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II

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Frederico chegou, com efeito, na manhã seguinte e foi efusivo o abraço que trocou com Nuno, ao saltar do automóvel, diante do portão do jardim que um grande ramo de jasmineiro em flor cobria de sombra, de frescura e de aroma. Enquanto os criados conduziam as malas de viagem, do carro para casa, êle, compondo a roupa desmanchada e alisando, com a mão, os cabelos despenteados, dizia para o amigo:


—Menino, o que eu agora mais desejo, antes do almôço, que ficarei devendo à tua generosidade, é um banho frio que me restitua a elasticidade aos membros entorpecidos e me purifique da poeira da jornada—uma poeira corrosiva que me morde a pele.


—Pois terás êsse banho purificador, homem!—prometeu Nuno, alegremente.


Foram andando pelos arruamentos que corriam junto dos canteiros rescendentes, no inspirador silêncio matinal.


—Tu tens isto lindíssimo, na verdade. Sente-se a ventura, o encanto de viver à volta desta habitação que eu creio bem que seja a morada da Fortuna!... E como vai a saúde da família? Próspera, não é assim?... Desculpa. Tinha-me esquecido de cumprir êste elementar dever de cortesia.


Do lado que dava para o parque havia uma escada de pedra com grade de ferro pintada de verde, subindo, entre redouças de trepadeiras que a bucolizavam, até ao primeiro andar, sob a folhagem fechada duma acácia. Tinham êles galgado o primeiro lanço, quando Júlia apareceu no alto, vestida com simplicidade e gôsto. Frederico, tirando o chapéu, exclamou logo, ao avistá-la:


—Oh! minha senhora!...


E avançou, mais apressado, de mão estendida, acrescentando:


—Venho pedir um pouco de repouso, de tranqùilidade espiritual, às divindades protectoras dêste lar, que é o Palácio da Ventura...


—Seja então bemvindo—acudiu ela, tôda risonha.


—Não o acredites, Júlia! É um réprobo e tem o sentimento derrancado—gritou Nuno. Ainda agora me dizia da aldeia coisas pavorosas. Não te admires se êle, logo à tarde, bocejando o seu aborrecimento e renunciando a uma conversão de alma, nos fugir para a cidade...


Frederico, voltando-se para o amigo, murmurou com ar cómico e forçadamente constrangido:


—É, então, assim que o afecto fraternal compreende e pratica as obrigações sagradas da hospitalidade, mentindo para me comprometer? Com franqueza! Isso não é leal...


Júlia, còrada e encantadora no seu pudor e no seu recato de espôsa e de mãe, ria enlevada.


—Deixe-o falar!


—Pois se eu, só de atravessar a pacificação campestre, embebendo-me, impregnando-me da sua doçura, até já me sinto outro e me parece que dentro de mim um outro coração renasce!...—disse Frederico.


—É que o Espírito Santo estava à tua espera para baixar-te sôbre a cabeça em língua de lume e iluminar-te—zombou Nuno.


Entraram na sala que as flores das jarras incensavam. Por tôda a parte se notava logo o cuidado e a subtileza duma diligente ménagère, tal era a ordem, a elegância, o claro aceio daquele atraente lugar de repouso. Sentaram-se um momento, conversando.


—Quis, então, dar-nos por algum tempo o prazer da sua companhia, abandonando as alegrias da vida citadina?—perguntou Júlia.


—Nuno assim mo impôs. E creia V. Ex.a que nunca imposição alguma foi mais brandamente acatada por um rebelde como eu sou—afirmou Frederico.


Um relógio de bronze dourado, montado em colunas de alabastro côr de rosa, marcava as horas sôbre o mármore do fogão, quebrando com o ritmo do seu tic-tac a paz do compartimento: e evolava-se de tudo o que os cercava essa serenidade, êsse divino mistério inspirador, essa graça imaterial que só existem nos ambientes calmos em que as almas de élite fazem a troca mútua das suas afeições puras, das suas emoções delicadas, das suas aspirações nobres.


—De-certo que não encontrará aqui as distracções que um grande centro de população pode oferecer—exclamou Júlia. No entanto, haverá para o snr. uma sincera amizade.


—Eis tudo de quanto eu preciso, minha senhora, porque a amizade é o que ainda vale no egoísmo e na tristeza da nossa época.


—Mas, não terias perdido a virtude, o dom e motivo de senti-la?—interrogou Nuno, com ironia afável. Êste homem é um perdido, Júlia. Vamos a ver se conseguimos levá-lo de novo para a luminosa vereda da verdade... E vai-te arranjar, criatura, que aqui, na aldeia, almoça-se cedo, janta-se cedo e deita-se a gente ao anoitecer...


—Bem! Começa a minha regeneração—murmurou Frederico, erguendo-se. Se me concede licença, minha senhora, vou tratar da toilette. Vejo que Nuno, antes de me servir o alimento, pretende servir-me um método. É justo. Quem dá o pão, dá o pau...


—Se precisas dêle!...


—Do pau?


—Não, desgraçado, do método!...


Nuno acompanhou-o ao quarto, enquanto Júlia descia à cozinha. A tranqùilidade envolvente era tam profunda que os menores ruídos adquiriam uma prolongada vibração. Ouvia-se a voz dos carreteiros ao longe, excitando os bois nas subidas e as cantigas dos ranchos de mulheres que trabalhavam nas terras de cultivo, sob o banho fluido e louro da luz. Nuno, deixando Frederico, veio um instante para a varanda envidraçada exposta ao sol, sentando-se numa cadeira de encôsto, perto dos vasos com avenca e com begónias de estufa, de largas fôlhas espalmadas e ferruginosas, onde costumava passar as tardes com Júlia, contemplando a ondulação dos milheirais que se estendiam por todo o vale, a ramaria dos pinheiros vasta como um mar de verdura, a mancha azulada das montanhas de perfil irregular e que formavam, das bandas do nascente, uma rica, prodigiosa scenografia natural. Estava contente, a vida tinha para êle um grato sabor, nesse momento. Por mais absorvido que andasse na sua feliz, plácida existência conjugal, não podia subtrair-se a determinadas influências que certos factos produziam. A vinda de Frederico tinha acordado, para seu regalo, um mundo de sensações longínquas, de recordações adormecidas. Com a presença do amigo, ressuscitavam tambêm a sua mocidade distante, os anos consagrados ao estudo, à conquista duma posição social que lhe imprimisse maior relêvo à personalidade, as ilusões que fôra tecendo, as esperanças sonhadas em prometedoras horas de confiança. Relembravam-lhe episódios há muito olvidados, uma tumultuosa onda de saùdade e de indecifrável ternura invadia-o. Ah! êsse bom Frederico! Havia perto de dois anos—desde o seu casamento, a que êle assistira—que não tornara a vê-lo. Nos primeiros meses de casado, como o seu forte amor por Júlia reclamasse um absoluto recolhimento, isolou-se inteiramente das suas relações, duma sociabilidade que o não interessava. Fizera, com ela, uma longa viagem de núpcias por países que nunca visitara e que muito desejava conhecer, encantado pelo anonimato da sua individualidade no meio das ruidosas multidões. Estiveram em Itália, em França, na Suíça, observando uma civilização que se denunciava radiosamente em tôdas as manifestações da actividade humana, na sumptuosidade de capitais que são resumos lúcidos do mundo consciente, passando as manhãs nos Museus, indo à noite aos teatros, aparecendo nos sítios preferidos pelo mundanismo para a exibição maravilhosa da esplêndida flor do luxo e da beleza, ofertando à adoração que os estreitava a surprêsa de espectáculos constantemente novos e cativando pela sua variedade infindável. Depois, quando regressaram ao Pôrto, amando-se mais porque entre os dois se tinha feito uma perfeita unidade moral e afectiva, Frederico havia partido igualmente «para uma confortável vadiagem por êsse bemdito Portugal» como dizia numa carta a Nuno, porque, mesmo separados, nunca deixaram de estar juntos em espírito, correspondendo-se com regularidade, comunicando-se as impressões recebidas, as opiniões, os pensamentos, os pontos de vista, por uma necessidade imperiosa, que provinha de identidades de inteligência e simpatias de temperamento.


Frederico nada ocultava ao amigo e ao camarada, confessava-se-lhe sinceramente. Uma casualidade singular os aproximava ainda mais:—eram ambos ricos, sem família, fizeram o mesmo curso, manifestavam as mesmas predilecções. Nuno conhecia-o minuciosamente no seu carácter, na sua psicologia, nas suas tendências, nos seus hábitos. Um pouco leviano e volúvel, por certo. Não havia em Frederico estabilidade de sentimentos, fixidez, reflexão. Os seus actos quáse nunca estavam em concordância com as suas ideias. Abandonava inconsideradamente, como futilidades sem raízes na realidade universal, projectos no dia anterior aceitos com entusiasmo e fervor, como se representassem a verdade irredutível. Era um dêsses homens estranhos que, possuindo um grande orgulho de si próprios, ou pela superioridade mental ou por dons puramente exteriores, são incapazes de contrariarem a sua espontânea vontade, de se sacrificarem na satisfação do seu sonho, muito embora sigam por caminhos errados, de renunciarem ao que, para êles, encerra um efémero minuto de prazer. Foi por isso mesmo que não quis jàmais reduzir ou comprometer a sua liberdade, conservando-se solteiro com mêdo às responsabilidades duma família, ao jugo dos deveres contraídos. Nuno lembrava-se, enquanto reavivava um passado ainda recente, do desgôsto que em Frederico provocara a sua decisão de casar-se com Júlia. Êle ouvira-o friamente, com uma expressão de sarcasmo na bôca—um sarcasmo em que havia compaixão e desdêm.


—E tu devias fazer o mesmo. Arranjavas, assim, uma ocupação séria!—dissera-lhe Nuno.


—Ah! obrigado pela intenção—respondera Frederico, sêcamente e encolhendo os ombros.


—Homem, parece que estou a aconselhar-te uma acção má!...


—Não! Apenas me aconselhas a loucura, o absurdo...


Êle, casar-se, efectivamente! Nunca sentira vocação para a vida conjugal, sempre que se consultava sôbre êsse complicado e perigoso problema. Julgava que o casamento destruiria tôda a sua paz, tôda a sua felicidade—se é que essa felicidade significa mais alguma coisa do que uma rima frívola em poesia ou do que uma imagem literária.


—Tu bem sabes, Nuno, que não sou um inexperiente em amor—asseverou Frederico.


Não era um inexperiente, na realidade. Nuno conheceu-lhe, durante muitos meses, uma ligação sentimental íntima com uma linda rapariga que êle seduzira e de quem mais tarde, saciado, fatigado, desiludido, se afastou, oferecendo-lhe um forte punhado de oiro. E, nessa ligação, que foi mais do que um capricho, a princípio, porque a sua alma nela teve interferência, encontrou Frederico a certeza de que, para o seu organismo, para a sua individualidade psíquica, as venerações eternas e conservando perpétuamente a mesma intensidade, as afinidades da carne e da emoção que estabelecem para sempre uma estreita comunidade física e ideológica entre dois seres de sexos diferentes, pelo laço do desejo insaciável, que incessantemente se renova, e das semelhanças espirituais, representam uma engenhosa mentira.


—A não ser—concluiu êle—que para além da minha experiência haja um mundo por mim ignorado.


—Porque não hás de tentar a sua descoberta?—insinuava Nuno.


—Porque não quero enliçar-me em aventuras arriscadas... Se falhasse, o mal seria irremediável.


Nuno casou, entregou-se às meigas preocupações do seu amor, não tornou a falar com Frederico, a não ser por cartas: mas êste facto nunca mais lhe esqueceu. Permaneceria ainda o amigo dentro dos apertados limites das mesmas ideias, prevaleceria no seu espírito o terror ao casamento? Era provável que assim fôsse: mas Frederico seria uma testemunha da sua felicidade, que era imperturbável e perene: e podia muito bem acontecer que modificasse raciocínios falsos. Felicitava-se por êle haver aceitado o seu convite, porque talvez a permanência naquela casa o convertesse—o que seria sumamente grato ao afecto que lhe consagrava.


—Porque não? Porque não?—monologava Nuno.


A aridez da existência de Frederico entristecia-o, porque o estimava profundamente. A-pesar da sua leviandade, duma ponta de cinismo que a vida lhe transmitira, do pessimismo que tornava estéreis os seus anos alacres e improdutiva a sua actividade, êle era um excelente moço duma lealdade firme, afável, encantador por mais dum traço da sua personalidade: e só por isto, lhe abrira alegremente a porta da sua vivenda onde com sobressalto, quáse com ciúme, guardava quanto possuía de mais querido e de mais puro...


Um berro súbito interrompeu o fio do scismar de Nuno. Frederico, já lavado do pó da viagem, já perfumado, já mudado de roupa, entrou inesperadamente na varanda, exclamando:


—Tenho andado a procurar-te por tôda a parte inutilmente.


—Estava aqui a reviver coisas extintas que a tua chegada me sugeriu. E sabes o que evoquei? Não sabes? Pois foi a última conversa que tivemos nas vésperas do meu casamento. Lembras-te?


—Perfeitamente...


—E ainda pensas da mesma forma?


—Pois que razão havia de desviar-me dêsse pensamento?


—Vejo que és um convicto no êrro.


—Como tu o és na verdade...


—Bem, bem. Não falemos mais nisso!... Ocupemo-nos de coisas proveitosas. Nem sequer viste o meu morgado... Vou mostrar-to. Anda comigo.


Enquanto se dirigiam ao quarto da ama, que comunicava com o de Nuno por uma ampla porta, êle ia-lhe fornecendo esclarecimentos sôbre o filho:


—Oh! é um respeitável senhor com as pernas e os braços às roscas de carne, uma cara rabugenta e uns olhos negros como contas de vidro que, a-pesar-de ser ainda pequenino, é já um déspota. Manda em mim, manda na mãe, que o adora, e, como os príncipes, tem servos atentos à volta da sua importante pessoa. Todos nós somos seus escravos.


Atravessavam um corredor quando Júlia apareceu com a criança ao colo, entre rendas, cambraias, laçarias de sêda.


—Aqui o tens. Vê que figurão!


Frederico curvou-se para uma carinha rosada, emergindo da brancura imaculada das roupagens, tocou-lhe levemente com a mão na face, esteve um momento a contemplá-lo.


—Hein? Que te parece?—perguntou Nuno, beijando, com ternura, o pequenino.


—Admirável!... Com certeza que a estas horas, já elegeste, para êle, um destino incomparável, já meditaste na situação que mais lhe convêm. É o primeiro dever dos pais.


—Coitadinho!—murmurou Júlia, enlevada.


—E V. Ex.a tambêm, minha senhora. Ah! as mães! Se elas forem tôdas como a minha, que era uma santa, nunca se sentarão à beira dum berço sem sonharem quimeras para os seres que lá dormem.


—Não, não! Eu apenas quero que êle viva, para o meu amor, para o amor de Nuno.


—Cá por mim—atalhou Nuno—decidi.


—Sim? Então, conta lá...


—Resolvi fazê-lo rei, dar-lhe um trono...


—Oh! Nuno, que disparate!...—interrompeu Júlia.


—Disparate? Ora essa!... Que dizes tu, Frederico?


—Eu digo que, na verdade, um trono é uma grande comodidade para os mortais, mesmo por êstes ásperos dias de democracia, de revoluções, de indisciplinados movimentos políticos e religiosos. Sim, minha senhora. Nuno está na sapiência. Uma corôa, uma rialeza, milhões de vassalos vergados e sem vontade sob o poderio dum scetro é, entre tôdas as vaidades humanas, a mais invejável vaidade. Resta saber...


Júlia ouvia saborosamente as palavras de Frederico, afagando o filho, aconchegando-o mais nos braços, encostando-o ao seio com infinitas cautelas.


—Resta saber o quê?—interrogou Nuno.


—Resta saber se o pequerrucho terá uma decidida vocação para tirano...


Riram com alarido, dando alguns passos no corredor que a meia-tinta da luz refrescava.


—Se sair à mãe, será um tirano de primeira ordem!—concluiu Nuno, rindo ainda.


—Não creia, Frederico—replicou Júlia, jovialmente. Quem aqui sofre um domínio tirânico, sou eu!... Nem pode calcular...


—Imagino, imagino, minha senhora. E lamento-a. Em outras épocas, nos séculos mortos da cavalaria, eu ofereceria a V. Ex.a uma espada libertadora. Mas, desde D. Quichote que os cavaleiros andantes não são bem vistos pela polícia. Tudo quanto posso fazer é recomendar-lhe resignação...


—Sou já uma resignada—disse ela, envolvendo Nuno num inexprimível olhar de afecto.


A ama veio pegar na criança, que agitava os bracinhos, que levava os punhos fechados à bôca e galrava, quando em baixo, no rés-do-chão, uma sineta de estridente timbre, tocou para o almôço, assustando as pombas no pombal.


—Ora, graças a Deus! Pensava que nos querias hoje matar à fome, Júlia—disse Nuno.


—Que horas são?


—Meio-dia. E Frederico deve estar com um apetite igual ao de Ugolino na sua prisão. Desde alta madrugada que rolou, através de estradas poeirentas, para nossa casa, animado na sua tortura pela única esperança duma farta mesa...


—Nem só de pão vive o homem—exclamou Frederico. Mas lá apetite há, bemdito seja o Senhor que nos fez assim glutões e terrestres.


Foram caminhando pelo corredor, ao lado de Júlia muito elegante no seu vestido de sedinha branca—um vestido que lhe modelava nítidamente as linhas corpóreas, ondulantes e flexíveis, e em que havia harmonia, graça e ritmo—entrando, por fim, na sala de jantar, que era espaçosa, clara, aprazível, com o seu mobiliário de nogueira americana, as suas três janelas abrindo para o jardim, os seus cortinados de renda inglesa, os seus brise-bise de tule bordado. Nos aparadores, as pratas resplandeciam, iluminando-se de súbitas claridades; o esmalte das porcelanas pintadas faíscava de brilhos metálicos; os cristais dardejavam a um raio de sol que incidia nas vidraças e se prolongava como um delgado fio de ouro, ardendo, fulgurando, tremendo sôbre o verniz dos móveis. Uma perturbante fragrância vinha de fora, exalando-se das corolas, subindo na aragem.


—É agradável, esta sala!—louvou Frederico.


—Como situação...—alvitrou Nuno.


—Por tudo:—pela situação, pelo aspecto ornamental, pela simplicidade, que logo revela o solícito cuidado e o bom gôsto feminino... Os meus cumprimentos, minha senhora.


—Ora! Amabilidades de hóspede amável!—disse Júlia.


—Mas não, mas não! Digo a verdade, digo o que sinto.


A larga toalha da mesa, do linho mais puro e mais fino, alvejava entre os solitários com cravos e avencas e espalhava frescura; largas cadeiras de couro lavrado, de alto espaldar e pregarias de metal amarelo, ofereciam repouso; dos pratos cheios de fruta evolavam-se vivos aromas; os morangos, colhidos de manhã, no morangal, por Nuno, perfumavam o ambiente. Sentaram-se: e Frederico, desdobrando o guardanapo vagarosamente, afirmou:


—Pois, senhores, adorável retiro para uma doce convalescença de espíritos doentes, para um perfeito exame de consciência! Aqui é o El-Dorado que o dr. Pangloss em vão procurou na terra.


—Tu o dirás!—retorquiu Nuno. Mas mais tarde. Por enquanto, é cedo para julgamentos ousados. Não te precipites, não arrisques opiniões temerárias que podem ser erradas... Chegaste há três horas apenas.


—Há três horas já? Nunca, para mim, o tempo fugiu tam ligeiro...


Júlia sorria sempre, muito rosada, muito animada, diante de tôda aquela efusão do amigo da casa, que viera trazer com o seu afecto por Nuno mais movimento e mais vida à tranqùilidade inefável da vivenda rural. Os cabelos abundantes, enrolados no alto da cabeça e apenas presos por travessas guarnecidas a ouro em que fulguravam pequenos brilhantes talhados em rosa, caíam-lhe em madeixas até ao lóbulo das orelhas, onde duas pérolas dum belo íris reluziam em fogos surdos. Na sua testa ebúrnea havia toques de luz. Frederico olhou-a um momento, assim envolvida de claridade, satisfeita na sua ventura de mulher, numa atitude que dava a tôda a sua pessoa um extraordinário poder de sedução.


—Quem tem feito uma grande diferença, para melhor, é a snr.a D. Júlia—disse.


—Sinto-me bem, com efeito!—respondeu ela.


—Eu, de resto, apenas a vi no dia do casamento, e já lá vão dois longos, fastidiosos anos. Mas parece-me que tem mais côr e mais saúde, que está um pouco mais nutrida.


—Pois, olha que veio para aqui adoentada, muito fraca—esclareceu Nuno. Meses depois do nascimento do filho, chegou a inspirar-me cuidados. Os médicos mandaram-na sair da cidade a tôda a pressa: e, com efeito, na aldeia, curou-se. Não há como o campo, para êstes milagres.


—Visto isso, minha senhora, por gratidão, deve ficar aqui, esquecer as grandes aglomerações, que são o veneno, a indigência orgânica, a morte...—comentou Frederico.


—Por mim, ficava. Mas Nuno não se acostumaria à solidão, à tristeza, ao isolamento...


E, como êle protestasse, acudiu logo:


—E nem eu, tambêm. Já outro dia falamos nisso... O inverno, neste destêrro, deve ser medonho...


O almôço decorreu alegre, no calor constante das palestras a que Frederico imprimia vivacidade e graça, com a sua verve faíscante. À sobremesa, a conversação derivou para as questões sensacionais do dia, motivadas pela guerra que, dum extremo ao outro, pegava fogo à Europa, sepultando em ruínas uma civilização que levara tantos séculos a construir. Nuno achava-a necessária, pois só por ela seria possível restituir a liberdade aos povos e a independência às nacionalidades débeis. Júlia, pensando no filho, na desdita das outras mães, nas torrentes de sangue e de lágrimas que corriam nos campos de batalha e nos lares lutuosos, horrorizava-se com uma carnificina que imolava à morte as primaveras humanas. Não compreendia a ferocidade dos homens e das nações, despedaçando-se por ambições de domínio, de hegemonias políticas, de conquistas de territórios e de mercados comerciais, quando para todos havia um lugar ao sol e um direito à existencia. Falava com uma verbosidade que Nuno não lhe conhecia e que encantava Frederico.


—V. Ex.a, minha senhora, é uma das poucas mulheres que assim pensam e eu creio que, como mulher, está na lógica e na verdade. Mas quer saber o que faz o gentil mundo feminino das potências envolvidas no conflito? Não pensa nas modas, no luxo, o que até agora parecia impossível. Trabalha nas fábricas de munições, faz granadas, engenhos de destruìção!...


—Por isso mesmo, essas mulheres são admiráveis!—atalhou Nuno, com entusiasmo.


—Admiráveis? Oh! Nuno, que heresia!—contrariou Júlia.


No seu critério simplista, ela compreendia que as mulheres, seres de abnegação e de sacrifício, destacando-se mais intensamente pela emoção do que pela inteligência, mais pelo espírito do que pelo cérebro, amassem as suas pátrias; mas era-lhe doloroso pensar que mãos de afago e de carícia, feitas para apaziguarem o sofrimento, para enxugarem com infinita doçura os olhos que choram, para sararem feridas, se ennegrecessem na pólvora, destinada a devastar homens que vão para os combates, passivamente, como as rêses para um matadouro. A sua colaboração nas pendências guerreiras nunca devia ir alêm dos hospitais de sangue, onde acalmariam dores e tranqùilizariam delírios.


—Pois, não é assim, Frederico? Diga! Seja imparcial.


—Na realidade, minha senhora, através de tôda a história, nunca vi as mulheres associadas às lúgubres matanças. Pelo contrário, tenho-as visto sempre dispostas a lutar para conseguirem tudo o que signifique elevação, nobreza, bondade, amor. Elas foram, positivamente, os melhores arautos de Jesus para a vitória do Cristianismo, que redimiu o mundo; elas impuzeram, com as religiões, a arte e a poesia.


—Então, aí está!—disse Júlia, com um sorriso triste.


—Vejo que tu não eras capaz de dar o teu filho, se ele fôsse grande e pudesse manejar uma arma, para a defesa do país—exclamou Nuno.


—Com certeza que não!—asseverou ela resolutamente e com uma grande convicção na voz. E digo-to:—para o defender da morte, eu era capaz de tudo, de tudo, mesmo dum crime.


—Pensa, portanto, no heroísmo das outras mães...


—Nenhuma delas os dará de bôa vontade... Arrancam-lhos à fôrça, cruelmente !


—Repara, Frederico! Aqui tens uma compatriota de Brites de Almeida, a padeira de Aljubarrota, de D. Filipa de Vilhena, doutras criaturas heróicas!—zombou Nuno.


—Ela está na razão, pensa como mulher—e as mulheres, verdadeiramente, só vencem pelo sentimento.


Acenderam os charutos e continuaram a discussão, enquanto Júlia, levantando-se, dava ordens á criada para que o café e os licores fôssem servidos no jardim. Nuno, que a guerra apaixonara, ia agitando ideias, condenava o pacifismo que estava fóra da sua acção eficaz:


—Positivamente, por melhor intencionado que seja, o pacifista é um produto nocivo do nosso estado de perturbações e de ameaças. Até hoje, imaginou erradamente que a maneira mais prática de realizar-se a paz seria odiar e condenar todos os movimentos armados dos povos, sem distinguir lúcidamente entre o justo e o injusto, entre a honra e a cobardia. Quando a tranqùilidade do mundo entrava numa fase precária, êsse pacifista aconselhava a transigência dos menos poderosos, o que era uma vileza.


—Mas que outra coisa poderia êle fazer?—inquiriu Frederico, interessado e soprando baforadas de fumo.


—Que outra coisa poderia fazer? Homem, desconheço-te, perdeste a sagacidade antiga! No domínio espiritual, a felicidade resulta da filosofia e da religião; e no domínio material, da sciência e do trabalho. Igualmente, e nesta ordem de raciocínios, a paz deriva do equilíbrio das potências e das precauções a tomar contra aqueles que pretenderem destruir êsse mesmo equilíbrio. A missão útil e nobre do pacifismo, se êle não andasse transviado, seria esta, portanto.


—É ainda impotente para isso—opinou Frederico.


—Porque lhe falta organização—respondeu Nuno.


Júlia reentrou na sala para dizer que o café já fumegava sob as árvores e entre as flores, à espera.


—Já lá vamos, minha senhora!—informou Frederico. Estávamos aqui a desenvolver coisas muito sérias de sociologia e de política. Nuno é terrível. Tem uma argumentação, uma dialéctica!...


—É porque estou na verdade.


Depois, debaixo dos arvoredos, o diálogo sôbre o mesmo assunto ainda continuou, caloroso, vivo, na tarde serena co Depois, debaixo dos arvoredos, o diálogo sôbre o mesmo assunto ainda continuou, caloroso, vivo, na tarde serena como a doçura e a melancolia duma rosa de luz e de sêda que se desfolhasse lentamente. A sombra, caíndo, despregando-se molemente das ramarias, espalhava na areia das ruas movediças manchas rôxas. Um ar esperto e vitalizador circulava. O sol, descendo para o poente, refulgia e dourava tudo aquilo em que tocava.


Nuno surpreendia uma beleza nova nas vastas massas de homens que avançavam para as batalhas altivamente, sem o temor no coração, sem a palidez nas frontes—nesses soldados que conheciam a embriaguez do sacrifício total a um pensamento grande e nobre e que, no élan supremo das cargas, por entre o ciclone fulgurante da metralha, tinham a visão nítida e simples das coisas, sentindo a divina claridade das almas heróicas, a alegria prodigiosa da única verdade, que é a de lutar até à morte por uma liberdade mais ampla, por uma vida melhor, pelo esplendor das nacionalidades a que pertencem.


—Porque, não tenhas dúvidas! Desta convulsão saírá uma liberdade luminosa.


—Isto é—explicou Frederico—maior extensão do privilégio. Eu não sei, realmente, em que consiste essa liberdade que tam calorosos hinos te merece...


—Não sabes? Pois é fácil sabê-lo. A liberdade perfeita consiste na absoluta adaptação dos interêsses, das actividades e das energias humanas. No nosso tempo, a adaptação de que falo é essencial entre os indivíduos; entre a colectividade e as instituições; entre as instituições e os governos. Quando isto se conseguir, a existência será mais suave e mais bela...


Na espessura dum caramanchão de madre-silvas e clematites, um melro assobiava a sua canção em louvor do claro dia; no parque, a solidão tornava-se mais profunda; perto da varanda da casa, sob a acácia, um gordo gato rebolava-se ao sol.


—Não creio que esta guerra nos dê uma liberdade mais dilatada. Quando muito, fará apenas com que a tirania empregue uma subtileza maior—contestou Frederico.


—Não crês em nada. Perdeste a fé—replicou Nuno, bebendo o seu café a pequenos, espaçados goles.


—Penso, porêm—continuou Frederico sem o ouvir—que dela saírá alguma coisa de inédito. Com efeito, uma parte do culto ocidente sossobra e afunda-se com a hecatombe. Tombaram, sucessivamente, como as messes diante da fouce do segador, as mocidades da Europa, que era a renovadora do mundo consciente pelo génio artístico e scientífico. Essas mocidades haviam sido educadas pelos antigos, pelos vélhos, pelas personalidades formadas em ideias já conhecidas, semente de que germinariam as searas futuras. Deu-se, portanto, com êste salto brusco para o mistério, uma solução de continuìdade. Do saber guardado e arquivado nos livros, pouco subsistirá. A Europa nova tem de educar-se por si, de refazer uma consciência e uma sensibilidade, um espírito e uma razão, em bases tambêm novas...


—Há talvez alguma verdade nas tuas palavras—atalhou Nuno, surpreendido.


—Quem me diz que a Europa de àmanhã não terá de ir outra vez, como na Renascença, às civilizações extintas a procurar as suas inspirações?


—Não se anda para trás. A vida evolute numa progressão ascendente...—exclamou Nuno.


—Não falo em retrocesso: falo na busca duma fonte geradora de outros ideais. No entanto, se esta peregrinação dos povos doloridos ao passado se fizer, muitas coisas hoje decadentes reconquistarão o seu prestígio.


—Por exemplo...


—O Catolicismo que, depurado das suas imperfeições e das mentiras com que os homens o desfiguram, terá belos e gloriosos dias.


—Que fantasia!


—Homem, contempla a febre, a ansiedade, com que as nações que o tinham repelido, novamente se voltam para êle, procurando uma consolação, uma alegria interior que o racionalismo não lhes oferecia. Em França os templos transbordam de fiéis. Nas trincheiras, os padres combatentes pousam as espingardas para dizerem a missa aos seus camaradas que vivem debaixo da tempestade das granadas e da fuzilaria. Não será isto uma profecia? Nas terríveis calamidades, Deus é preciso para que o sofrimento seja menor...


Júlia voltou a aparecer com o filho ao colo. O seu perfil, de linhas tam delicadas, recortava-se límpidamente no disco, na auréola luminosa de que a claridade lhe envolvia a fronte.


—Santo nome de Maria! Pois ainda discutem a guerra?!...—interrogou ela.


—Sim! Temos feito, à volta de duas chávenas de café e de dois cálices de cognac, uma enorme quantidade de filosofia, minha senhora!—disse Frederico, levantando-se e indo ao seu encontro. Nuno tem sido duma eloqùência notável... Nem V. Ex.a calcula.


— Eu sei, eu sei! Quando êle se apaixona por uma questão, é um falador incorrigível.


Nuno, que tambêm se aproximara do grupo, todo afogueado do calor da controvérsia, acrescentou:


—Demos à língua, efectivamente. Desforrei-me da minha mudez consecutiva de meses. Frederico estava interessante...

A Morte Vence

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