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Capítulo Um

Theo Whitfield temia essa visita antes mesmo de entrar no prédio. Qualquer uma, de uma variedade de tarefas horríveis, parecia mais atraente do que a que ela enfrentava agora; fosse sugar nuvens nocivas de vapor preto enquanto consertava a ventilação de uma aeronave, ou pisando no esgoto e na lama do subsolo. Ora essa, ela até preferia devorar as tentativas carbonizadas de sua mãe no jantar, uma façanha que fazia até os estômagos mais calejados vacilarem.

No entanto, sua irmã Ellie não havia voltado para casa na noite anterior, e Theo precisava de respostas.

Ela engoliu em seco ao chegar na fachada, e apoiou os nós dos dedos na porta recém-pintada. A placa de bronze polido das Indústrias Kylock a encarava da saliência, e ela cerrou os dentes enquanto reunia coragem.

Autocarros a vapor chacoalhavam atrás dela enquanto corriam ao longo dos paralelepípedos, parte da agitação comum de Barnsbury. Cada um que passava provocava uma série de palavrões dos bandidos de rua que eram como ratos ao meio-dia e cheiravam a gim.

Ela agarrou a maçaneta e girou-a, entrando na loja.

As fracas lâmpadas a gás na entrada piscaram suas luzes amareladas na direção das tábuas manchadas do assoalho. Uma mulher sentada detrás de uma mesa de mogno, posicionada na frente de uma ampla sala de estar, se assustou ainda na cadeira, como se tivesse sido pega cochilando. Mesmo com a entrada elegante e polida da loja, os cheiros de ferro, aço e cobre faziam cócegas no nariz de Theo, faziam seus dedos coçarem. Para uma tecnomante como ela, as engenhocas criadas neste lugar eram abundantes para exploração.

— Como posso ajudá-la? — perguntou a atendente, alisando as saias antes de se levantar.

— Estou aqui para ver Silas. — Theo disse, deslizando as mãos nos bolsos das calças.

Ela não deixou de perceber a maneira como a mulher a olhou com fixação, demorando-se em seu traje chocante. Com seus longos cachos negros soltos e selvagens em vez de presos para trás, e a falta de um espartilho que lhe desse uma cintura irreal, Theo nunca seria confundida com uma dama. Embora o julgamento do populacho não importasse. Sendo uma tecnomante em uma cidade industrial, ela sempre, sempre encontraria emprego, quer seguisse as normas sociais ou não.

— O Sr. Kylock está ocupado. Gostaria de marcar um horário? — a mulher respondeu e forçou um sorriso.

Theo ergueu uma sobrancelha.

O todo-poderoso desgraçado está muito ocupado brincando com seus brinquedos para perder um segundo? Nem me surpreendo.

Ele vai me ver agora. — ela exigiu, os dedos coçando ainda mais.

Sempre que seu temperamento rugia, o que acontecia com frequência, a magia tendia a se combinar a ele.

A atendente eriçou-se com sua demanda. Com base no brilho aguçado nos olhos da mulher quando abriu a boca, outra negação estava prestes a acontecer.

Uma caneta elegante, acoplada a uma máquina de escrever, estava em cima da mesa e trazia a marca dos artesãos de Kylock: um K com uma roda dentada ao redor. A peça sofisticada de tecnologia poderia imprimir diferentes fontes e caligrafia nas cartas e seria vendida por um alto preço em muitos salões de luxo. Serviria muito bem.

Theo ergueu a mão, e o anel condutor que ela usava quase vibrou com a magia em suas pontas do dedo. Filetes dele se condensaram no ar, como tufos de nuvens cumulus, à vontade dela. Ela impulsionou a energia com um girar de pulso, e os botões da máquina de escrever começaram a bater. A caneta baixou para o bloco de papel em branco.

— Posso colocar esta máquina em um frenesi em cerca de três segundos. — disse Theo. — Suponho que seus empregadores não apreciarão que tais equipamentos sofisticados sejam quebrados. Portanto, leve-me até Silas, agora.

A caneta se movia cada vez mais rápido, rabiscando com cada vez mais fúria a cada teclada que ela dava de longe. Condensação preencheu o ar com a efusão de magia, como o vapor que saía da maquinaria da cidade. Os olhos da mulher se arregalaram, e ela ergueu as mãos em defesa.

— Pare, pare! — ela cuspiu, o medo estampado em sua pele pálida. — Vou levá-la até a oficina dele.

Theo era de uma natureza rara o suficiente para que, quando ela encontrava pessoas normais na rua, respeito ou medo se tornavam uma reação normal. Afinal, nem todos possuíam a habilidade de manipular a mecânica com magia.

A mulher a conduziu em meio aos adornos extravagantes da sala, das estantes cheias de tomos encadernados em couro à mesa e cadeiras de mogno ao lado de um armário exibindo copos de cristal e decantadores de licor fino. Este não era um lugar destinado a rufiões como ela.

Os passos de Theo ecoaram pelo corredor, as botas de sola grossa feitas para pisadas fortes, ao contrário do clique silencioso dos saltos da mulher que a guiava para uma porta dupla no final do corredor principal. Seus cachos soltos faziam cócegas no pescoço, irritando-a o suficiente para tirá-los do caminho antes que parasse na frente das portas da oficina. Sua própria agitação ameaçou borbulhar assim que ela pisou dentro daquele cômodo. A atendente se inclinou e inseriu uma sequência numérica. Uma série de zumbidos e cliques se seguiram até que a fechadura se abriu.

— Pode ir. — disse Theo, desviando das anáguas da mulher para agarrar a maçaneta. — Tenho certeza de que posso me guiar daqui. — para dar ênfase extra, ela balançou os dedos na direção da atendente, o que teve o efeito desejado de fazê-la correr.

Se senhoras e cavalheiros a tratavam como uma aberração, ela poderia muito bem colher os benefícios.

A porta emitiu um sussurro enquanto ela a abria e entrava em meio ao vapor que beijava suas bochechas e metal em chamas que fazia cócegas em seu nariz. Éter de cor de absinto borbulhava em tubos que alinhados na sala. A fonte de energia não apenas servia como combustível, mas também lançava raios de luz para aumentar a fraca oscilação que as projeções escuras ofereciam. Uma grande bancada de trabalho ocupava toda a parede dos fundos, e cada centímetro de superfície da monstruosidade estava coberto de projetos.

O tique-taque dos relógios ecoava pelo lugar, vindo de pelo menos seis fontes diferentes, e rolos de plantas e desenhos cobriam, por completo, prateleiras das três estantes que se elevavam ao longo da parede direita. Engrenagens, pias, polidores e brocas estavam espalhados, metade no chão, metade na mesa, sem ordem específica. Em meio ao caos da sala, um homem debruçado sobre a mesa de trabalho, mergulhado no pescoço em seu último projeto.

— Silas, sei onde está o seu autômato perdido. — Theo gritou, a voz ecoando pela sala.

Os ombros do homem ficaram tensos, e ele baixou tudo em que estava mexendo antes de girar em seu banco para encará-la. Seus cabelos de cor vermelho-ferrugem brilhavam com a enorme quantidade de vapor que bombeava pela sala, e ele ergueu os óculos com as lentes de aumento para colocá-los sobre a cabeça. Sorriu ao encontrar o olhar dela, a quantidade de arrogância em seus olhos castanhos escuros fazendo o temperamento dela chegar ao ponto de ebulição. O homem era bonito demais para o seu próprio bem, mas Theo se recusava a ser influenciada.

— Bem, bem, o que eu fiz para uma das garotas Whitfield me fazer uma visita? — ele ergueu uma sobrancelha grossa, o arco elegante deixando seus traços definidos mais perfeitos. — A última vez que a vi, querida Theo, seu empregador solicitou minha consulta sobre uma situação porque você se recusava a admitir sua total falta de conhecimento sobre o assunto.

Os dedos dela se fecharam em punhos. Os dois cresceram em Islington, até mesmo se metendo em brigas nas ruas na adolescência, mas à medida que envelheceram, ele se tornou cada vez mais insuportável. Após tornar-se um Artesão de Ofício, e ela encontrar trabalho como Tecnomante, uma faz-tudo, seus caminhos continuaram a se cruzar, uma e outra vez. Infelizmente, dar um soco na cara dele bem em seu local de trabalho faria com que seu pagamento fosse reduzido, e ela precisava de cada centavo para os tratamentos da mãe.

— Quer falar de total falta de conhecimento? — ela gritou. — Onde está o último modelo de sua linha de criadas mecânicas?

Os olhos dele brilharam de irritação. Ele se encostou na mesa de trabalho e cruzou os braços sobre o peito, era um dos poucos que não temia a espécie dela.

— Em que confusão a sua irmã se meteu dessa vez?

Theo se irritou.

Embora ele estivesse certo, das duas garotas Whitfield, ela era a certinha enquanto a irmã começara a roubar com uma naturalidade que preocupava mamãe até não poder mais. Ela não gostou do deboche no tom dele.

— Quer recuperar o autômato que ela roubou ou não? — ela perguntou, pronta para sair daquela sala infernal ocupada pelo homem que se tornou um pesadelo em sua vida profissional, bem como irritante a nível pessoal.

— Você a trará de volta aqui esta noite, ou darei o nome de sua irmã ao comissário. — ele respondeu, mantendo os olhares nivelados.

Apesar da firmeza na voz dele, sombras rastejaram sob seus olhos e a barba de três dias que cobria seu queixo implicava que o desaparecimento lhe causou mais problemas do que ele jamais admitiria. Ele mexeu em uma de suas abotoaduras, o movimento constante traindo seus nervos.

— Esse é o problema. — Theo engoliu em seco, um buraco se formando em seu estômago. — Ela desapareceu antes mesmo de fazer a entrega da sua criada mecânica.

A batida parou.

— Então, veio até mim por quê? — Silas perguntou, a voz cortante.

A maneira faminta com que ele a olhava sugeria que ela estava pisando em terreno perigoso.

No entanto, Theodosia Whitfield adquiriu o hábito de pisar em territórios delicados.

— Porque eu posso pegar seu autômato de volta, entregá-lo sem ninguém saber o que houve. Apenas preciso da sua ajuda. Para ser mais específica, preciso de sucata do material que usou para o criar, assim poderei rastreá-lo. — ela ergueu o queixo e olhou para ele.

Ele pode ser mais alto e ter desenvolvido mais músculos do que o necessário por trabalhar muito com forja, mas ela lançava um gancho de direita dos bons e conhecia os pontos fracos dele. Se chegassem a uma luta, ela ainda apostaria nela mesma.

— O que recebo em troca? — ele perguntou, um sorriso irritante voltando ao rosto. — Porque eu tenho as plantas, sempre posso fazer uma nova. No entanto, você só tem uma irmã.

Theo deu um suspiro, sem se preocupar em esconder a irritação.

— Você teria a satisfação de ser um homem decente pela primeira vez.

Silas bufou.

— Isso não é, nem de longe, uma troca. Ofereça-me algo que valha a pena.

Theo não deixou de notar a maneira como os olhos dele se demoraram nela, ou o calor queimando neles.

Ele pode ser um homem mais bonito do que a média, com o tipo de corpo como o de um ferreiro, que faz a maioria das mulheres cair em sua cama — e muitas caíram —, mas ele tinha a personalidade de um nabo em conserva.

Theo pousou as mãos nos quadris enquanto o olhava, recusando-se a aceitar a implicação flagrante que ele colocava por trás de suas palavras. Ela deveria tirar a expressão presunçosa daquele rosto e apenas roubar a sucata, danem-se as consequências.

— Um favor. — ela disse, por fim. — Dentro da minha capacidade profissional. — ela enfatizou a palavra profissional para dissipar quaisquer ideias que ele pudesse estar desenvolvendo.

Quanto mais cedo ela pudesse adquirir a sucata e dar o fora de lá, melhor. Pelo que sabia, a irmã podia estar sangrando em um beco.

Silas bateu na lateral do queixo como se estivesse meditando sobre a proposta, como se já não tivesse tomado a decisão.

— Embora um favor seu possa ser útil, subcontratamos muitos tecnomantes. Não vou entregar minha sucata e apenas esperar que você traga nosso autômato. Vou negociar um favor seu, se eu for junto nessa busca por sua irmã.

As sobrancelhas de Theo baixaram ante o brilho. Passar mais tempo perto de Silas Kylock não era apenas perigoso para sua saúde, mas a aproximava cada vez mais do risco de ser presa por homicídio.

Exceto que ele possuía o item exato de que ela precisava para rastrear Ellie. E não importava em que encrenca sua irmãzinha tivesse se metido dessa vez, Theo faria qualquer coisa por aquela garota.

Ela deu um suspiro.

— Tudo bem. Encontre-me, em uma hora, na minha casa com a sucata. Também pode limpar o resto de sua agenda por hoje. Não sei quanto tempo isso vai demorar.

As palavras gotejavam com um escárnio que ela não se incomodou em mascarar. Os Kylock haviam ganhado alguns xelins entre os contatos comerciais de seu pai e os consertos de Silas, mas, como ela, eram o lixo da sarjeta de Islington. Rufiões do fundo do poço não se encaixavam entre as pessoas elegantes e pretensiosas, por mais que os Kylock tentassem fingir o contrário.

— Trato feito. — ele respondeu, puxando as luvas grossas de trabalho que usava e jogou-as no chão.

Ele se levantou do banco com um rangido e cruzou a distância entre eles até ficarem a poucos centímetros de distância. As mãos de Theo não se moveram de seus quadris embora o olhasse com as costas grudadas à porta. Com quase dois metros de altura, ele se elevava quase trinta centímetros acima dela, mas ela nunca o havia considerado intimidador.

Silas estendeu a mão entre eles para um aperto. Ela ofereceu a sua, e o calor emanou da palma calejada dele quando selaram o acordo. Tão perto, ela podia sentir o cheiro de cobre, terra e âmbar, uma infusão que fez sua mente girar. Theo percebeu que o aperto de mão durou segundos a mais quando um sorriso malicioso curvou o lábio superior de Silas. Ela puxou a mão de volta.

— É capaz de encontrar a saída? — ele perguntou, sem se mover um centímetro, apesar da proximidade entre eles.

— Sou bastante capaz, obrigada. — ela retrucou, girando para as portas duplas.

Atrás dela, ela ouviu o barulho de passos e o barulho de peças de metal de uma miríade de ferramentas sendo movidas na mesa.

Theo Whitfield continuou marchando para frente. Mesmo que fosse obrigada a trabalhar com o maior e mais desagradável puxa-saco deste lado da cidade, Ellie estava vagando por aí e precisava da ajuda dela.

Theo não a decepcionaria.

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