Читать книгу A Lista Dos Perfis Psicológicos - Juan Moisés De La Serna, Dr. Juan Moisés De La Serna, Paul Valent - Страница 7
CAPÍTULO 1. O CONVITE
Оглавление― No início não havia nada, a não ser a luz. Pelo menos isso era o que me tinha dito, e também que isso seria, precisamente, o que veria nos meus últimos momentos. No entanto, aquilo não era o que eu esperava. Sentia-me estranhamente leve, como se todas as preocupações que me andavam a atormentar nestes dias se tivessem desvanecido. Nem sequer a pressa que me fizera acelerar tanto na estrada, tinha agora o mínimo interesse para mim. Sentia-me tranquilo, leve, sem preocupações. Parecia ver tudo agora com mais clareza e perspetiva. Na verdade, tinha desperdiçado demasiado tempo da minha vida com tanto esforço desnecessário em aparências e para conseguir alcançar mais do que os outros, que agora tudo me parecia tão banal. De repente lembrei-me dos melhores momentos da minha vida, quando estava com os meus pais, na altura em que eu ainda era uma criança; e na minha adolescência, com o meu primeiro amor; e até do meu casamento e dos meus filhos. E, em contrapartida, não havia nem rasto dos meus grandes êxitos pessoais ou pelo menos aqueles que eu considerava como tal, como a minha graduação, o meu primeiro emprego ou as minhas promoções. Também não vi nada do que tinha conseguido alcançar, como a minha casa, o chalé ou o carro. Apenas via episódios cativantes, cheios de amor e ternura, que me reconfortavam e me faziam pensar que aquilo era precisamente tudo o que realmente importava na vida – o amor incondicional – e não aquilo que alcançamos ou desejamos alcançar.
― Muito bem! Está a fazer progressos. Cada vez tem mais consciência do que lhe aconteceu, embora ainda pareça ter algumas falhas.
― O doutor acha que falar disto vai-me ajudar a lembrar?
― É a única forma que conheço. Quando alguém passa por uma situação como a sua, em que esteve tão próximo da morte, e além do mais, com as consequências que isso lhe deixou, é importante falar disso.
― Mas, porque é que não me lembro de mim? Porque é que não sei nada do meu passado, nem sequer da minha pessoa?
― Querido, tu tens de focar-te é naquilo de que te lembras, mesmo que sejam momentos após o acidente. Eu podia dar-te alguma informação sobre o relatório dos bombeiros que participaram no teu resgate, mas preferia que fosses tu a lembrar-te disso ― indicou a mulher que estava sentada ao seu lado.
― E se eu nunca chegar a recuperar a memória? ― Protestou, enquanto se remexia naquele sofá estofado, desgastado pelas horas que ali haviam passado as centenas de pacientes que, anteriormente a ele, se tinham recostado para escutar o doutor. ― E se não voltar a lembrar-me de quem sou?
― Normalmente isto é superável, apenas tem que ter muita paciência e sobretudo confiança na natureza humana, já que, embora nos pareça inacreditável, quase tudo se soluciona por si mesmo, no seu devido tempo.
― Já aconteceu? Refiro-me a um caso como o meu que se tenha solucionado.
― Não com as mesmas características ― afirmou o psiquiatra enquanto acabava de fazer algumas anotações no caderno que utilizava para registar a sessão.
― Então como pode ter tanta certeza de que irei recuperar a memória? ― Insistiu o paciente enquanto se endireitava, ao escutar o tom melodioso do relógio, assinalando o fim da sessão.
― Não se desespere, tudo a seu tempo. Por agora seria bom que se focasse nesses sentimentos que me descreveu, que de certa forma são muito positivos. Tomara que tivesse sido assim tão positivo antes. ― Disse o psiquiatra com um leve sorriso, enquanto colocava a esferográfica, que usava para escrever naquele caderno, atrás da orelha esquerda.
― Bem, farei o que me diz, já que, na verdade, é a única esperança que tenho de saber quem sou ― comentou enquanto se levantava e se dirigia ao psiquiatra para se despedir.
― Então, continuaremos a nossa conversa na próxima semana ― ele disse enquanto apertava a sua mão e o conduzia à porta, dando-lhe uma leve pancadinha nas costas.
Abrindo a porta, despediu-se deles com um pequeno gesto de mão, observando-os enquanto abandonavam o seu consultório. Já com a porta fechada, esperou que se tivessem passado alguns segundos e expirou vigorosamente.
“Que difícil que é para alguns deles!”, pensou para si enquanto regressava à sua secretária, onde o aguardava um sofá confortável, ricamente decorado com estampados floridos e um acabamento em madeira de mogno, que lhe dava um certo ar de dignidade, tal e qual como ele havia desejado quando o adquiriu naquele leilão de caridade.
Presumia-se que tinha pertencido a alguém da alta sociedade, a um desses nobres de Solera talvez, nada mais, nada menos do que a um visconde ou algo assim parecido… mas sem certezas disso, o que poderia afirmar era que quando se deixava cair sobre a sua almofada macia e depositava os seus cotovelos sobre os braços do sofá, sentia-se bastante importante.
“Quase que posso imaginar, quando semicerro os olhos, como seria a vida num palácio, onde não teria que lutar para ganhar o pão de cada dia e cuja única tarefa seria passear pelos campos da propriedade para me certificar de que estava tudo em ordem. Uma vida privilegiada destinada a uns quantos, filhos de berço de ouro, que eternizam nos seus descendentes uma casta real.”
Estava concentrado nos meus pensamentos quando o telefone tocou:
― Doutor, já não há mais pacientes por hoje, os outros dois que faltam cancelaram durante a tarde por diversas razões ― disse a voz da secretária do outro lado do auricular.
― Marcou-lhes consulta para outro dia? ― Perguntei surpreendido.
― Sim, poderá recebê-los na próxima semana, como é habitual.
― Perfeito, então se quiser, terminamos por hoje, continuamos amanhã. Muito obrigada.
― Com certeza! Então, até amanhã.
Desliguei, ainda surpreso com aquela casualidade, que me deixava a meio da tarde sem clientes para atender. Era normal que ao longo da semana tivesse um ou dois cancelamentos, quase sempre por motivos pessoais ou devido a algum imprevisto, mas não dois de seguida.
Peguei no jornal e abrindo-o com alguma ansiedade, procurei por alguma informação relevante por entre aquele emaranhado de notícias, umas mais chamativas do que as outras.
― Não pode ser, ninguém deixa uma consulta para ir ao balé… muito menos por isto, uma estreia de cinema a meio da semana também não é caso para tanto… Ah, muito bem! Agora compreendo, o final da Liga Juvenil. Provavelmente têm algum filho na equipa local ou então são grandes fãs deste tipo de desporto.
Apesar de não compartilhar daquele passatempo que, em alguns casos, chegava ao fanatismo, concordava que houvesse uma atividade em que as pessoas se pudessem libertar das suas inibições e que se identificassem com um grupo a que normalmente não pertencessem, longe das suas casas ou dos seus trabalhos.
Era reconfortante ver como as pessoas se reuniam nos cafés a acompanhar as vitórias das suas equipas e a sofrer por cada passe mal feito ou por cada remate não realizado; e igualmente, explodir de emoção quando o ponta de lança roubava a bola, avançava por entre os seus adversários e conseguia finalmente marcar golo.
Mas se isso era saudável e até purificador, libertando assim emoções primárias, o que mais me chamava à atenção era o efeito que aquilo provocava nas pessoas quando jogava a equipa nacional; aquilo era uma repulsa de sentimento nacionalista, de fraternidade sobre as diferenças, de unidade perante as adversidades.
Algo que pude comprovar e que me surpreendeu quando viajei para o estrangeiro, foi quando me vi diante de pessoas que não conhecia de lado nenhum e que me trataram como um irmão quando havia um jogo em que jogava a equipa nacional, independentemente do país onde me encontrasse.
Uma explosão de alegria e emoção que parecia ter levado os meus dois pacientes desta tarde a trocar as suas consultas pelos seus passatempos.
Naquele momento, pude ouvir a porta da entrada fechar-se. A minha secretária tinha saído de forma tão sorrateira, quanto ela era. Nunca queria interromper-me, pois por vezes ficava a rever casos, tirando anotações nos relatórios dos pacientes que acabava de atender, ou a consultar algum desses livros de psiquiatria volumosos que se acumulavam nas estantes da biblioteca.
― O saber não ocupa espaço! ― Dizia-lhe eu, quando ela me recriminava por não fazer um intervalo de descanso entre um paciente e o outro. Penso que, por isso, já não se preocupava em avisar-me que iria sair, mesmo que fosse só para ir buscar um café da máquina à receção.
Olhei pela janela que dava para um parque mais próximo e reparei que tinha começado a chuviscar. Eram cinco horas da tarde, mas o sol, parecia apressado hoje, pois quase que já não se o via na rua, por entre aquelas nuvens negras que se tinham apoderado daquele céu limpo com que amanheceu.
“Vou esperar que clareie um pouco e então depois saio”, disse para mim mesmo enquanto regressava à minha poltrona. Pus-me a observar ao meu redor, por entre aquelas quatro paredes, onde tinha passado uma boa parte da minha juventude, tentando ajudar as pessoas a melhorar as suas vidas, naquilo que elas se permitiam a si mesmas fazer.
Era reconfortante ver como algumas delas com tão pouca ajuda conseguiam avançar e superar aqueles pequenos momentos difíceis da vida que nos atrasam no nosso desenvolvimento; e, por outro lado… havia outras que por muitas sessões que tivessem eram incapazes de se dar conta da sua situação e do quão prejudicial isso era para elas próprias e para as suas relações com os outros.
“Ah! Se as paredes falassem!”, pensei para mim. Fechei o relatório do paciente que tinha acabado de atender, após fazer algumas anotações sobre o seu progresso e levantei-me para o guardar no ficheiro que tinha separado para todos os clientes que estava a atender de momento, deixando as gavetas de baixo para os que já tinham superado ou abandonado a terapia.
Estava à procura do lugar onde colocar a pasta do paciente com base no seu apelido quando a campainha tocou.
“Que estranho! ― Disse para mim mesmo. ― A minha secretária tem a chave. Talvez seja um dos dois pacientes que cancelaram. Às tantas, o jogo foi cancelado devido à chuva e vem recuperar a hora da consulta”, pensei enquanto saía da sala, e atravessando a receção, aproximei-me da porta.
Abrindo-a apressadamente, vi que do outro lado da porta encontrava-se uma senhora de idade, um pouco desleixada, que começava a escorrer água sobre o tapete da entrada.
― Pode entrar, minha senhora ― eu disse com suavidade enquanto lhe cedia passagem e afastava-me da frente da porta.
― Obrigado meu jovem, e desculpe por vir assim toda molhada.
― Não se preocupe, ninguém fazia ideia de que o tempo iria mudar assim tão depressa ― comentei, justificando o facto de não estar a usar guarda-chuva, uma vez que a única coisa que usava para se proteger, era um simples lenço na cabeça.
― Onde é que posso deixar isto? ― Perguntou, enquanto retirava o lenço, em gesto de o querer escorrer.
― Por aqui tem uma pequena casa de banho onde pode escorrê-lo, se é isso que quer ― disse-lhe enquanto a indicava e fechava a porta atrás de si.
― Obrigado, peço desculpa pelo incómodo.
― Não há problema.
A senhora entrou na casa de banho e ali escorreu, sobre o lavatório, uma boa parte da água que tinha conseguido bloquear com o lenço, evitando assim ficar toda ensopada.
― E o casaco? ― Perguntou ao sair da casa de banho.
― Eu coloco-o no cabideiro ― Respondi, enquanto o recolhia.
― É muito amável. ― Insistiu. ― Já agora, sabe se o doutor pode-me atender hoje? ― Perguntou com uma voz suave.
― Claro que sim, sou eu o doutor. ― Respondi com um leve sorriso.
― Ah! Mas você ainda é tão jovem, até parece que foi ontem que saiu da universidade ― comentou contrariada.
― É que me conservo muito bem, sabe como é, um pouco de exercício diário e uma boa alimentação.
― Ah! Então vai ter que me dar a receita, pois a mim os anos não me têm tratado tão bem ― protestou enquanto colocava a mão sob o ombro, creio que seria por se recordar de alguma fratura que tivesse tido ou algo assim. ― Bem, onde é que podemos conversar? ― A senhora perguntou com voz impaciente.
― Pode ser no meu escritório. ― Indiquei, surpreendido por aquela pergunta.
― Prefiro ali. ― Disse, apontando para o sofá da sala de espera.
― Pois então se prefere aí…
― Sim, obrigado. ― Ela disse, dirigindo-se para a poltrona.
Segui-a e sentei-me na cadeira da secretária, que coloquei de lado para poder ficar de frente para ela.
― Pode dizer-me a que é que se deve a sua visita?
― Sabe o que é doutor, é que tem noites em que não consigo dormir e não entendo o porquê, mas isso está a começar a afetar-me. No início, apenas me sentia esgotada, e bom, isso até era tolerável, mas agora nem sequer posso sair à rua, porque num instante já não sei onde estou nem o que vou fazer. E se entro num café para tomar alguma coisa, adormeço sobre a mesa.
― Já consultou o seu médico de família para ver o que tem?
― Já fui a todos os especialistas, mas nenhum me soube dizer a que se deve isto.
― Há alguma coisa que o possa ter provocado? Refiro-me às primeiras vezes em que se apercebeu deste problema. Sabe se houve alguma alteração na sua vida, que em consequência a faça sofrer disso?
― Bom, nada de que me lembre, ou talvez sim, não sei se tem alguma coisa a ver, é uma caixa que encontrei num parque. Não me leve a mal, mas com o pouco que ganho da minha reforma, às vezes recorro ao que encontro a ver se me pode ser útil. Sei que acumulo demasiado, mas não sabe o que passei na minha juventude.
― Acumula? ― Perguntei surpreendido com aquele comentário.
― Sim, você sabe, tem um nome muito estranho, mas não o consigo evitar. Tudo o que encontro tem um lugar especial na minha casa, sei exatamente onde colocar.
― Sofre de Síndrome de Diógenes?
― Sim, foi algo do género que os senhores dos Serviços Sociais me disseram, daquela vez que foram esvaziar o meu apartamento. Consegue imaginar… você passar uma vida inteira a guardar coisas, para que da noite para o dia deixem tudo vazio, sem um mínimo objeto?
― Mas você sabe que isso não é saudável, não sabe? ― Salientei, estranhando o rumo que aquela conversa estava a ter.
― Sim, eu sei, mas sou muito limpinha, embora um pouco descuidada, mas sempre tive tudo organizado, e nunca ninguém se tinha queixado.
Não quis aprofundar mais naquilo, primeiro porque parecia ser um tema doloroso para a senhora e pelo qual se sentia um pouco envergonhada, e segundo, porque não entendia o que é que aquilo tudo tinha a ver com as insónias, o que me levou a tentar aprofundar um pouco mais esse segundo aspeto.
― E então? Que relação acha que existe entre a sua falta de sono e esse objeto que encontrou?
― Ah! Sim, isso ― respondeu um pouco confusa. ― Sabe, eu acho que é valioso, mas nem sequer me atrevi a abri-lo. Está tão bem embrulhado que me deu pena rasgar o papel que tem em volta.
― Mas se não sabe o que é, como é que isso lhe pode tirar o sono? ― Respondi, deixando em evidência a incoerência das suas palavras.
― Precisamente por não saber o que é, já viu se são uns sapatos novos?
― Uns sapatos? ― Perguntei confuso.
― Sim, ou um lindo lenço para a cabeça. Nem sabe a falta que me faz. ― Respondeu emocionada com um largo sorriso.
― E porque não abre para ver o que é? ― Indiquei, perplexo.
― Porque está coberto com este papel de embrulho tão bonito.
― Como o de um presente? ― Perguntei, tentando obter mais informações daquele objeto.
― Sim, isso mesmo, e de cor vermelha, um pouco vistoso demais para o meu gosto, e nota-se que tinha um laço, mas agora já só resta um pequeno pedaço ali colado.
― Mas, havia alguém lá quando o encontrou?
― Não, não, até fiquei com ele um pouco na mão enquanto me pus a observar, mas ninguém que passava por mim parou para o reclamar.
― E o que quer que eu faça? ― Perguntei um pouco confuso com a situação.
― Que me ajude a dormir.
― E com o embrulho? ― Insisti naquele detalhe.
― O que tem o embrulho?
― O que vai fazer com ele?
― Ah! Pois, não sei, vou deixá-lo onde estava. Acha que faço mal?
― Não, de maneira nenhuma, é que pensava que, como isso poderia ser a origem da sua insónia…
― Sim, diga… ― interrompeu-me, prestando muita atenção.
― Pois bem, se assim for, creio que tudo voltará à normalidade se se desfizer do embrulho.
― Acha que sim?
― Com certeza! ― Afirmei com convicção, embora no meu interior não tivesse tanta certeza.
A senhora olhou para mim com pena, como se aquela notícia lhe tivesse causado muita dor ao chegar ao coração.
― O que acha que devo fazer?
― Não sei, mas para resolver a situação, terá de o abrir.
― Ao embrulho?
― Sim, ao embrulho ― esclareci.
― Mas, como vou abrir um presente que é para outra pessoa?
― Se é você que o tem então ele nunca chegará ao seu destinatário, e provavelmente a pessoa já o deve ter dado como perdido ― comentei, tentando evidenciar o quão absurda era toda aquela situação.
― Prefiro que seja você a ficar com ele ― afirmou a mulher depois de pensar um pouco.
― O quê? ― Perguntei, surpreendido com a decisão da mulher.
― Sim, assim você poderá dizer-me o que é e voltar depois a embrulhá-lo, e eu deixá-lo-ei onde o encontrei. ― Respondeu com um sorriso nervoso.
― Mas se eu o abrir…
― Com muito cuidado ― interrompeu a mulher, com os olhos arregalados e um olhar penetrante.
― Sim, está bem, mas se eu o abrir, não perderá o seu encanto?
― Não, você vê o que tem no seu interior, diz-me o que é e depois volta a fechá-lo, tal como estava. Penso que assim já poderei dormir melhor.
Pessoalmente, não estava nada convencido que a solução fosse aquela, mas era óbvio que a senhora estava disposta a tomar-me o resto da tarde se não atendesse ao seu pedido.
Na verdade, nunca tinha passado por uma situação tão absurda e desconcertante como aquela. “Podia ela mesma abrir o embrulho sem necessidade de vir à minha consulta!”. Mas como queria dar o assunto por terminado, disse-lhe:
― Deixe-me ver esse presente!
A senhora retirou uma caixa branca com uma tampa vermelha, e um laço da mesma cor, de dentro de um saco de supermercado. “Realmente parece uma caixa de sapatos”, pensei para mim.
Retirei, com cuidado, o laço que ainda tinha e entreabri a caixa, de costas para a senhora, tal como me tinha pedido. Qual não foi o meu espanto ao ver o que continha no seu interior.
― O que vem a ser isto? ― Perguntei em voz alta, entre um tom de alarme e surpresa.
― São uns sapatos? ― Perguntou a senhora, ansiosa e emocionada.
― Não, é um anel de noivado e um convite para um espetáculo de balé.
― De balé? ― Perguntou a senhora, desiludida com as minhas palavras.
― É o que parece, além disso, tem uma dedicatória. “Embora não nos conheçamos ainda, tenho a certeza de que os nossos caminhos se cruzarão”.
― Não disse que era um anel de noivado? ― Ressaltou a mulher, tentando olhar por entre as mãos, pois tinha tapado os olhos para não ver o embrulho.
― Sim, porquê? ― Perguntei sem entender a sua expressão.
― Como pode ser um anel de noivado se não conhece a outra pessoa? ― Questionou a senhora.
― Não faço a mínima ideia! ― Eu disse desnorteado, sem saber se aquilo se tratava de alguma brincadeira ou algo do género.
Tudo me levava a crer que ninguém tinha perdido aquela caixa, mas sim, que a tinham deixado lá de propósito para que alguém a encontrasse. Uma espécie de “mensagem na garrafa”, como se lê nos livros. Mas o convite para o balé era o que mais me intrigava. Seria um encontro às cegas? Mas quem é que estaria disposto a ir a um encontro com alguém que nunca tinha visto?
― Que desilusão! ― Afirmou a senhora, preparando-se para abandonar a consulta. ― Esperar tanto tempo para isto.
― Bom, pense pelo lado positivo, agora que já sabe o que é, já vai poder dormir melhor. ― Afirmei com um sorriso forçado.
― Pois já! Mas se ao menos fossem uns sapatos, mesmo que não fossem o meu número ― protestou a senhora.
― Tome a sua caixa! ― Eu disse com a intenção de a devolver uma vez que já estava fechada tal e qual como estava antes.
― Não a quero. Que bela perda de tempo! Adeus ― concluiu a senhora, enquanto fechava a porta atrás de si.
Fui atrás dela, com a intenção de que voltasse para levar a caixa consigo e a colocar de volta no lugar onde a tinha encontrado, mas a senhora não quis mais saber do assunto, e metendo-se no elevador, fechou as portas de ferro e pressionou o botão para descer.
Aquela foi a última vez que vi aquela mulher estranha, que em vez de pedir ajuda para o seu problema de acumulação de lixo, tinha perdido o sono por causa de uma caixa, que só estava associada ao prazer.
“Boa, e eu a pensar que tinha acabado!”. Disse para mim próprio enquanto regressava ao escritório, sentindo-me satisfeito por ter feito uma boa ação por uma desconhecida. “Agora já pode dormir tranquila”.
Olhei pela janela do escritório quando o vistoso relógio de parede soou. “Caramba! Já é tão tarde”, pensei enquanto levava as mãos ao casaco para me certificar de que tinha as chaves do escritório.
“Agora sim terminei por hoje”, disse a mim mesmo enquanto olhava ao meu redor para me certificar de que estava tudo em ordem antes de deixar o meu local de trabalho, que era como uma segunda casa para mim. Se bem que, na verdade, passava mais tempo ali do que em casa.
Aquelas quatro paredes, carregadas de títulos e de livros, tinham-se tornado tão habituais, que às vezes nem sequer me dava conta de que ali estavam. Só quando alguma coisa estava fora do lugar, é que parecia que se tinha quebrado o ponto de equilíbrio da sala até que a voltasse a colocar no seu devido lugar.
De repente, já com a mão no interruptor, prestes a apagar as luzes, vi sobre uma das cadeiras do escritório aquela caixa de embrulho que tinha desiludido a minha última visita.
“Às vezes é mais importante a ilusão que temos das coisas do que aquilo que realmente podemos esperar delas”, pensei para mim, tendo em conta as circunstâncias em que aquela senhora tinha perdido o sono fantasiando sobre o conteúdo daquela caixa.
“Se ao menos tivesse espreitando antes, teria evitado muitas voltas na calma”, refleti sobre o que aquela caixa tinha representado para aquela mulher, “mas entendo que, por vezes, a ilusão seja a única coisa que nos resta. E perdê-la talvez seja o mais difícil”.
Fiquei a observar a caixa, pensativo, e disse “E agora?”. Não sabia se devia desfazer-me dela ou deixá-la ali a ver se a senhora voltava no dia seguinte para a levar. Curioso, voltei para o escritório, aproximei-me daquela caixa tão bem embrulhada e chamativa, e voltei a abri-la.
Procurei certificar-me se havia mais alguma coisa entre o papel de oferta e aqueles três objetos, mas não encontrei nada. Depois verifiquei se algum dos bilhetes, o do espetáculo e a nota, tinham mais alguma coisa escrita para além do que já tinha lido antes, e surpreso, reparei que a data e hora do espetáculo de balé era para hoje, dentro de uma hora.
“Bem, pelo menos sei onde posso encontrar o dono desta caixa! É melhor devolvê-la, embora não me tenha ficado esclarecido a sua intenção ao deixar a caixa abandonada à sua sorte. Por isso, vou ao balé!”. Eu disse decidido, enquanto pegava na caixa, fechava-a da melhor forma possível e saía do escritório, apagando as luzes atrás de mim.
“Eu a ir ao balé? Há que anos que não vou a um evento artístico como este…muitos anos mesmo”, eu disse tentando-me lembrar da última vez que tinha ido a um. Talvez me tivesse focado demasiado nos meus pacientes, a quem acudi como se se tratasse de um encontro, e quando se atrasavam sem me avisar, ficava nervoso.
Já fazia tanto tempo que não tirava férias, visto que, por diversas vezes, quando regressava de uma viagem de lazer, encontrava um paciente que tinha piorado, pelo simples facto de não ter recebido aconselhamento semanal comigo.
Por isso mesmo, e pela minha forte convicção de que a saúde devia estar em primeiro lugar, fui aos poucos abandonando as viagens de lazer de que tanto gostava. Não tanto pelo facto de poder apanhar banhos de sol numa praia paradisíaca, até porque a minha pele era clara e queimava facilmente quando exposta ao sol, mas para poder fazer visitas culturais a lugares diferentes, aventurando-me pelos seus museus.
Embora que para alguns aquilo pudesse ser enfadonho, para mim era enriquecedor ver como pensavam e atuavam em outras latitudes, com costumes e formas de expressão tão singulares e características. Mas bem, tudo isso tinha ficado para trás e tudo o que restava agora era algum álbum de fotos ou coisa parecida.
― Táxi! ― Gritei ao sair do edifício, depois de me ter despedido do porteiro, com o qual tinha desenvolvido uma boa relação, pois embora não me quisesse meter nos seus assuntos pessoais, vez por outra, procurava-me para o consultar a respeito disso.
Por vezes, custava-me manter a distância dos outros, principalmente quando tinham conhecimento da minha profissão e queriam consultar-me devido a algum caso pessoal ou de algum familiar.
A verdade é que não os podia censurar, embora por vezes fosse desconfortável ter que me negar a atendê-los no meio do corredor ou na rua, sem se darem conta de que existe todo um protocolo estabelecido para que cada paciente usufrua de um tempo, espaço e tranquilidade durante a sua consulta.
Jamais ocorreria a alguém pedir a um cirurgião que lhe operasse no meio da rua, pois era exatamente isso que me pedia, que “operasse a sua alma” em qualquer sítio.
― Táxi! ― Voltei a gritar, enquanto levantava a mão.
― Para onde quer ir? ― Perguntou o condutor quando entrei no seu carro.
― Ao balé, para ver esta obra ― referi, enquanto lhe mostrava o bilhete que tinha deixado fora da caixa, a qual eu levava comigo.
― Vai ser uma longa noite? ― Interrogou o taxista com um sorriso matreiro.
― O quê? ― Falei, estranhando o seu gesto.
― Esta noite vai engatar, de certeza ― respondeu, piscando-me o olho.
― Está a referir-se à caixa? ― Perguntei, reparando que não tirava o olho dela ― pois saiba que não é minha e que tenho que a devolver ao dono, embora não saiba quem ele é.
― Claro! Claro! ― Disse o motorista enquanto remexia na sua camisa ― Olhe, esta é a minha mulher, já estamos casados há dez anos e conhecemo-nos num sítio como esse. Quer dizer, foi numa ópera, embora não me agradem essas coisas, ela adora tudo isso de se aperaltar e ir a sítios elegantes. Estive quase três meses a poupar para poder ter uma noite inesquecível, e no fim, deu tudo certo. A única coisa que lhe disse foi para se vestir de forma elegante e tirar a tarde de folga no trabalho. E foi lá que lhe fiz a derradeira pergunta, e desde então, estamos juntos até hoje ― comentava o taxista enquanto olhava com ternura para a foto desgastada da sua mulher.
― Bom, eu vou fazer perguntas, mas não vai ser essa ― esclareci, embora sem sucesso.
― Chegámos. ― Disse o taxista com um largo sorriso no rosto. ― Boa sorte!
― Sim, obrigado ― respondi sem querer entrar em mais detalhes acerca daquela tarde anormal, em que tinha aceitado consultar de improviso uma mulher com uma caixa, que eu agora trazia comigo e que me levava até um espetáculo de balé que eu desconhecia.
Não é como se eu fosse fã desta arte, mas em certas ocasiões, sobretudo quando ia a congressos, organizavam-se eventos culturais lá perto, dignos de se contemplar pelo grande esforço feito por parte dos seus organizadores.
Estava diante da porta de um teatro, algo que me chamou à atenção, pois não era habitual haver uma apresentação de balé num lugar daqueles. E chegada a hora de entrar, apresentei o bilhete e o porteiro disse:
― Boa noite! Esperávamo-lo com algum nervosismo.
― A mim? ― Perguntei, surpreso com aquela saudação tão invulgar.
― Aguarde aqui, por favor, enquanto aviso os restantes.
E tendo dito isto, abriu uma porta interna e gritou:
― Já chegou! Preparem-se todos.
― Todos quem? ― Voltei a perguntar sem saber bem a que se devia aquela agitação.
― Venha, pode entrar! ― Disse uma jovem, abrindo uma porta lateral que impedia a passagem do lado da janela de acesso.
― Obrigado, mas não estou a perceber a que se deve tanta atenção ― eu disse com um ar de surpresa, misturado com cansaço.
― Venha comigo! ― Continuou a rapariga enquanto nos esgueirávamos por uma passagem estreita que ia dar a uma pequena sala.
― Chegue aqui, por favor ― disse outra pessoa, através de um dos assentos.
― Por onde é que posso descer? ― Perguntei ao ver que me encontrava no meio de um pequeno cenário, enquanto a rapariga se retirava.
― Lá ao fundo, do seu lado direito, há três degraus que não são muito grandes ― respondeu a pessoa que se levantava do assento.
Quando dei com o lugar, disse para a pessoa que me recebera com a palma da mão aberta:
― Qual é o meu lugar?
― Qualquer um! ― Afirmou com um largo sorriso.
― Como assim? ― Perguntei surpreendido com aquilo.
― Pode sentar-se onde lhe apetecer. Agora preciso retirar-me ― dizia enquanto subia para o cenário de onde tinha descido e desaparecia pelo mesmo lugar que a rapariga que me tinha trazido até ali.
― Senhoras e senhores! Boa noite, antes de mais nada, quero agradecer a vossa presença, espero que esta obra seja do vosso interesse. E sem mais demoras, comecemos. ― Disse o bilheteiro que agora envergava uma jaqueta verde e umas calças de malha da mesma cor.
Olhei em volta para ver se havia mais espetadores naquela sala, mas não consegui ver ninguém. Aquilo surpreendeu-me, pois não percebia o que é que se estava ali a passar. Tinha a certeza de que estava no lugar certo, que a morada e inclusive o bilheteiro, que tudo isso estava correto. À exceção do que se tinha passado das portas para dentro.
No palco, aquelas três pessoas apresentavam e dançavam sucessivamente, fazendo trocas constantes de roupa e de entoações.
De início custou-me um pouco perceber qual era a peça, mas logo dei-me conta de que estava diante de uma das obras mais representadas da história. Uma obra classificada como a mais dramática e a mais complexa. Repleta de amor, ódio, vingança e desejo, mas que era rapidamente conhecida pela famosa frase “Ser ou não ser! Eis a questão”.
Hamlet, uma das obras trágicas mais conhecidas de William Shakespeare, mas adaptada a um pequeno povo criado em palco, em vez de refletir a nobreza dinamarquesa das suas personagens originais.
O enredo não se distanciava muito dos dramas atuais, embora os bailarinos quisessem manter aquele traje medieval e linguagem aprimorada e pouco direta da obra original.
Além disso, como os atores-bailarinos eram poucos, eles próprios representavam várias personagens, sendo que a única coisa que os distinguia uns dos outros era a indumentária que usavam. Assim, e para que fosse evidente a troca, os dois rapazes, além de fazerem as personagens masculinas, também faziam as personagens femininas.
Em apenas meia hora tinham terminado e eu fiquei perplexo com aquilo. Não era que me lembrasse da obra por inteiro, mas sabia que tinha três ou quatro atos, cada um mais extenso do que o outro em termos de tempo, mas isto, tinha sido como um “Hamlet expresso”.
Quando os três bailarinos ficaram de pé no palco, com os braços para cima após dobrarem o corpo numa vénia, baixarem a cabeça quase até aos joelhos e deterem-se a olhar para mim, tive que aplaudir.
― O que achou? ― Perguntou o ator-bailarino que tinha feito de bilheteiro.
― Pareceu-me bem ― eu disse, tentando recuperar da impressão que me causara.
― A sério que gostou? ― Perguntou nervosa a atriz.
― Bom, na sua essência pareceu-me bem, embora tenha faltado o mais importante ― referi sem querer desanimá-los.
― O mais importante? ― Perguntou um terceiro.
― Sim, toda a introspeção dos personagens, principalmente do príncipe Hamlet. Faltou mais um pouco de autodiálogo.
― Eu sabia! ― Falou o primeiro ator.
― Tem calma! ― Disse o terceiro.
― Como acha que poderíamos melhorar? ― Perguntou a atriz.
― Não sei, não é como se fosse um entendido no assunto, nem nada disso.
― Era isso que queríamos, daí o convite ― indicou a mulher.
― Não estou a perceber! ― Respondi, confuso com aquela afirmação.
― Deixámos um convite no parque para que, quem quisesse, pudesse assistir de forma anónima à nossa “ante-estreia”, para assim ficarmos a conhecer de antemão a impressão que a nossa obra causa no espetador. ― Esclareceu o primeiro ator.
― Bem, talvez eu não seja tão imparcial como desejariam, sou psiquiatra e devido à minha profissão, tenho o costume de analisar tudo aquilo que oiço e vejo. É um hábito profissional! ― Esclareci com um certo tom de resignação.
― Então! Gostou? ― Insistiu a mulher que estava vestida com um meias de rede e um tutu, ambos negros.
― Sim, achei interessante a abordagem que fizeram, mas pareceu-me demasiado curto, e faltaram algumas cenas importantes da obra.
― É essa a ideia ― afirmou o terceiro ator com um tom desafiante. ― Se queria ver uma obra clássica, enganou-se na sala. Nós somos ousados, inovadores, e não queremos repetir o mesmo que os outros.
― Apesar disso, creio que um pouco mais de introspeção seria bom para o público refletir sobre a natureza humana, tal como pretendia Shakespeare ― voltei a indicar.
― Reflexão? Não é isso que procuramos, queremos emocionar, impressionar, fazer perder o fôlego… que quando sair daqui, se lembre do que viveu como uma experiência única. Não queremos cá reflexões! ― Insistiu o terceiro ator com um tom aborrecido.
― Bem, apenas estou a dizer o que penso, creio que é um clássico e há que respeitar algumas coisas da obra original.
― Agradecemos o seu tempo ― afirmou a mulher enquanto descia os três degraus do palco. ― Já agora, isto é seu? ― Disse, entregando-me a caixa que me tinha conduzido até esta experiência tão imprevisível. ― Sim, é seu. ― Afirmou. ― Embora esperássemos que viesse acompanhado.
― Acompanhado? ― Perguntei surpreendido.
― Sim, mas suponho que não tinha ninguém com quem vir ― afirmou com um tom sarcástico o terceiro bailarino ao descer do palco.
― A verdade é que, se soubesse ao que vinha, poderia ter convidado alguém, mas como não dizia nada…
― Como nada? ― Perguntou o primeiro ator, que fizera de bilheteiro. ― Está escrito o lugar, a hora e até que era um espetáculo de balé.
― Sim, é verdade, mas não me imaginei num sítio como este, vi no jornal que anunciavam uma companhia de balé que atuaria hoje, e pensei que eram vocês.
― Antes fosse! ― Disse a mulher. ― Nem sequer somos uma companhia, apenas um grupo de amigos que resolveu oferecer um pouco de arte ao povo, mas isso sim, preferimos que seja de qualidade e que transmita emoção ao espetador.
― Ouviu bem? Emoção! E não diálogo! ― Afirmou o terceiro bailarino, enquanto se sentava do meu lado.
― Bom, parabéns, continuem assim. ― Eu disse, tentando acabar com aquela situação desconfortável, pois era a primeira vez que ia a uma dessas representações alternativas, ou lá como se chamava.
Raramente ia a lugares artísticos, mas quando o fazia, procurava sempre que fossem obras de companhias internacionais.
― Espere! ― Disse a jovem, segurando-me pelo braço do casaco. ― O que é isto?
― O quê? ― Perguntei surpreso.
― Este anel e este bilhete? O que quer isto dizer? ― Perguntou desconfiada enquanto o retirava da caixa.
― Não faço a mínima ideia, veio com a caixa ― afirmei sem saber o motivo da sua desconfiança.
― Deixámos a caixa no parque para que quem quisesse nos pudesse vir ver e assim ficarmos a saber a sua opinião, mas não colocamos isto lá ― referiu o primeiro ator.
― Pois posso garantir-lhes que isso já estava aí dentro quando recebi a caixa ― insisti.
― Tome! ― Disse a rapariga, entregando-me ambos os objetos.
― E o que quer que faça com isto? ― Perguntei contrariado ao ver que não lhes pertencia.
― Não sei, mas não é daqui. Agradecemos a sua visita e a sua opinião acerca da nossa representação ― afirmou a rapariga enquanto me indicava o palco com um gesto de mão.
― Acompanhe-me à saída ― falou o terceiro bailarino, enquanto caminhava diante de mim.
Segui-o até à saída, atravessando o caminho estreito e após cruzar a porta, voltei-me e a única coisa que recebi daquele homem foi:
― Mais diálogo? O que é que você sabe de balé?
Após dizer isto fechou a porta e deixei-me ficar ali por uns segundos a observá-la antes de me voltar e olhar à minha volta.
A rua estava quase toda às escuras, à exceção de alguns estabelecimentos de bebidas e de jogos, desses que ficam abertos vinte e quatro horas.
Olhei para ambos os lados e não vi um único carro. Olhei para o relógio e fiquei admirado ao ver que já tinha passado mais de uma hora desde que saíra do meu escritório.
“E onde é que encontro um táxi a estas horas?” Disse para mim próprio enquanto começava a caminhar rua acima, à espera de que passasse algum.
Como o ar começava a ficar mais fresco, subi a gola do casaco e meti as mãos nos bolsos, quando me apercebi de que trazia aquele anel. Retirei-o, e com dificuldade, reparei que tinha algo gravado. Algo de que não me tinha apercebido antes, mas que também não conseguia ver bem com aquela luz fraca.
Voltei a guardá-lo no bolso e com a mão, toquei no bilhete e apercebi-me de que continha um certo relevo numa das suas pontas. Retirei-o e pus-me a observá-lo, mas não vi nada.
“Pode ser que dê para ver melhor debaixo da luz”, disse para mim, enquanto o levantava na direção de um candeeiro, que a vários metros de altura, fazia os possíveis por manter a rua iluminada.
― Nada, assim também não dá para ver. ― Afirmei após tentar observá-lo de vários ângulos.
Estava entretido naquilo quando a rua se começou a iluminar e reparei que um carro se aproximava. Guardei depressa o pedaço de papel e fui tentar pará-lo.
― Táxi! Táxi!… ― Gritei, enquanto abanava as mãos no ar para que me visse.
― Precisa de um táxi, senhor? ― Perguntou o condutor, parando do meu lado.
― Sim, obrigado ― afirmei aliviado enquanto entrava para a parte traseira do carro.
― Para onde quer ir?
― Para o Hotel Plaza.
― Teve sorte de eu passar por aqui, não é uma zona muito recomendável.
― Pois, estou a ver que não ― eu disse, vendo que se tratava de um bairro negligente.
― Está cá de visita? ― Perguntou o taxista.
― O quê? ― Devolvi, enquanto observava o bairro que atravessávamos.
― É a sua primeira vez cá na cidade? ― Insistiu.
― Não, eu moro cá.
― Onde? No hotel? ― Perguntou o taxista num tom de brincadeira.
― Sim, isso mesmo. ― Afirmei decisivo.
― Desculpe, mas não estou a perceber ― disse o homem surpreendido.
― Há anos que vivo lá, e dessa forma posso concentrar-me no meu trabalho sem a necessidade de me distrair com coisas desnecessárias como as lidas domésticas.
― Que trabalho pode ser assim tão absorvente? ― Perguntou o taxista curioso.
― Sou psiquiatra ― respondi, enquanto baixava a gola do casaco.
― Psi… quê? Dos loucos? ― Perguntou, soltando uma gargalhada.
― Aquele que trata da saúde mental dos cidadãos desta cidade ― salientei sem me deixar afetar por aquele comentário jocoso, que nem sequer era dos mais ofensivos que já tinha suportado.
― Bem, não interessa, e isso dá-lhe para viver num hotel? Você deve ganhar bem ― ele disse, enquanto fazia um gesto com os dedos indicador e polegar, indicando dinheiro.
― Nem por isso, mas como não tenho outros gastos, posso-me dar a esse luxo.
― Ah! Sim, estou a ver! ― Afirmou o taxista, mostrando um sorriso brincalhão.
― Se você fizesse contas do que gasta com o aluguer ou hipoteca, mais os gastos de luz, água, seguros e comida, provavelmente optaria por uma solução como a minha ― afirmei, fazendo-o ver as vantagens daquilo.
― Se dissesse à minha mulher que íamos viver para um hotel, a primeira coisa que ela me perguntaria era se tinha ganhado a lotaria ― o homem brincou.
― E a segunda? ― Perguntei, seguindo a sua piada.
― O que faria com a minha sogra. ― Respondeu às gargalhadas.
― Tem uma família grande? ― Perguntei intrigado.
― Grande? Se contar com a minha mulher, a minha sogra, os tios e os primos, sim. Quando nos reunimos todos, somos dez. E vem outro a caminho. E você, não é casado? ― Perguntou divertido.
― Não. Quer dizer, já fui, mas ela abandonou-me.
― Ah, lamento ― afirmou o taxista, mudando de tom.
― Não lamente, ela fugiu com outro enquanto eu estava num congresso.
― Está a falar a sério?
E começamos os dois a rir daquela situação tão absurda. Até que se seguiu um momento de silêncio, quase tão desconfortável como o que senti quando voltei para casa naquele dia e encontrei o bilhete de despedida da minha mulher, a dizer: “Espero que consigas tudo o que queres, eu também vou tentar, por isso vou-me embora”.
Eu andava sempre com o bilhete na carteira, para todo o lado que ia, mas ainda não tinha chegado a mostrá-lo a ninguém, talvez por vergonha ou por medo de partilhar os meus sentimentos. Era óbvio que ela não era feliz comigo e que queria “explorar novos horizontes”.
Assim, quando cheguei a casa, e após dar-me conta da situação, peguei na mala que trazia comigo do congresso e fui para o Hotel Plaza, onde me deixei ficar até hoje.
Não me via a viver naquela casa sem ela. Tanto silêncio, tanta solidão, naquela casa que tínhamos comprado com tanta expectativa. Onde íamos ter os nossos filhos, vê-los crescer, e que seria a nossa morada até os últimos anos das nossas vidas. E com apenas dois anos de casamento, tudo acabou desta forma. Sem um único telefonema ou uma explicação, apenas com um bilhete de despedida.
É verdade que os últimos meses tinham sido bastante agitados para mim, centrados num novo projeto – ser um dos cofundadores de uma associação internacional de psiquiatras, onde pretendíamos oferecer uma nova perspetiva às pessoas alheias à nossa ciência; publicar uma revista trimestral; arranjar financiamento para projetos de investigação; atender os meus pacientes… – e com tudo isso, acabei por me descuidar daquilo que mais queria, mas para o qual não tinha recebido nenhum sinal.
Sempre que voltava para casa, ela parecia feliz e satisfeita. Falava-me sobre o seu trabalho como professora, das dificuldades que por vezes tinha, ou de como alguma das crianças lhe tirava do sério.
Lembro-me até de que já tínhamos feito planos para nas próximas férias passarmos umas semanas numa dessas ilhas tropicais, cheias de cocos e praias de areia branca, onde o mar se confunde com o céu, e onde pudéssemos estar os dois juntos, a partilhar daquele pedacinho de céu cá na Terra. E de repente, de um dia para o outro, restou apenas um bilhete.
― Chegámos! ― Disse o taxista ao parar em frente à entrada principal do hotel.
― Obrigado! ― Respondi, pagando-lhe pela corrida e saindo do carro.
― Boa noite! ― Saudou o porteiro do hotel.
― Boa noite! ― Respondi enquanto subia novamente a gola do casaco e entrava no hotel com alguma pressa, uma vez que o tempo tinha começado a arrefecer.
Depois de subir as escadas, cruzei a porta giratória e dirigi-me à receção.
― Boa noite, quarto 311. Tem correspondência para mim? ― Perguntei enquanto esperava que me dessem a chave do quarto.
― Não doutor, mas aqui tem os jornais de hoje, tal como pediu.
― Muito obrigada! Boa noite ― respondi enquanto recolhia os jornais internacionais aos quais gostava de dar uma vista de olhos antes de me deitar.
― Qual é o andar? ― Perguntou o rapaz do elevador.
― O terceiro. ― Afirmei, sabendo que ele já sabia a resposta, pois todas as noites fazia-me a mesma pergunta.
― Teve um bom dia? ― Voltou a perguntar o rapaz.
― Bom, foi uma tarde um pouco invulgar!
― Por causa do tempo?
― Sim, também ― respondi com um sorriso forçado.
― Já chegámos! Tenha uma boa noite.
― Muito obrigado, vou tentar ― falei, saindo do elevador e dirigindo-me ao meu quarto.
Ao fundo do corredor, havia uma pequena suite, que disponha de um pequeno escritório e de um quarto. Não era muito grande, mas era o melhor que tinha conseguido negociar com o diretor do hotel, já que não era habitual terem clientes alojados no mesmo quarto durante anos.
Mal abri a porta da suite, percebi que alguma coisa não estava bem. Um cheiro forte a charuto inundava a sala, algo que era óbvio que não era meu, pois eu não fumava, e muito menos recebia convidados no meu quarto, pelo que não pude evitar soltar um:
― Quem está aí?
Tentei ligar o interruptor, mas os candeeiros não acendiam, embora tivesse pressionado repetidamente a chave da luz.
― Não se preocupe doutor, está tudo bem. ― Disse uma voz vinda da minha poltrona.
Tinha passado tanto tempo naquela sala que era capaz de reconhecer cada canto e sabia bem que, no lugar de onde me falava, havia uma poltrona debaixo de um candeeiro de pé, lugar onde costumava sentar-me a ler os jornais antes de dormir.
― Quem é você? ― Perguntei, dando um passo atrás e dirigindo-me até à saída para abrir a porta e poder, pelo menos, iluminar o quarto.
Estava prestes a fazê-lo, já com a mão na maçaneta, quando notei que alguém a prendia, impedindo-me de puxar a maçaneta.
― Acalme-se, por favor! Se lhe quisesse fazer mal, não estaríamos aqui a falar.
De repente, fez-se luz atrás de mim. O homem que falava comigo, tinha acendido o candeeiro e com isso, notei como outro, encasacado e com luvas, prendia-me a mão com as suas duas mãos.
Soltei-me e voltei-me para protestar por aquela invasão de privacidade, pois, embora assim não fosse, considerava aquele espaço a minha casa.
― Calma! Já disse que não lhe queremos fazer mal ― voltou a dizer o homem sentado junto ao candeeiro, enquanto acendia um charuto.
― Não pode fumar aqui! ― Protestei.
― A sério que me surpreende que um homem como você, com o seu talento, tenha acabado neste buraco ― indicou o homem do charuto enquanto expelia uma nuvem de fumo.
― Não me venha cá com bajulações. Não sei o que querem, mas enganaram-se na pessoa ― insisti, tentando safar-me daquela situação desconfortável.
― Tenho a certeza de que a esta altura já teve tempo de traçar um perfil para mim.
― Um perfil? ―Perguntei num tom de espanto.
― Não se arme em inocente, doutor. Conhecemo-lo bem. Ou prefere que lhe recite todos os livros que escreveu sobre perfis psicológicos? ― Comentou num tom desafiador.
Aquelas palavras fizeram-me recuar aos meus tempos de faculdade, quando ainda estava a estudar e passava horas e horas na biblioteca.
A certa altura, durante uma aula de Bases Psicológicas e Biológicas da Personalidade, descobri com fascínio como era possível analisar minuciosamente as pessoas a um ponto indescritível.
A maneira de ser, sentimentos e pensamentos ficavam a olho nu diante de um bom analista, capaz de descobrir os segredos de qualquer pessoa como se fossem transparentes como um cristal.
Algo que no início comecei a ler como um passatempo, já que não fazia parte das disciplinas obrigatórias, mas que aos poucos foi fazendo parte da minha especialidade, abordando-o em diversas disciplinas, aprofundando no que atualmente conhecemos como perfis e que são tão úteis para os juízes no seu trabalho pericial e, inclusive, no âmbito dos recursos humanos na hora de selecionar o candidato ideal.
― Benjamin Franklin, Carl Gustav Jung, Albert Einstein… e atreveu-se a fazê-lo, inclusive, com Stephen Hawking. Você é corajoso ou um visionário? ― Disse o homem do charuto.
Enquanto me afastava da porta, deixei o casaco sobre um cabide e procurando numa das prateleiras da estante, retirei um livro volumoso sobre perfis e disse para ele:
― Se quiser aprender, posso emprestar-lhe um dos meus livros.
― Não vim cá para perder tempo nem para receber aulas suas, apenas quero saber se você está qualificado para isso.
― Para o quê? ― Perguntei, tentando descobrir mais alguma coisa.
― Enganámo-nos, peço desculpa ― afirmou o homem, levantando-se.
― Está a referir-se a você querer ver se sou capaz de lhe dizer, que apesar do seu sotaque fingido e das suas maneiras, aparentemente refinadas, não é nada mais, nada menos, do que o filho de um comerciante que lhe ensinou o mundo das palavras e do blefar, empregando um certo grau de teatralidade na forma como manipula o medo e o desconforto, deixando transparecer que é você quem domina a situação, quando, na verdade nem sequer faz ideia de como vou reagir. E que o seu suposto guarda-costas, não é nada mais do que o seu motorista, daí ter segurado a minha mão sobre a maçaneta com as duas mãos e não com uma, como seria de esperar de alguém robusto e acostumado a recorrer à violência. E que você, por exemplo, está demasiado bem-vestido para usar uns sapatos tão desgastados nas solas, e que o charuto que está a fumar nem sequer é importado, o que me indica que você viaja com frequência e que não lhe importa a qualidade, mas sim a utilidade das coisas.
― E que mais? ― Perguntou o homem do charuto, sentando-se novamente no sofá do qual acabara de se levantar.
― Está claro que precisam de mim para alguma coisa que vocês mesmos não estão qualificados a fazer, provavelmente para analisar alguém ou para lhes dizer se alguém é quem diz ser. E virem até aqui quer dizer que, ou estão muito desesperados, ou então não querem que ninguém saiba. E como já faz tempo que eu não me dedico a isto, ninguém iria suspeitar de mim.
― Muito bem! ― Disse o homem enquanto olhava para o charuto com atenção. ― Tenho um pequeno problema e preciso da sua ajuda.
― Não me parece que seja pequeno. Invasão, ameaças… quando sair daqui terá muitos mais do que imagina.
― Você ainda não foi aprovado! ― Respondeu o homem que permanecia sentado a fumar o charuto.
― Aprovado? ― Perguntei admirado.
― É para isso que aqui estamos ― disse o homem que estava a obstruir a porta do quarto.
― Que mais é que sabe? ― Insistiu o homem que fumava.
― Muito bem! Pelo que vejo, você deve ser uma pessoa importante, mas não é um político ou um empresário, já que o seu parceiro da porta o respeita tanto que nem sequer se atreveu a interferir até agora, e o fez com um tom de respeito e não como se fosse uma precisão às suas palavras. Poderia dizer que quase que o venera, como se faz a um guia espiritual ou a um professor.
― Professor? ― Perguntou o homem do charuto, endireitando-se no assento.
― Bom, isso é o que lhe chamariam agora, mas a forma correta seria Mestre ― eu disse com um tom burlão.
― O que o fez chegar a essa conclusão? ― Questionou o homem ao levantar-se, deixando o charuto sobre a mesa onde estava o candeeiro.
― Cuidado com a mesa! ― Falei ao tentar aproximar-me dela quando senti que alguém me detinha por trás, agarrando-me pelos ombros.
― Responda à pergunta ― disse o homem que me agarrava por trás.
― Está bem! ― Respondi em tom de protesto enquanto me abanava, tentando libertar-me. ― O que o denunciou foi a marca no seu dedo anular, que agora está sem nada, mas que ainda mantém a marca de um anel de tamanho considerável que usa habitualmente, tal e qual o de um bispo ou assim parecido. Mas você não usa roupa ampla que nem eles, porque senão sentir-se-ia desconfortável com esse fato de boa qualidade que está a usar. E também não tem nenhum sinal na cabeça por usar um solidéu cristão ou quipá judeu, nem nada que se pareça, tendo eu descartado a opção religiosa. Além disso, tem uma pequeníssima cruz octogonal de Malta, com as suas oito pontas vermelhas, na lapela do seu casaco, também conhecida como a cruz de São João, para que quem não o reconhecer possa parecer ser só mais um adorno, e inclusivamente, ser confundido com o escudo de algum clube de futebol ou de alguma ordem religiosa como a de Santiago, mas sem sombra de dúvida que é a Cruz de Malta.
― Já esteve em Malta? ― Perguntou o homem ao olhar para aquele alfinete singular.
― Sim, há muito tempo atrás, mas gosto de conhecer os lugares onde vou, sobretudo a sua história, e a de Malta era muito singular.
― Singular? ― Perguntou o homem ao recostar-se no sofá e pegar no charuto para continuar a fumar.
― Uns cavaleiros, pertencentes à nobreza europeia, exilados do seu destino, ficam confinados numa ilha, em terras adversárias.
― Não é assim a história! ― Retificou aborrecido o fumador.
― Eu sei, mas a sua expressão corporal ajuda-me a definir o seu perfil. E pelo que vejo, você já não é um cidadão dessa ilha, mas um descendente intelectual dos seus Mestres. E atrever-me-ia a dizer que talvez também possa ser genético.
― Que importância é que isso tem? ― Perguntou, lançando lentamente uma baforada de fumaça.
― A-há! Você é descendente direto de um dos Mestres do lugar ― afirmei convito.
― As suas capacidades surpreendem-me. ― Indicou o homem, levantando-se do sofá. ― Para dizer a verdade, você é bem melhor do que eu pensava. Está aprovado!
― Aprovado? Para o quê? ― Perguntei inquieto ao vê-lo aproximar-se de mim com o charuto.
― Tenho três nomes e três destinos, está tudo nesta pasta. Quero um relatório de cada um deles, e gostaria de o ter até ao final do mês. Tenha uma boa tarde!
E dito isto, entregou-me a pasta, que não era pesada, e saiu do quarto seguindo aquele homem que o protegia, sem dizer mais nada. Deixando-me naquele quarto agora mais iluminado devido às luzes do corredor.
Ainda estava perplexo com o que se tinha passado, quando me voltei para lhes perguntar qual era o motivo daquele serviço, mas eles já tinham desaparecido no corredor e apanhado o elevador do qual eu tinha saído minutos antes.
A verdade é que eu conhecia muito mais da história de Malta do que tinha expressado, mas queria ver a sua reação diante de uma meia-verdade, a ver se aquela pessoa também sabia ou não.
Uma história extraordinária que começou há milhares de anos, mas que só alcançou o seu auge com uma decisão política de D. Carlos I de Espanha e V da Alemanha, que após receber notícias da derrota que a Ordem de São João tinha sofrido na ilha grega de Rodes pelas mãos dos Otomanos, permitiu que se instalassem numa pequena ilha, mais a sul do Mediterrâneo, como um ponto estratégico, uma vez que era a porta de acesso entre a Europa e África.
Desde então, todos os anos, em troca da sua cessão e como forma de reconhecimento pelo seu ato, os cavaleiros da Ordem de Malta deviam entregar, como tributo, o famoso Falcão Maltês.
Terra de pescadores que viu como a sua orografia se transformava num porto sem igual, – agora convertido num centro comercial e religioso – onde desembarcavam todas as maiores fortunas da Europa para ajudar na construção daquela que seria a maior fortaleza da história da época.
Uma ilha conhecida por se destacar pelas suas artes e avanços na medicina para onde os aspirantes a cavaleiros iam estudar e se formar. Tudo patrocinado e sustentado pelas casas reais europeias, que viam prosperar aquele pequeno lugar.
Mas aquilo não se tratava apenas de uma contribuição benéfica e altruísta que se realizava desde as monarquias europeias, pois desde que se instauraram na ilha, tiveram que fazer frente a todo o tipo de piratas e conquistadores que pretendiam apoderar-se das riquezas provenientes de África.
Mas os leais cavaleiros mantinham as suas águas limpas de ímpios e protegiam as mercadorias valiosas que cruzavam aquelas águas.
Um lugar desejado e temido ao mesmo tempo. Fortaleza de uma linhagem de cavaleiros, que se dizia serem descendentes dos cruzados que foram à Terra Santa.
A respeito disso, a realidade começava a confundir-se com a ficção. A tradição pretendia ressaltar a magnificência daqueles cavaleiros, com a indicação de que eram guardiões de grandes tesouros que acumulavam com receio, e até, que eram possuidores de relíquias provenientes da Terra Santa, entre elas, a mais valiosa – o Santo Graal.
De qualquer forma, isso podia ou não ser verdade, já que foram tantos os lugares autoproclamados como possuidores temporários desta majestosa relíquia, que se tornava impossível saber a verdade.
Se tivesse tido mais tempo para trocar mais informação com este Mestre, com certeza que me poderia ter esclarecido acerca desta e de outras questões, que ainda hoje permanecem um mistério sobre as figuras míticas de uns homens tão valentes e engenhosos que foram capazes de deter o avanço das temidas tropas de Solimão, o Magnífico. Personagem na qual realizei uma das minhas análises de perfis psicológicos, tal como fizera com outros grandes nomes da história, como Napoleão I ou o próprio Alexandre Magno, mas que, pelo seu distanciamento ao longo do tempo, não pude recolher mais do que pequenas histórias soltas, que talvez fossem apenas os seus súbditos a ressaltarem as bonanças da sua imagem, ou dos seus adversários, contando o quão cruel e impiedoso ele era. Algo que me fizera optar por personagens mais recentes, onde constasse documentação e, inclusivamente, algo escrito pela própria pessoa. Desta forma, era-me mais fácil aproximar-me da sua verdadeira personalidade e descobrir quais eram as suas ambições, desejos e anseios, mas também o que temia e evitava. Já que, por natureza, não só nos movimentamos por aquilo que queremos como também para evitarmos o que tememos.
Fechei a porta da sala e dirigi-me ao quarto, sentando-me na cama, pensativo – “Que situação mais estranha!”, pensei para mim. Se a tarde já tinha sido suficientemente estranha, isto seria a cereja no topo do bolo.
Abri a pasta e espalhei o seu conteúdo sobre a cama. Havia três montes de papéis com um clip grande sobre cada uma. Peguei na primeira e para minha surpresa, era o currículo de um jovem de vinte anos, no qual constava toda a sua informação, desde os seus estudos à sua profissão e postos a que se candidatava.
Noutro ficheiro, dessa mesma pilha de papéis, encontrei a sua certidão de nascimento, com os dados do dia, hora e lugar de nascimento, informações da mãe e o nome do hospital.
Num terceiro ficheiro, havia um mapa da cidade de Nova Iorque e, agrafado a este, um bilhete de avião.
Examinei-o com cuidado e apercebi-me, para minha surpresa, que era um bilhete com o meu nome para a próxima segunda-feira. “Como é possível?”, interroguei-me, surpreso. “E se não tivesse passado no teste?”
“Só isto?”, exclamei ao verificar que já não havia mais informação sobre aquela pessoa nem sobre o que eu deveria fazer a seu respeito.
O mais importante na hora de traçar um perfil era, precisamente obter o máximo de informação possível, sobretudo se era em primeira mão, de algum familiar ou amigo próximo, ou da própria pessoa a ser analisada. E com aquela escassez de informação, o máximo que poderia conseguir era uma descrição muito geral.
Dei uma olhadela às outras duas pilhas de papéis e continham exatamente a mesma escassez de informação. Mas naquele caso, continham um bilhete de avião para Paris e outro para Viena.
“Bom, pelo menos os lugares de destino não são nada maus.” ― Pensei para mim, observando que cada bilhete de avião tinha um intervalo de tempo de uma semana entre cada um.
O que significava que eu tinha que lá ir, encontrar-me com aquela pessoa, analisá-la, traçar o seu perfil e regressar. Tudo isso no tempo recorde de uma semana, já que na segunda-feira seguinte teria que voltar a fazer o mesmo num novo destino.
Não me lembrava de alguma vez ter viajado tão depressa, nem sequer quando tinha que ir a congressos científicos, aos quais ia para conhecer as últimas investigações na minha área, uma vez que gostava de ficar a passar alguns dias na cidade de destino para poder conhecer as suas tradições e costumes. Mas isto era um exagero.
“O que vale é que entre Paris e Viena a distância é curta. Nem quero pensar o que poderia ter acontecido se fosse para ir a Sidney. Para além da viagem, ainda perderia, no mínimo, dois dias, um para a ida e o outro para a volta. Mas para quê tanta pressa?” ― Questionava-me enquanto apanhava os papéis e os colocava na pasta que o homem me tinha dado, colocando-os, em seguida, sobre uma mesa extra que havia no quarto, quando de repente:
― Abra a porta! ― Fez-se ouvir uma voz saliente.
― Abra ou nós a arrombamos! ― Seguiu-se outra voz num tom ameaçador.
― Quem é? ― Perguntei, aproximando-me da porta do quarto.
― Mandei abrir a porta! ― Voltou a dizer aquela voz num tom autoritário.
― Vão-se embora ou chamo a polícia! ― Respondi, cansado de tantas surpresas num só dia.
Ainda não tinha acabado de falar quando ouvi um enorme estrondo e uma luz ofuscante iluminou o dormitório, tinha eu ainda a mão na porta para a fechar e poder assim refugiar-me além do quarto, mas não tive tempo para o fazer.
Senti um forte zumbido nos ouvidos. Aquilo cegara-me e fizera os meus olhos lacrimejarem, e mal conseguia respirar. Era uma sensação tão desagradável que mal conseguia pensar no que estava a acontecer.
― Sente-se! Sente-se! ― Alguém disse, evitando que eu cambaleasse de um lado para o outro.
― Está a ouvir? ― Perguntou em voz bem alta, mas eu mal conseguia ouvir, uma vez que a minha cabeça parecia estar mergulhada em água, como se fosse explodir.
― Isso já lhe passa, meta a cabeça entre as pernas e relaxe. ― Alguém dizia, mas eu mal entendia.
Não sei quanto tempo tinha passado, mas não me lembrava de alguma vez ter passado por uma situação daquelas, tão desconfortável. Era como se todo o meu corpo me doesse, mas, ao mesmo tempo, me sufocasse e quisesse desfazer-se disso. Sentia calor e frio ao mesmo tempo e, apesar de conseguir abrir os olhos de vez em quando, não via nada além de pequenas sombras.
― Sente-se bem? ― Consegui escutar após algum tempo.
― O que foi isto? ― Consegui perguntar, mesmo sem conseguir ver nada ainda.
― É só uma granada de atordoamento, não é caso para tanto! ― Respondeu uma segunda voz num tom sarcástico.
― Uma granada? Mas vocês estão loucos? ― Eu disse irritado, tentando levantar-me, até que me apercebi que alguma coisa me estava a prender as mãos.
― Tenha lá calma e tente não se levantar. Tem as mãos e os pés amarrados com uns flanges de plástico como se fossem algemas.
― Estou algemado? O que foi que eu fiz? ― Perguntei, tentando esfregar os olhos a ver se conseguia ver alguma coisa.
― O que foi que você não fez quer você dizer? ― Perguntou aquele que falava com sarcasmo.
― Acusações por obstrução à justiça e pertencer a uma organização suspeita de lavagem de dinheiro, parece-lhe bem? ― Afirmou a voz autoritária.
― Pertencer a quê…? Eu trabalho por conta própria. ― Respondi sem saber a que se referiam.
― E isto? Anda a planear as próximas férias, é? ― Perguntou com um tom sarcástico.
― O quê? ― Perguntei, tentando esfregar os olhos para poder ver, embora ainda tivesse a visão turva.
― Nova Iorque, Paris, Viena… O que vai lá fazer? Vai de férias? ― Voltou a perguntar com sarcasmo.
― Pediram-me para fazer um trabalho. ― Respondi sem perceber o que aquilo poderia ter de mal.
― Muito bem, continue a cooperar e lhe reduziremos a pena ― afirmou aquele que falava num tom autoritário.
― Pena? Qual pena? ― Perguntei sem sequer saber com quem estava a falar.
― Não me diga que acha que vai conseguir chegar a um acordo para o inocentarmos? Isso envolveria muito mais do que um simples testemunho, seria preciso chegar à cabeça da organização.
― Qual organização? Qual cabeça? ― Perguntei confuso, sem conseguir entender a que se devia toda aquela situação.
― Não se faça de idiota. A cabeça, o líder da quadrilha, esse tal de Mestre ― disse o sarcástico.
“Mestre?” Questionei-me a mim mesmo, tentando atar as pontas no pouco tempo em que tinha conseguido recuperar os sentidos. “Eles estão à procura daqueles que acabaram de sair daqui”.
― Não conheço nenhum Mestre ― afirmei decididamente, para ver as suas reações.
― Claro que não, devemos estar enganados. Andamos há meses atrás de uma pista sua, e por fim, quando chega à cidade, você não sabe o que ele veio cá fazer? Encontrar-se consigo e apanhar o primeiro voo de regresso não lhe parece suspeito? ― Perguntou com malícia como fazia o Rin-Tin-Tin.
― Para dizer a verdade, não. Talvez estivesse com pressa. ― Respondi-lhe com o mesmo tom de sarcasmo com que me falava.
― Então, você confirma que o conhece? ― Disse a voz autoritária.
― Não foi isso que eu disse. ― Respondi, confuso com a sua afirmação.
― Acabou de dizer que não conhece nenhum Mestre e agora já diz que ele estava com pressa. É óbvio que está a tentar encobri-lo. Porquê? ― Perguntou a voz autoritária.
Levei as mãos à cabeça e disse muito rapidamente:
― Quero um advogado. Não vou dizer mais nada sem ser na presença de um advogado, conheço os meus direitos.
― Nós não somos da polícia, muito menos do Fisco, somos da Segurança Nacional e você está metido num grande sarilho. Essas pessoas que você encobre são suspeitas de vários crimes, desde tráfico de influências, lavagem de dinheiros, tráfico de pessoas… e a lista continua. Na verdade, eles fazem o que lhes dá na gana, quando querem e onde bem entendem ― afirmou o homem encasacado que trazia na mão uma arma e falava com um tom autoritário.
Conseguia finalmente ver com clareza enquanto a minha mente se desanuviava. Além de mim, havia mais seis pessoas no quarto. Os dois encasacados que falavam comigo e outros quatro vestidos com capacetes e coletes à prova de balas e metralhadoras, daquelas de tamanho reduzido, tal e qual as que as forças de intervenção rápida usam em casos de sequestros e assim parecido.
Mas neste caso, eu era a vítima e eles, os sequestradores. Pelo menos assim parecia dada a desvantagem de seis contra um e o facto de todos estarem armados menos eu.
― De que corporação é que disseram que eram? ― Perguntei, lembrando-me de que não me tinham lido os direitos em momento nenhum.
― Não dissemos. ― Afirmou o que falava com voz autoritária, que devia ser o líder.
― Não sei o que querem, mas garanto-lhes que se enganaram na pessoa ― insisti na minha inocência.
― E estes bilhetes? ― Perguntou o segundo encasacado que agitava nervoso a arma, como se fosse disparar contra o teto, enquanto me mostrava os bilhetes de avião junto com a documentação que eu tinha recebido há alguns minutos atrás.
― É um trabalho, já lhe disse.
― Tem de levar alguma coisa?
― Não.
― Tem que ir buscar alguma coisa?
― Não.
― Então o que vai lá fazer? ― Perguntou o encasacado nervoso, atirando-me os bilhetes à cara.
― Traçar um perfil dessas pessoas.
― Um perfil? Está a querer enganar-nos? Acha mesmo que alguém que é procurado internacionalmente se daria ao trabalho de se mostrar para lhe encomendar um perfil? Mas você pensa que somos estúpidos ou quê? ― Perguntou aborrecido, deixando o tom irónico de lado.
― Eu não sei onde ele está, nem o que faz ou deixa de fazer, apenas estou a dizer-lhes que me encarregou deste trabalho.
― E quanto lhe ofereceu em troca?
― Quanto ofereceu?
― Sim, pelo trabalho. Quanto foi?
― Não falámos de dinheiro.
― Como assim? Ouça, já estou farto de ouvir estes disparates, deixe-me sacar-lhe a informação à minha maneira! ― Disse o encasacado nervoso para o outro encasacado que parecia ser o chefe. ― Dê-me meia hora com a porta fechada e faço-o cantar como um rouxinol.
― É a verdade ― eu disse, tentando levantar-me.
― Já lhe disse para não se levantar! ― Afirmou o autoritário enquanto me apontava a arma na direção dos olhos.
― Está bem! Está bem! Eu fico aqui, mas garanto-vos que é tudo o que sei.
― Para que é que ele quer esses perfis? Quem são estas pessoas? Quais são os seus objetivos? Contactos?…
― Não sei, já vos disse tudo o que sabia. ― Insisti, olhando para a arma que estava a escassos centímetros da minha cara.
― Espero bem que sim. Faremos o seguinte, queremos que você siga com o plano e entreviste estas pessoas, que faça o seu trabalho, e quando for entregar os perfis, nós interviremos ― disse o encasacado autoritário, que com um gesto de mão, fazia os outros saírem do quarto.
― Quando e onde será a entrega? ― Perguntou o nervoso, enquanto os homens das metralhadoras saíam do quarto, andando de costas para a porta.
― A entrega? Qual entrega? ― Perguntei vendo que o autoritário ainda não tinha baixado a sua arma.
― Dos perfis! Quando e onde é que tem que entregá-los? ― Perguntou o autoritário, aproximando ainda mais a sua arma.
― Não sei, não me disseram. ― Respondi, tratando de ser o mais convincente possível.
― Está a querer dizer que alguém vem até aqui, encomenda-lhe um serviço e que você não sabe se essa pessoa lhe pagará por esse serviço, nem onde e quando terá que entregar o resultado do serviço? ― Perguntou o segundo encasacado num tom sarcástico.
― É isso mesmo! ― Confirmei numa voz entrecortada.
― É inacreditável, está a fazer-nos perder tempo. Mas você acha que somos idiotas ou quê? ― Voltou a questionar o homem ansioso, andando de um lado para o outro no quarto.
― Já disse tudo o que sei, que mais querem de mim?
― Para começar, a verdade! ― Afirmou com voz autoritária o homem que tinha a arma apontada para mim.
― Já lhe disse várias vezes. Veio cá, disse qual era o trabalho, entregou-me a pasta e nem sequer a abri até se ter ido embora. E dentro estavam esses três ficheiros dessas três pessoas e esses três bilhetes de avião.
― Que esperto, até parece um pombo-correio ― afirmou o da voz autoritária, baixando a arma.
― Um quê? ―Perguntei confuso.
― Um pombo-correio, alguém que vai aos lugares sem saber o seu destino, assim se for apanhado não poderá dar informações de nada ― informou o homem ansioso num tom exaltado.
― E isso é bom? ― Perguntei sem saber se aquilo seria uma saída para aquela situação.
― Não pense que se livra com isso, você é tão culpado quanto os outros, apenas está menos informado ― afirmou o homem autoritário, baixando a arma.
― Então? ― Questionei vendo que a situação tinha amenizado.
― Então você vai cumprir o seu serviço, mas nós estaremos lá, não vamos perdê-lo de vista. O único problema é que está fora da nossa jurisdição e não tenho nenhuma autoridade nesses países, por isso vamos arranjar-lhe um parceiro.
― Um parceiro? ― Voltei a perguntar sem saber o porquê daquilo.
― Será o seu cão de guarda e nos manterá informados das suas ações. Se se portar bem e cooperar connosco, pode ser que lhe reduzam a pena.
― Outra vez essa história da condenação! ― Protestei face àquela ameaça.
― Não pensou que se iria livrar, pois não? ― Perguntou o ansioso, guardando a arma.
― Amanhã receberá uma visita, a partir daí, terá que fazer tudo o que lhe disser, entendido?
― Sim, claro, entendi. ― Afirmei, vendo que o ansioso estava a recolher os bilhetes que tinha atirado.
― Para o caso de querer brincar connosco, levaremos os papéis com os bilhetes, o seu cartão de cidadão e o seu passaporte. Que já agora, onde é que está?
― Em cima da mesa de cabeceira ― afirmei, estendendo as mãos, unidas por uma tira de plástico como se fossem algemas.
Depois de me confiscarem o passaporte e cortarem as amarras, disseram:
― Isto é como uma missão clandestina, em que você não deve fazer nenhum disparate, nem nada que faça com que suspeitem da nossa presença. Colabore e tudo acabará bem.
Dito isto, saíram do quarto, andando de costas para a porta, tal como tinham feito os tipos das metralhadoras.