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II
O GUERREIRO

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Retumba a festa na taba dos araguaias.

As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas da alegria.

Toda a tarde o trocano reboou chamando os guerreiros das outras tabas á grande taba do chefe.

Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacan, o maior chefe dos araguaias.

No fundo da ocara prezide o conselho dos anciãos, que decide da paz ou da guerra, e governa a valente nação.

Os anciãos, sentados no longo giráu, contemplam taciturnos a geração de guerreiros que elles ensinaram a combater, e têm saudades da passada gloria.

Suspenso em frente delles está o grande arco da nação araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da arara.

É a insignia do chefe dos guerreiros, a qual Camacan, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda a conserva, pois ninguem ouza disputal-a.

Eil-o, o velho chefe, embaixo do arco, que sua mão tantas vezes brandiu na guerra. Em pé, arrimado ao invencivel tacape, elle dirije a festa.

De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão dos guerreiros, colocados por sua ordem; primeiro os chefes das tabas; depois os varões; por ultimo os moços guerreiros.

Vêm depois os jovens caçadores que já deixaram a oca materna e estão impacientes de ganhar por suas proezas a honra de serem admitidos entre os guerreiros.

Mas para isso têm de passar pelas provas, e sua juventude não lhes consente ainda a robustez, que tamanho esforço demanda.

Todos invejam a gloria de Jaguarê que hontem era o primeiro entre elles, e hoje ali está disputando a fama aos mais valentes guerreiros.

Por detraz da estacada apinham-se as mulheres, que segundo o rito patrio não podem ser admitidas nas festas guerreiras.

De lonje acompanham silenciozas com os olhos, as velhas aos filhos, as espozas aos seus guerreiros, e as virjens aos noivos.

Exultam quando ouvem celebrar as façanhas dos seus; mas não ouzam murmurar uma palavra.

Entre ellas está Jandira, a doce virjem, cujos negros olhos não se cansam de admirar Jaguarê, seu futuro senhor.

Já lhe tarda o momento de ver aclamar guerreiro ao joven caçador, para ter a felicidade de servil-o como escrava na paz, e acompanhal-o como espoza ao combate.

No centro da ocara ergueu-se Jaguarê.

Defronte delle, Pojucan, no corpo que a ferida não abateu, mostra a grande alma, serena em face dos inimigos.

Camacan troou a inubia para ordenar silencio e o filho começou:

– Guerreiros araguaias, ouvi a minha historia de guerra.

«Depois que Jaguarê sofreu as provas do valor, partiu para conquistar um nome famozo.

«Deixando a taba, viu o falcão negro que despedia o vôo para as aguas sem fim, e Jaguarê disse:

«O falcão negro é o valente guerreiro dos ares; elle será a fama do guerreiro araguaia que atravessará as nuvens e subirá ao céu.

«Então Jaguarê marcou o vôo do falcão negro e seguiu por elle.

«O sol despediu-se e voltou; uma, duas, tres vezes. No ultimo sol Jaguarê encontrou um guerreiro da nação tocantim, senhora do grande rio.

«Guerreiros araguaias, quereis saber qual foi o campeão que Tupan enviou a Jaguarê para dar-lhe o nome de guerra?

«Elle aí está diante de vós.

«É o grande Pojucan, o feroz matador de gente, chefe da tribu mais valente da poderoza nação dos tocantins, senhores do grande rio.

«Vós que o tendes aqui prezente, vêde como é terrivel o seu aspeto, mas só eu que o pelejei conheço o seu valor no combate.

«O tacape em sua mão possante é como o tronco do ubiratan que brotou no rochedo e creceu.

«Jaguarê, que arranca da terra o cedro gigante, não o pôde arrancar de sua mão; e foi obrigado a despedaçal-o.

«Os braços de Pojucan, quando elle os estende na luta, não ha quem os vergue; são dois penedos que saem da terra.

«Seu corpo é a serra que se levanta no vale. Nenhum homem, nem mesmo Camacan, o póde abalar.

«Pojucan era o varão mais forte e o mais valente guerreiro que o sol tinha visto até áquelle momento.

«Foi este, guerreiros araguaias, o heróe que ofereceu combate ao filho de Camacan; e Jaguarê aceitou, porque logo conheceu que havia encontrado um inimigo digno de seu valor.

«Elle vos contempla, guerreiros araguaias. Se alguem duvida da palavra de Jaguarê e da força do guerreiro tocantim, chame-o a combate e saberá quem é Pojucan.»

O chefe tocantim lançou um olhar ameaçador á multidão dos guerreiros; mas nenhum ouzou aceitar o dezafio.

Pojucan alçou a mão em sinal de que dezejava falar; todos escutaram com respeito o heróe, ainda maior na desgraça.

– Guerreiros araguaias, ouvi a voz de Pojucan, vosso inimigo, que afronta as iras dos fortes e despreza a vingança dos fracos.

«Pojucan, guerreiro chefe da grande nação tocantim, jámais encontrou guerreiro que rezistisse á força de seu braço invencivel.

«Mas Tupan, cansado de ouvir celebrar em todas as festas o nome de Pojucan, como vencedor, emprestou sua força a Jaguarê, o maior guerreiro que já pizou a terra.

«Eu que senti o impeto de sua corajem, posso dizer-vos que só o sangue tocantim é capaz de gerar um guerreiro tão poderozo.

«Foi alguma virjem araguaia que vagando pela floresta encontrou Pojucan, e trouxe no seio fecundo a alma do grande guerreiro.

«Seu braço é como o corisco do céu; e a sua força como a tempestade que dece das nuvens.»

Calou-se Pojucan; e Jaguarê continuou o seu canto de guerra:

«Quando a sombra começava a decer da crista da montanha, Pojucan e Jaguarê caminharam um contra o outro.

«Toda a noite combateram. O sol nacendo veiu achal-os ainda na peleja, como os deixára; nem vencidos, nem vencedores.

«Conheceram que eram os dois maiores guerreiros, na fortaleza do corpo, e na destreza das armas.

«Mas nenhum consentia que houvesse na terra outro guerreiro igual; pois ambos queriam ser o primeiro.

«Foi então que o chefe tocantim ganhou na corrida a lança de duas pontas, que Jaguarê havia fabricado.

«Tres vezes seu punho robusto a brandiu, e tres vezes ella escapou-lhe da mão, como a serpente das garras do gavião.

«Mais uma vez o grande guerreiro investiu com o bote armado; e a lança, escrava de Jaguarê, cravou o peito do inimigo.

«Elle caiu, o guerreiro chefe, o grande varão dos tocantins, o valente dos valentes, Pojucan, o feroz matador de gente.

«E Jaguarê brandindo a arma da vitoria bradou:

«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupan.

«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro terrivel que tem por arma uma serpente.»

O trocano ribombou, derramando lonje pela amplidão dos vales e pelos écos das montanhas a pocema do triunfo.

Os tacapes, vibrados pela mão pujante dos guerreiros, bateram nos largos escudos retinindo.

Mas a voz possante da multidão dos guerreiros cobriu o imenso rumor clamando:

– Tu és Ubirajara, o senhor da lança, o vencedor de Pojucan, o maior guerreiro da nação tocantim.

«Os guerreiros araguaias te recebem por seu irmão nas armas e te aclamam forte entre os fortes.

«Os cantores celebrarão teu nome como os mais famozos da nação araguaia e Camacan terá a gloria de chamar-se pai de Ubirajara, como foi gloria para Jaguarê ser filho de Camacan.»

Quando parou o estrondo da festa e cessou o canto dos guerreiros, avançou Camacan, o grande chefe dos araguaias.

De um salto o ancião alcançou o arco da nação, insignia do chefe na guerra, e caminhou para Ubirajara.

O arco era de ubiratan, grosso como o braço do mais robusto guerreiro; a corda trançada de crautá tinha o corpo do dedo que a brandia.

Os mais possantes varões da nação araguaia a custo empunhavam o grande arco; mas só um tinha força para disparar a seta.

Era Camacan, o chefe dos chefes, que dirijia na guerra os guerreiros araguaias.

Assim falou o ancião:

– Ubirajara, senhor da lança, é tempo de empunhares o grande arco da nação araguaia, que deve estar na mão do mais possante. Camacan o conquistou no dia em que escolheu por espoza Jaçanan, a virjem dos olhos de fogo, em cujo seio te gerou seu primeiro sangue. Ainda hoje, apezar da velhice que lhe mirrou o corpo, nenhum guerreiro ouzaria disputar o grande arco ao velho chefe, que não sofresse logo o castigo de sua audacia. Mas Tupan ordena que o ancião se curve para a terra até dezabar como o tronco carcomido, e que o mancebo se eleve para o céu como a arvore altaneira. Camacan revive em ti; a gloria de ser o maior guerreiro crece com a gloria de ter gerado um guerreiro ainda maior do que elle.

Ubirajara tomou o arco que lhe aprezentava o pai e disse:

– Camacan, tu és o primeiro guerreiro e o maior chefe da nação araguaia. Para a gloria de Jaguarê bastava que elle se mostrasse teu filho no valor como é teu filho no sangue. Mas o grande arco da nação araguaia, Ubirajara não o recebe de ti e de nenhum outro guerreiro, pois o ha de conquistar pela sua pujança.

Disse, e arremessando no meio da ocara o grande arco, bradou:

– O guerreiro que ouze empunhar o grande arco da nação araguaia, venha disputal-o a Ubirajara.

Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou o passo.

O trocano reboou de novo, e no meio da pocema de triunfo, a multidão dos guerreiros proclamou:

– Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros araguaias; empunha o arco chefe.

Então Ubirajara levantou o grande arco, e a corda zuniu como o vento na floresta.

Era a primeira seta, mensajeira do chefe, que levava ás nuvens a fama de Ubirajara.

Os cantores exaltaram a gloria dos dois chefes: a do velho Camacan, que trocára a arma do guerreiro pelo bordão do conselho; e a do joven Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava tão grande, como fôra o pai na robustez dos anos.

Pojucan teve o consolo de ouvir seu nome, repetido muitas vezes e louvado a par com o de seu vencedor.

Os cantores celebraram depois os grandes feitos da nação araguaia, desde os tempos remotos em que os projenitores deixaram a grande taba dos Tamoios, seus avós.

Quando os nhengaçáras entoaram o canto do triunfo, vieram as mulheres com vazos cheios do generozo cauim e aprezentaram as taças aos guerreiros.

Jandira suspirou; ella era virjem, e como suas companheiras, não podia aparecer na festa dos guerreiros.

Sentiu não ser já espoza, para ter o orgulho de encher de vinho espumante, por ella fabricado, a taça de seu heróe e senhor.

O guincho agoureiro da inhúma resoava na mata, quando começou a dansa guerreira que durou até perto da alvorada.

Ubirajara: Lenda Tupi

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