; como que entrada de um vinho novo me referve a mente. Ouso ao mundo lançar-me: aos bens e aos males; Arcar com temporais; sentir sem medo O estrondo de um naufrágio.

(A ser possível, o teatro representará tudo que no decurso da fala se vai mencionando)

Olha o negrume

que lá vai pela abobada! Sumiu-se

de todo a lua. A lâmpada vasqueja...

apagou-se, fumega. Raios rubros

sinto zunir-me em derredor das fontes.

Da abóbada me sopram calafrios...

Bem te pressinto, Espírito invocado!

Aparece! Todo eu já sou tumulto.

Transforma-se o meu ser: anseio, anelo

por novas sensações. A ti me entrego.

Obedece! Mando eu. Sai! sai! Não tremo;

custe-me embora a vida.

(Pega do livro, e profere em baixa voz a fórmula da evocação do Espírito. Acende-se uma chama avermelhada e trémula. Aparece nela o Espírito.)

CENA II

Um ESPÍRITO e o dito

ESPÍRITO

Quem me chama?

FAUSTO

Horrendo aspecto!

ESPÍRITO

Pois me evocaste

da minha esfera,

eis-me...

FAUSTO (afastando os olhos, e como quem foge)

Não posso!...

ESPÍRITO

(Durante esta fala, Fausto vai fazendo os gestos e accionados que o Espírito denuncia)

Olha-me! Espera!

Já que almejaste

por ver e ouvir-me,

podes falar!

Olha-me firme

sem titubar!

Aos teus conjuros

obedeci.

Bem! Que me queres?

Pronto! Eis-me aqui.

Pasmas, covarde?

foge-te a cor?

perdeste a fala?

tremes de horror?

O sábio, o forte,

o sem segundo,

o que em seu peito

criava um mundo,

o que nutria

orgulho tal,

que a nós, Espíritos,

se cria igual,

aí jaz por terra

convulso, exausto!

Quem me dá novas

do antigo Fausto?

Tu, que ousaste apostrofar-me

no teu carme,

co'a insolência mais que rara

de afrontar-me cara a cara,

mal que aspiras

o ar que efundo,

já deliras,

já no fundo

mais profundo

do teu ser,

verme calcado,

sentes a vida

quase perdida!

FAUSTO

Eu ceder-te, fogo fátuo!

Nunca tu presumas tal!

Sou Fausto; sou Fausto;

de ti sou igual.

ESPÍRITO

Neste mar,

neste mar tempestuoso

do viver e do actuar,

subo, desço, não repouso,

vou e venho sem cessar

neste mar.

Morredoiras vidas,

mortes renascidas

em fogosas lidas,

sem jamais parar...

eis de que eu fabrico

no imenso tear

as roupas fulgentes

que o rico mais rico,

que o Ente dos Entes

se digna trajar.

FAUSTO

Génio activo e infatigável,

bem que abarques todo o mundo,

eu, espírito incansável,

posso crer-me a ti segundo.

ESPÍRITO

Segundo a um ser, tua invenção,

mas a mim não.

(Desaparece.)

CENA III

FAUSTO ()

A ti não! a quem então?

Eu que de Deus imagem ser me cri,

nem sequer posso comparar-me a ti?

(Batem à porta)

Que raiva! Não me engano... Há-de ser Wagner,

o aluno cá de casa. E lá se perde

tão bela ocasião. Vem este mono

dar-me quebra a visões desta importância!

CENA IV


WAGNER, de roupão e barrete de dormir, com um candeeiro na mão. FAUSTO vira-se de mau humor.

WAGNER

Queira-me perdoar o interrompê-lo.

O Mestre estava agora declamando;

não 'stava? Dou que lia alguma cena

do seu teatro grego. O que eu gostava

de ser também um dia actor dramático!

É coisa que anda em moda, e rende fama.

Um moralista cénico, até dizem

ser mais útil que um padre.

FAUSTO

Ah, sim, se o padre

é moralista cómico; há bastantes.

WAGNER

O que me faz cabeça, é como pode

quem vive no seu canto, e não vê mundo

salvo algum dia santo, e só o observa

de longe e por um óculo, repito,

como pode ser guia de costumes.

FAUSTO

E certo que o não pode, se em si mesmo

não sentir lá por dentro o fogo sacro.

É só co'a inspiração própria, espontânea,

que se domina a turba, O chocho, o inerte,

como de seu não tem, mas quer pôr mesa,

pilha aqui, sisa ali; mistura, assopra

no seu fogareirinho um lumezito,

e sai-se co'um pitéu de mistifório,

que só porcos ou cães o tragariam.

Se gostas, prol te faça. Mas banquete

que seduza, e convide, e preste aos homens,

só dos miolos teus podes guisá-lo.

WAGNER

E eu a cuidar que nos sermões, o tudo

era a voz, o accionado, o tom solene!

Que lanzudo que eu era!

FAUSTO

Arma aos benesses

sem faltar ao decoro. Farfalhices

e guizalhada a bobos só pertencem.

A paixão verdadeira, o senso recto

escusam de artifício. Assunto sério

não se anda à caça de vistosas frases.

Os discursos de alardo e de oiropeles

com que os vícios zurzis, servem e aprazem

como o vento do outono às folhas secas.

WAGNER

Deus me acuda! A arte é longa, a vida breve.

Já de tanto estudar chego a ter dores

de cabeça e de peito. O achar caminho

certo, seguro, que nos leve às causas,

tem busílis. Primeiro que lá chegue,

pode mil vezes dar o triste à casca.

FAUSTO

Engano, engano! Onde há nuns alfarrábios

nascente milagrosa em que de um sorvo

se fartem para sempre as sedes d'alma?

Refrigério eficaz para tais sedes

só em ti o acharás.

WAGNER

Mas um bom livro!

Não será gosto o recuar nas eras,

ver o que era o saber da primitiva,

e compará-lo ao de hoje? Que progresso!

que esplêndido subir!

FAUSTO

Pois não! já vamos

pelo sétimo céu! Wagner amigo,

o mundo velho é livro arquibrochado

com sete selos. Isso, que vós outros

apelidais o espírito de um século,

é simplesmente o vosso próprio espírito,

a debuxar fantasmas que abalaram.

Mas que espelho tão pífio a quem o observa!

Faz nojo; faz fugir; bem comparado,

como um barril do lixo, ou como um sótão

de cacaréus sem préstimo nem graça;

ou, por melhor dizer, como comédia

em barraca de feira, alardeando

pomposas vistas, máximas de arromba,

que em falsetes de títeres chimpadas,

são da plebe regalo e maravilha.

WAGNER

Conhecer o que o mundo e os homens sejam

a toda a gente agrada.

FAUSTO

E essa tal gente

que chama conhecer? Quem é que pode dar à mínima coisa o nome próprio? Os raros, que algo disso entreluziram, e que, em vez de o esconder a sete chaves, foram à doida assoalhar no vulgo seu pensar e sentir em toda a parte, acabaram na cruz ou na fogueira. ................................. ................................. Amigo, por quem és, vai alta a noite. Basta por hoje.

WAGNER

Eu cá por mim gostoso

velara a ouvir tal sábio a vida inteira.

Mas enfim cá me vou. Levo inda uns pontos

por aclarar; nas boas horas fiquem

para amanhã, que é Páscoa d'Aleluia.

Eu moirejo a estudar, e sei já muito,

mas inda não sei tudo.

(Sai)

CENA V

FAUSTO ()

Como estes crendeirões esperam sempre!

Fossam na terra, à cata de um tesoiro,

dão co'uma vil minhoca, e ficam pagos!

Mas aqui, aqui mesmo, onde há tão pouco

me conversava um génio, como pude

ouvir a voz deste homem? Todavia

bem hajas tu, misérrimo vivente,

pois vieste arrancar-me ao desespero

que me ia aniquilar.

Tão monstruosa

era aquela avejão, que me sentia

a par dela pigmeu.

Ter eu suposto

que era imagem de Deus! Crer-me chegado

à intuição da verdade, já despido

na plena luz o invólucro terreno!

e exceder querubins! e a meu talante

por toda a natureza insinuar-me,

fruindo gozos da criadora essência!!...

Pago bem caro o orgulho. Trovejou-me

tremenda voz: «És nada.»

Sim. Nem posso

equiparar-me a ti! Pude evocar-te

mas reter-te não pude. Vi-me a um tempo

sumo e ínfimo. Espírito inclemente,

co'um mero Vade retro me atiraste de novo ao flutuar da sorte humana.

A quem já buscarei para instruir-me?

e de que hei-de temer-me?

É bem que eu ceda

ao meu impulso actual, ou que o resista?

Que maior jus terão sobre a existência

Os males do que a força?

És tu, matéria,

parte vil do meu ser, és tu quem sempre

vem contrastar do espírito os arrojos.

Como na vida há bens, fora da vida

já não cremos que os possa haver maiores.

Altos assomos d'alma, que haveriam

de nos dar a ventura, eis que os afoga

um mar d'interessículos mundanos.

Quando audaz fantasia arranca o voo,

brada insofrida: Eternidade, és minha!...»

leva-lhe as asas repentino raio;

esperança, alegria estão desfeitas,

e um cantinho qualquer então lhe basta.

Mas se a vaidade é ida, aí vem cuidados

ralar-nos o interior e destruir-nos

alegria e descanso; não sossegam;

trajam máscaras mil; agora a casa,

logo o paço, a mulher, a prole, os servos,

fogo, punhal, venenos, mar. Trememos

com receios quiméricos; choramos

perdas sonhadas, ilusórias, nulas.

(Pausa)

Deus, eu! Pois eu não vejo claramente

que não sou Deus? Imagem sua! imagem

mais depressa de um verme: um verme vive

a afuroar na terra, a alimentar-se

do pó da terra, enquanto um passageiro

o não pisa e sepulta.

E em a realidade

que é senão pó tudo isto que me cerca,

em tanta prateleira acumulado?

toda essa pedantona bugiaria,

que inda ao mundo dos vermes me afeiçoa?

Ali é que hei-de achar o que me falta?

Terei de ler milheiros de volumes

para saber que em tudo e em toda a parte

os homens tem vivido a atormentar-se?

não havendo senão de longe em longe

num sítio ou noutro alguém que se não queixe?

(Encarando no esqueleto)

Que me estás tu daí zombeteando,

caveira despejada? Entendo a mofa:

dizes que os teus miolos, quando os tinhas,

também como hoje os meus, esfervilhavam;

tudo era afadigarem-se às escuras

em demanda da luz que vivifica;

por gosto erravas, mísero, qual erro,

traz a verdade e em vão.

(Virando-se para as máquinas)

Se até vós mesmos,

instrumentos, que nunca houvestes alma,

estais co'as vossas cordas e cilindros,

rodas e dentes, a meter-me à bulha!

Eu ter-vos, eu supor-vos chave mestra

de tanto arcano, estar-lhe ansioso à porta,

forcejar... e afinal desenganar-me

de que a chave não diz co'a fechadura!

Ciosa de seus véus a natureza

nem ao mais claro dia se descobre;

e o que ela nos não mostre por si mesma

não lho hão-de arrancar máquinas.

Conservo

para aí todas essas velharias

porque eram de meu pai, que eu fruto delas

inda o não vi; nenhum! Olha a roldana,

como está do candeeiro enfumaçada!

Pudera! um lucubrar de tantos anos!

Melhor eu me tivera descartado

de tão reles herança, encargo e carga

que me faz suar tanto! O que homem herda

só o pode chamar seu quando o utiliza.

Haver que nos não presta é simples ónus.

Só no uso consiste a propriedade.

(Encara numa âmbula de vidro, que está na prateleira)

Mas, que atracção possante,

dalém, a todo o instante,

me está chamando o olhar?

Âmbula cristalina,

teu brilho me fascina,

me alegra e me ilumina.

Nesta alma, selva escura,

graças a ti fulgura

esplêndido luar.

(Tira a âmbula)

Salve, ó cristal que eu tiro

do ocioso teu retiro

com fé, com devoção!

Conténs a quinta essência

da indústria, da ciência,

a inércia, a sonolência,

a morte fulminante.

Sê-me, ó licor prestante,

refúgio e salvação.

Miro-te, e a dor se acalma.

Empunho-te, e já n'alma

se infiltra placidez.

Outra maré que estua:

Que ímpeto em mim actua!

e sobre a face tua,

vítreo estendal das vagas

me arroja a ignotas plagas

onde outros céus já vês.

Ígnea carroça alígera

aí vem tomar-me. Parto.

Já por caminho insólito

da terra vil me aparto.

Remonto no éter fluido.

Sacudo a humanidade.

Engolfo-me nos vórtices

da suma actividade.

Oh! que existir magnífico!

Sublimo-me até Deus.

Sus, verme; sus, blasfemo,

que o ínfimo ao supremo

alças nos sonhos teus!

De insanos terrores zomba!

Costas vira ao sol da terra!

Portão que a todos aterra,

eis braço audaz que te arromba.

Por um acto só pendente

da minha própria vontade,

provarei que a humanidade

é também omnipotente;

que não passam de delírios,

abortos da mente insana

esses infernos-martírios

com que a morte à vida engana.

Almejo ir com ledo rosto

devassar o passo estreito,

onde o humano preconceito

tão vivos fogos tem posto.

Partamos! É vinda a hora;

rompa-se a treva cerrada;

embora no arrojo, embora,

meu ser se resolva em nada.

(Tira um copo lavrado)

Desce! Vem! Sai do cofre esquecido

(e há bem anos) oh taça, que hás sido

dos avitos festins o prazer.

De conviva a conviva girando

nenhum triste, em te aos lábios chegando,

resistia ao teu ledo poder.

Cada um quando a vez lhe chegava,

sua trova às figuras cantava

do teu fúlgido insigne lavor,

e depois te enxugava de um trago.

Como em voz a sorrir inda vago,

tempos bons do meu flóreo verdor!

Agora estou sozinho;

não há já 'í vizinho

a que haja de passar-te.

Agora já não tenho

que me apurar o engenho

nos teus primores d'arte.

Bom! Venha este licor que súbito inebria;

dele é que te hei-de encher; eu mesmo o preparei;

nenhum lhe chega em força.

(Depois de ter vazado o veneno, da âmbula para o copo, diz com solenidade:)

Aurora do grão dia!

Com este tetro misto alfim te brindarei!

(Ao chegar a taça aos lábios tangem campas; ouvem-se anjos a cantar)

CORO DE ANJOS (não vistos pelo espectador, sons que chegam da Igreja vizinha)

Cristo ressuscita!

Jubilai alturas!

Paz às criaturas,

salvas e seguras

da prisão maldita!

(Continuam a ouvir-se ao longe repicar os campanários da cidade.)

FAUSTO

Que divina toada e inesperado encanto

dos lábios me repulsa o líquido letal!

Este repique ao longe é já o sinal santo

que anuncia aos fieis o júbilo Pascal?

Será este cantar o do celeste coro

que outrora em dia igual, trocando em festa o choro,

por cima do sepulcro aberto ao Redentor

hosanas entoara à nova lei do amor?

CORO DE MULHERES (que cantam, sem serem vistas também, no próximo templo)

Por nós, seus devotos

aqui foi trazido;

aqui, entre votos

de aromas ungido,

aqui o envolvemos

no linho mais fino.

Como é que o perdemos,

o Mestre Divino?

CORO DOS ANJOS (que não são vistos)

Ressurgiu Cristo amante,

ileso, triunfante

de tanta provação.

Traz por coroa ufana

a humana salvação.

FAUSTO

Vozes celestiais, potente suavidade,

que assim baixais ao pó, de mim que pretendeis?

Não faltam por aí fracos em quem podeis

empregar-vos em cheio. Oiço-vos, é verdade,

mas falece-me a fé... Sem fé, que racional

daria seu assenso ao sobrenatural?

Àquelas regiões, donde oiço a boa nova,

não ouso abalançar-me. E ainda todavia,

só porque na puerícia os mesmos sons ouvia,

como que reverdeço, e o crer se me renova.

Ai, domingo Pascal, o que eras algum dia!

Coavas por mim dentro um ósculo celeste.

O argentino repique era uma profecia...

Ai, dia do Senhor, que júbilos me deste!

Era-me êxtase orar. Impulso irresistível,

inefável saudade, encanto indefinível

me levava a girar nos campos florescentes,

ou no mais ermo bosque, onde em silêncio fundo,

debulhando-me à farta em lágrimas ferventes,

sentia dentro n'alma abrir-se um novo mundo.

Este alegre cantar era, naquela idade,

um bando de folgança à pronta mocidade:

Vinha lá primavera! Inda hoje estas lembranças

de boa fé tamanha e tão pueris folganças

tanta força em mim tem, que junto ao passo extremo,

depois de resoluto... hesito, se não tremo.

Bem hajais! Prossegui!... oh cânticos celestes,

que abrir-me enfim soubestes

a fonte onde a ternura as lágrimas encerra.

Por vencido me dou: reconquistou-me a terra.

CORO DOS DISCÍPULOS (Invisíveis para o espectador)

Do avarento moimento arrombado

reascendeu para o trono paterno,

Deus de Deus, luz de luz, sempiterno,

perenal Criador incriado.

Ai de nós! ai, que invejas ao Mestre!

De ora avante sem ele tão sós

cá ficamos no exílio terrestre,

Ai saudades! ai céus! ai de nós!

CORO DOS ANJOS (invisíveis para o espectador)

Da corrupção da morte

alou-se incorruptível.

Discípulos do forte,

fugi da mesma sorte

da culpa à herança horrível!

Aos que amam de verdade,

cumprem a caridade,

e para a eternidade

chamando os homens vão,

a esses, pia gente,

o que chorais ausente

é, foi, será presente:

pai, mestre, amigo, irmão!

Fausto

Подняться наверх