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A BOA NOVA AOS HOMENS
ОглавлениеUma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula benedictina, como habito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinaria, com uma voz que reboava nas entranhas do seculo. Elle promettia aos seus discipulos e fieis as delicias da terra, todas as glorias, os deleites mais intimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para rectificar a noção que os homens tinham d'elle e desmentir as historias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
—Sim, sou o Diabo, repetia elle; não o Diabo das noites sulphureas, dos contos somniferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e unico, o proprio genio da natureza, a que se deu aquelle nome para arredal-o do coração dos homens. Vêde-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai d'aquelle nome, inventado para meu desdouro, fazei d'elle um trophéu e um labaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...{8}
Era assim que fallava, a principio, para excitar o enthusiasmo, espertar os indifferentes, congregar, em summa, as multidões ao pé de si. E ellas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na bocca de um espirito de negação. Isso quanto á substancia, porque, ácerca da fórma, era umas vezes subtil, outras cynica e deslavada.
Clamava elle que as virtudes aceitas deviam ser substituidas por outras, que eram as naturaes e legitimas. A soberba, a luxuria, a preguiça foram rehabilitadas, e assim tambem a avareza, que declarou não ser mais do que a mãi da economia, com a differença que a mãi era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defeza na existencia de Homero; sem o furor de Achilles, não haveria a Illiada: «Musa, canta a colera de Achilles, filho de Peleu...» O mesmo disse da gula, que produziu as melhores paginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hyssope; virtude tão superior, que ninguem se lembra das batalhas de Lucullo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez immortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem litteraria ou historica, para só mostrar o valor intrinseco d'aquella virtude, quem negaria que era muito{9} melhor sentir na bocca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os máus boccados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo promettia substituir a vinha do Senhor, expressão metaphorica, pela vinha do Diabo, locução directa e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fructo das mais bellas cepas do mundo. Quanto á inveja, prégou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a supprir todas as outras, e ao proprio talento.
As turbas corriam atraz d'elle enthusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquencia, toda a nova ordem de cousas, trocando a noção d'ellas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que elle dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluia: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, elle não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros dextros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuista do tempo chegou a confessar que era um monumento de logica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercicio de um direito{10} superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéo, cousas que são tuas por uma razão juridica e legal, mas que, em todo caso, estão fóra de ti, como é que não pódes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, cousas que são mais do que tuas, porque são a tua propria consciencia, isto é, tu mesmo? Negal-o é cair no absurdo e no contraditorio. Pois não ha mulheres que vendem os cabellos? não póde um homem vender uma parte do seu sangue para transfundil-o a outro homem anemico? e o sangue e os cabellos, partes physicas, terão um privilegio que se nega ao caracter, á porção moral do homem? Demonstrando assim o principio, o Diabo não se demorou em expôr as vantagens de ordem temporal ou pecuniaria; depois, mostrou ainda que, á vista do preconceito social, conviria dissimular o exercicio de um direito tão legitimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hypocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, rectificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injurias e outras maximas de brandura e cordialidade. Não prohibiu formalmente a calumnia gratuita, mas induziu a exercel-a mediante retribuição, ou pecuniaria,{11} ou de outra especie; nos casos, porém, em que ella fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, prohibia receber nenhum salario, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as fórmas de respeito foram condemnadas por elle, como elementos possiveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a unica excepção do interesse. Mas essa mesma excepção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento applicado e não aquelle.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com effeito, o amor do proximo era um obstaculo grave á nova instituição. Elle mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolvaveis; não se devia dar ao proximo se não indifferença; em alguns casos, odio ou despreso. Chegou mesmo á demonstração de que a noção de proximo era errada, e citava esta phrase de um padre de Napoles, aquelle fino e lettrado Galliani, que escrevia a uma das marquezas de antigo regimen: «Leve a breca o proximo! Não ha proximo!» A unica hypothese em que elle permittia amar ao proximo era quando se tratasse de amar as damas{12} alheias, porque essa especie de amor tinha a particularidade de não ser outra cousa mais do que o amor do individuo a si mesmo. E como alguns discipulos achassem que uma tal explicação, por metaphysica, escapava á comprehensão das turbas, o Diabo recorreu a um apologo:—Cem pessoas tomam acções de um banco, para as operações communs; mas cada accionista não cuida realmente se não nos seus dividendos: é o que acontece aos adulteros. Este apologo foi incluido no livro da sabedoria.