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O BAILE DOS VELHOS
ОглавлениеHouve esta noite festa rija em casa dos padeiros.
Casados ha cincoenta annos, festejaram com estrondo o anniversario do casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu. Isso sim! Das oito á meia noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem faltaram pares no meio da casa.
Ficou logo combinado, mal o Antonio Pataco falou n'aquillo: – quem não foi convidado para a boda, tambem não dançou n'aquella noite, nem comeu os leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice fóra com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os homens apenas seis, todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior não contava) tendo que attender a tanta senhora, não querendo escandalisar nenhuma.
A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela illuminação. Das vigas do tecto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro vellas sobre as mezas dos cantos. Á roda da casa, no friso caiado, tinham disposto a loiça branca e na chaminé um grande tronco de asinho ardia, rodeado de piorno, fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um tropheu, do outro lado da casa.
Quando um homem pensa que, além d'aquella riqueza, o Antonio Pataco tinha mais do que outro tanto em serviço na cosinha, e que tudo aquillo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que elle tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica, fechada provisoriamente n'aquella noite n'um dos quartos do sotam da casa?
O prior velho foi quem presidiu á festa como é de ver. Está cego de todo, coitado; mas, apezar d'isso e de andar algum tanto acabrunhado desde que não póde ler no missal, attendendo a ter sido quem os casára, lá se arrastou conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado á grossa bengala de castãosinho de prata, amarellada pelo uso, tremendo na mão d'elle, assistiu a toda a festa, até de madrugada, sacudindo em ar de approvação a cabeça muito calva, onde apenas meia duzia de cabellos brancos muito compridos, esvoaçavam, tenuissimos, no ar agitado.
Até á meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar.
O Bento não se cançou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para não se mexer o tamanho do ventre, que vae tomando com a edade proporções medonhas. Alguns quizeram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou, como por acaso, nas canellas do mestre-escola.
A pobre guitarra, velha tambem, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de fandangos antigos, e era de vêr como aquelles bons velhos, talvez enganados pelo som d'aquellas cordas que os transportava cincoenta annos para traz, ouvindo aquella musica alegre, que lhes trazia recordações risonhas da mocidade, crearam novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos bravos, ligeiros como arveloas, sorrindo-se como se ainda se namorassem, como, havia meio seculo, se sorriam e namoravam.
Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher.
– Ahi, rapaz! gritou-lhe o Bento.
Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu bello calção de briche fino, o collete verde de botões de vidro, as boas polainas hespanholas, parecia ter voltado aos trinta annos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito, baloiçando os braços, fazendo estalar os dedos.
A mulher custou-lhe mais por causa do rheumatismo; mas, apezar de muito dobrada, lá se animou. Levando aquillo muito a serio, dançou perto d'um quarto de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades, que n'outros tempos o tornaram falado por todas aquellas aldeias.
E só a idéa d'aquella saiasinha amarella, remexendo-se, tremula, por toda a casa, perseguida por aquelle velho cheio de cabellos brancos e de rugas, fazia rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e lançava o olhar incerto, ora para um lado, ora para o outro, n'um menear constante de cabeça.
– Está seculo e meio dançando, disse o mestre escola com a gravidade do officio.
– E muitos pósinhos, e muitos pósinhos! accrescentou o Prior, continuando a rir.
Todos applaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento.
– Não posso, não posso mais! declarou a velhinha deixando-se caír esfalfada num tropeço, ao pé da lareira.
– Quem vem então? perguntou o Antonio, limpando o suor.
E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando a perna, com um sorriso orgulhoso.
Muito se dançou n'aquella noite, em casa dos padeiros!
***
Mas o melhor foi a ceia.
O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antonio, muito naturalmente de proposito, sentou-o logo entre a Marianna Coxa e a Maria do Rosario. Imaginem!
Todos se lembravam ainda de quando ellas, á volta da fonte, se arranharam, por detraz do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas.
Agora, muito tremulas, muito engelhadas, de um lado e outro d'aquelle coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços muito recolhidos, tocando quasi com as barbas para cima nos narizes para baixo.
Emquanto se tomou a canja, houve um silencio quasi geral, apenas interrompido pelos recados do padeiro á velha criada Mathilde ou pelos convites aos assistentes.
– O cangirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo sr. Prior. Mais uma colherinha de canja, tia Ignez?
E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da bocca e sorviam depois o caldo, com uns apitosinhos gulosos, fechando os olhos; alguns amolleciam na canja as codeas de pão, e o padeiro, de pé, observando, com a concha mettida na enorme terrina, lançava em redor um olhar attento de bom dono de casa, prompto para dar mais a quem pedisse.
– Senta-te e come, disse-lhe a mulher. Que afflicção!
– Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não ha cerimonias. Quem quizer mais peça por bocca, gritou o Bento, estendendo o prato.
Mas já então a Mathilde vinha trazendo os assados.
Os convidados limpavam os beiços á toalha e os homens despejavam os copos para abrir o appetite.
Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um magnifico perum ostentava a opulencia das carnes aloiradas, espetou-lhes o garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladissimo, depois de attentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua pericia, a trinchar, seguindo com olhares gulosos os bocados, que iam cahindo.
O cangirão já voltára por tres vezes á cosinha, quando a padeira começou a servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam caindo os baguinhos na toalha.
O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do collete.
Foi então que, depois d'um segredo, que o Antonio Pataco lhe disse ao ouvido com ar de muito misterio, a Mathilde sahiu, entrando pouco depois com os leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas de garrafas, que poz sobre a meza defronte do padeiro.
– Sabem, meus senhores?.. Garrafas lacradas por mim no dia do meu casamento. Os seus copos, façam favor… Ora adeus! O que é isso, sr. professor? O copo maior… Então? O vinho é o sangue dos velhos.
O sangue não sei, a lingua é com certeza. Instantes depois, a algazarra subira de tom a tal ponto, que o professor, de pé, examinando á luz a transparencia da amethista enorme que lhe refulgia no copo, teve de pedir auxilio ao dono da casa para impôr silencio á velhada.
– Meus senhores… começou.
Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam áquella festa, puzeram-se ellas a gritar:
– Basta! Basta! Não queremos tristezas!
Deus me perdõe, mas está me parecendo que o vinho lhes subira ás cabecinhas brancas.
Não sei se o professor tambem desconfiou da coisa. Muito offendido, todo vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a immensa berraria, pousou o copo sobre a meza e começou a atacar o queijo, resmungando.
O Bento é que teve as honras da noite, contando historias da sua mocidade.
Rapaz perfeito, dono de tres moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o queriam.
– E mal sabes tu, Antonio, uma coisa. A tua Josepha tambem me esperava á porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadella!
– Que é lá isso? perguntou o Antonio, erguendo-se, entornando o copo sobre a meza e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho que tinha na bocca.
Como o Antonio tem mau genio, a questão esteve por um triz a azedar-se.
– Ainda tu acreditas n'aquelle traste! disse a Josepha levantando a mão e como que ameaçando o Bento d'uma tremenda bofetada.
– É verdade, sim senhores, é verdade! teimava o Bento, estirado por cima da meza, de collete já todo desabotoado.
Os outros velhos protestavam, rindo muito. O Prior serenava o Antonio. Elle bem devia ver que tudo aquillo era troça e que o Bento estava a brincar.
– E quem sabe? continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o anniversario do seu casamento, se eu n'esse tempo não andasse meio parvo por causa ali da tia Domingas.
– Anh? perguntou a tia Domingas, approximando da orelha o concavo da mão.
– Que andou meio parvo por vocemecê, explicou o Prior a berrar.
A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um grande bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda commovida:
– Não me fale n'esse tempo, sr. Bento, não me fale n'esse tempo!
E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do mestre-escola.
– Que tem, sr. Matheus? perguntou-lhe o Prior. Ha muito que lhe não oiço a voz.
– Vossa Reverencia bem sabe que nunca fui…
– Sei, sei, interrompeu o Prior. Aqui a sr.ª Bernarda que diga o que vocemecê foi.
***
Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das janéllas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sahir.
O Prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba rubicunda, olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de somno mal combatido.
Havia longos silencios e bocejos profundos.
Então as velhas lembraram-se de, como havia cincoenta annos, acompanhar a Josepha ao quarto.
E pelo corredor a Josepha, com a sua saiasinha amarella, bordada, com largas fitas de velludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antonio, que, por brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era costume.
Pararam todos á porta.
Pela janella entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o d'uma serena meia claridade.
O quarto estava na mesma: o oratorio defronte da porta sobre a commoda de pau santo, á direita o bahu encoirado, tapado com uma chita de ramagens, ao fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas, alvejavam na penumbra.
Havia cincoenta annos!