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1888

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9 de Janeiro.

Ora bem, faz hoje um anno que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de vassouras e espanadores: «Vae vassouras! vae espanadores!» Costumo ouvil-o outras manhãs, mas desta vez trouxe-me á memoria o dia do desembarque, quando cheguei apozentado á minha terra, ao meu Cattete, á minha lingua. Era o mesmo que ouvi ha um anno, em 1887, e talvez fosse a mesma boca.

Durante os meus trinta e tantos annos de diplomacia algumas vezes vim ao Brazil, com licença. O mais do tempo vivi fóra, em varias partes, e não foi pouco. Cuidei que não acabaria de me habituar novamente a esta outra vida de cá. Pois acabei. Certamente ainda me lembram cousas e pessoas de longe, diversões, paizagens, costumes, mas não morro de saudades por nada. Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei.

Cinco horas da tarde.

Recebi agora um bilhete de mana Rita, que aqui vae colado:

9 de Janeiro.

«Mano,


«Só agora me lembrou que faz hoje um anno que você voltou da Europa apozentado. Já é tarde para ir ao cemiterio de S. João Baptista, em visita ao jazigo da familia, dar graças pelo seu regresso; irei amanhã de manhã, e peço a você que me espere para ir commigo. Saudades da

«Velha mana,

«Rita.»

Não vejo necessidade disso, mas respondi que sim.

10 de Janeiro.

Fomos ao cemiterio. Rita, apezar da alegria do motivo, não pôde reter algumas velhas lagrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu pae e minha mãe. Ella ainda agora o ama, como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos annos. No caixão do defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, então pretos, emquanto os mais delles ficaram a embranquecer cá fóra.

Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples,—a inscrição e uma cruz,—mas o que está é bem feito. Achei-o novo de mais, isso sim. Rita fal-o lavar todos os mezes, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho tumulo dá melhor impressão do oficio, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrario parece sempre da vespera.

Rita orou deante delle alguns minutos, emquanto eu circulava os olhos pelas sepulturas proximas. Em quasi todas havia a mesma antiga suplica da nossa: «Orai por elle! Orai por ella!» Rita me disse depois, em caminho, que é seu costume atender ao pedido das outras, rezando uma prece por todos que alli estão. Talvez seja a unica. A mana é boa creatura, não menos que alegre.

A impressão que me dava o total do cemiterio é a que me deram sempre outros; tudo alli estava parado. Os gestos das figuras, anjos e outras, eram diversos, mas immoveis. Só alguns passaros davam sinal de vida, buscando-se entre si e pousando nas ramagens, pipilando ou gorgeando. Os arbustos viviam calados, na verdura e nas flores.

Já perto do portão, á saída, falei a mana Rita de uma senhora que eu vira ao pé de outra sepultura, ao lado esquerdo do cruzeiro, em quanto ella rezava. Era moça, vestia de preto, e parecia rezar tambem, com as mãos cruzadas e pendentes. A cara não me era extranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilissima, como ouvi dizer de outras em Roma.

—Onde está?

Disse-lhe onde estava. Quiz ver quem era. Rita, alem de boa pessoa, é curiosa, sem todavia chegar ao superlativo romano. Respondi-lhe que esperassemos alli mesmo, ao portão.

—Não! pode não vir tão cedo, vamos espial-a de longe. É assim bonita?

—Pareceu-me.

Entrámos e enfiámos por um caminho entre campas, naturalmente. A alguma distancia, Rita deteve-se.

—Você conhece, sim. Já a viu lá em casa, ha dias.

—Quem é?

—É a viuva Noronha. Vamos embora, antes que nos veja.

Já agora me lembrava, ainda que vagamente, de uma senhora que lá apareceu em Andarahy, a quem Rita me aprezentou e com quem falei alguns minutos.

—Viuva de um medico, não é?

—Isso; filha de um fazendeiro da Parahyba do Sul, o barão de Santa-Pia.

Nesse momento, a viuva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. Talvez quizesse beijar a sepultura, o proprio nome do marido, mas havia gente perto, sem contar dous coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquella manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa: «Eras capaz de levar um daquelles ao morro? Só se fossem quatro como tu.» Tratavam de caixão pezado, naturalmente, mas eu voltei depressa a atenção para a viuva, que se afastava e caminhava lentamente, sem mais olhar para traz. Encoberto por um mausoleu, não a pude ver mais nem melhor que a principio. Ella foi descendo até o portão, onde passava um bonde em que entrou e partiu. Nós descemos depois e viemos no outro.

Rita contou-me então alguma cousa da vida da moça e da felicidade grande que tivera com o marido, alli sepultado ha mais de dous annos. Pouco tempo viveram juntos. Eu, não sei por que inspiração maligna, arrisquei esta reflexão:

—Não quer dizer que não venha a cazar outra vez.

—Aquella não caza.

—Quem lhe diz que não?

—Não caza; basta saber as circumstancias do cazamento, a vida que tiveram e a dor que ella sentiu quando enviuvou.

—Não quer dizer nada, pode cazar; para cazar basta estar viuva.

—Mas eu não cazei.

—Você é outra cousa, você é unica.

Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura, e abanando a cabeça, como se me chamasse «peralta». Logo ficou seria, porque a lembrança do marido fazia-a realmente triste. Meti o caso á bulha; ella, depois de aceitar uma ordem de ideias mais alegre, convidou-me a ver se a viuva Noronha cazava commigo; apostava que não.

—Com os meus sessenta e dous annos?

—Oh! não os parece: tem a verdura dos trinta.

Pouco depois chegámos a casa e Rita almoçou commigo. Antes do almoço, tornámos a falar da viuva e do cazamento, e ella repetiu a aposta. Eu, lembrando-me de Goethe, disse-lhe:

—Mana, você está a querer fazer commigo a aposta de Deus e de Mephistopheles; não conhece?

—Não conheço.

Fui á minha pequena estante e tirei o volume do Fausto, abri a pagina do prologo no ceu, e li-lh'a, resumindo como pude. Rita escutou atenta o desafio de Deus e do Diabo, a proposito do velho Fausto, o servo do Senhor, e da perda infalivel que faria delle o astuto. Rita não tem cultura, mas tem finura, e naquella ocasião tinha principalmente fome. Replicou rindo:

—Vamos almoçar. Não quero saber desses prologos nem de outros; repito o que disse, e veja você se refaz o que lá vae desfeito. Vamos almoçar.

Fomos almoçar; ás duas, horas Rita voltou para Andarahy, eu vim escrever isto e vou dar um giro pela cidade.

12 de Janeiro.

Na conversa de ante-hontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a minha mulher, que lá está enterrada em Vienna. Pela segunda vez falou-me em transportal-a para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que estimaria muito estar perto della, mas que, em minha opinião, os mortos ficam bem onde caem; redarguiu-me que estão muito melhor com os seus.

—Quando eu morrer, irei para onde ella estiver, no outro mundo, e ella virá ao meu encontro, disse eu.

Sorriu, e citou o exemplo da viuva Noronha que fez transportar o marido de Lisboa, onde faleceu, para o Rio de Janeiro, onde ella conta acabar. Não disse mais sobre este assunto, mas provavalmente tornará a elle, até alcançar o que lhe parece. Já meu cunhado dizia que era seu costume della, quando queria alguma cousa.

Outra cousa que não escrevi foi a alusão que ella fez á gente Aguiar, um cazal que conheci a ultima vez que vim, com licença, ao Rio de Janeiro, e agora encontrei. São amigos della e da viuva, e celebram daqui a dez ou quinze dias as suas bodas de prata. Já os visitei duas vezes e o marido a mim. Rita falou-me delles com simpatia e aconselhou-me a ir comprimental-os por ocasião das festas anniversarias.

—Lá encontrará Fidelia.

—Que Fidelia?

—A viuva Noronha.

—Chama-se Fidelia?

—Chama-se.

—O nome não basta para não cazar.

—Tanto melhor para você, que vencerá a pessoa e o nome, e acabará cazando com a viuva. Mas eu repito que não caza.

14 de Janeiro.

A unica particularidade da biografia de Fidelia é que o pae e o sogro eram inimigos politicos, chefes de partido na Parahyba do Sul. Inimizade de familias não tem impedido que moços se amem, mas é preciso ir a Verona ou alhures. E ainda os de Verona dizem comentadores que as familias de Romeo e de Julieta eram antes amigas e do mesmo partido; tambem dizem que nunca existiram, salvo na tradição ou somente na cabeça de Shakespeare.

Nos nossos municipios, ao norte, ao sul e ao centro, creio que não ha caso algum. Aqui a oposição dos rebentos continua a das raizes, e cada arvore brota de si mesma, sem lançar galhos a outra, e esterilisando-lhe o terreno, se pode. Eu, se fosse capaz de odio, era assim que odiava; mas eu não odeio nada nem ninguem,—perdono a tutti, como na opera.

Agora, como foi que elles se amaram,—os namorados da Parayba do Sul,—é o que Rita me não referiu, e seria curioso saber. Romeo e Julieta aqui no Rio, entre a lavoura e a advocacia,—porque o pae do nosso Romeo era advogado na cidade da Parahyba,—é um desses encontros que importaria conhecer para explicar. Rita não entrou nesses pormenores; eu, se me lembrar, heide pedir-lh'os. Talvez ella os recuse imaginando que começo deveras a morrer pela dama.

16 de Janeiro.

Tão depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente delle, que para lá ia. Comprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me noticias de Rita, e falámos durante alguns minutos sobre cousas geraes.

Isto foi hontem. Hoje de manhã recebi um bilhete de Aguiar, convidando-me, em nome da mulher e delle, a ir lá jantar no dia 24. São as bodas de prata. «Jantar simples e de poucos amigos» escreveu elle. Soube depois que é festa recolhida. Rita vae tambem. Resolvi aceitar, e vou.

20 de Janeiro.

Tres dias metido em casa, por um resfriamento com pontinha de febre. Hoje estou bom, e segundo o medico, posso ja sair amanhã; mas poderei ir ás bodas de prata dos velhos Aguiares? Profissional cauteloso, o Dr. Silva me aconselhou que não vá; mana Rita que tratou de mim dous dias, é da mesma opinião. Eu não a tenho contraria, mas se me achar lepido e robusto, como é possivel, custar-me-ha não ir. Veremos; tres dias passam depressa.

Seis horas da tarde.

Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma cousa de Shelley e tambem de Thackeray. Um consolou-me de outro, este desenganou-me d'aquelle; é assim que o engenho completa o engenho, e o espirito aprende as linguas do espirito.

Nove horas da noite.

Rita jantou commigo; disse-lhe que estou são como um pero, e com forças para ir ás bodas de prata. Ella, depois de me aconselhar prudencia, concordou que, se não tiver mais nada, e fôr comedido ao jantar, posso ir; tanto mais que os meus olhos terão lá dieta absoluta.

—Creio que Fidelia não vae, explicou.

—Não vae?

—Estive hoje com o desembargador Campos, que me disse haver deixado a sobrinha com a nevralgia do costume. Padece de nevralgias. Quando ellas lhe aparecem é por dias, e não vão sem muito remedio e muita paciencia. Talvez vá visital-a amanhã ou depois.

Rita acrescentou que para o casal Aguiar é meio desastre; contavam com ella, como um dos encantos da festa. Querem-se muito, elles a ella, e ella a elles, e todos se merecem, é o parecer de Rita e pode vir a ser o meu.

—Creio. Já agora, se me não sentir impedido, irei sempre. Tambem a mim parece boa gente a gente Aguiar. Nunca tiveram filhos?

—Nunca. São muito afetuosos, D. Carmo ainda mais que o marido. Você não imagina como são amigos um do outro. Eu não os frequento muito, porque vivo metida commigo, mas o pouco que os visito basta para saber o que valem, ella principalmente. O desembargador Campos, que os conhece desde muitos annos, pode dizer-lhe o que elles são.

—Haverá muita gente ao jantar?

—Não, creio que pouca. A maior parte dos amigos irá de noite. Elles são modestos, o jantar é só dos mais intimos, e por isso o convite que fizeram a você mostra grande simpatia pessoal.

—Já senti isso, quando me apresentaram a elles, ha sete annos, mas então supuz que era mais por causa do ministro que do homem. Agora, quando me receberam, foi com muito gosto. Pois lá vou no dia 24, haja ou não haja Fidelia.

25 de Janeiro.

Lá fui hontem ás bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as minhas impressões da noite.

Não podiam ser melhores. A primeira dellas foi a união do casal. Sei que não é seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação moral de duas pessoas. Naturalmente a ocasião aviva a memoria dos tempos passados, e a affeição dos outros como que ajuda a duplicar a propria. Mas não é isso. Ha nelles alguma cousa superior á oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti que os annos tinham ali reforçado e apurado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma só e unica. Não senti, não podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite.

Aguiar veiu receber-me á porta da sala,—eu diria que com uma intenção de abraço, se pudesse havel-a entre nós e em tal logar; mas a mão fez esse oficio, apertando a minha efusivamente. É homem de sessenta annos feitos (ella tem cincoenta), corpo antes cheio que magro, agil, ameno e risonho. Levou-me á mulher, a um lado da sala, onde ella conversava com duas amigas. Não era nova para mim a graça da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu comprimento davam-lhe á expressão do rosto algo que tolera bem a qualificação de radiante. Estendeu-me a mão, ouviu-me e inclinou a cabeça, olhando de relance para o marido.

Senti-me objeto dos cuidados de ambos. Rita chegou pouco depois de mim; vieram vindo outros homens e senhoras, todos de mim conhecidos, e vi que eram familiares da casa. Em meio da conversação, ouvi esta palavra inesperada a uma senhora, que dizia a outra:

—Não vá Fidelia ter ficado peor.

—Ella vem? perguntou a outra.

—Mandou dizer que vinha; está melhor; mas talvez lhe faça mal.

O mais que as duas disseram, relativamente á viuva, foi bem. O que me dizia um dos convidados apenas foi ouvido por mim, sem lhe prestar atenção maior que o assunto nem perder as aparencias della. Pela hora proxima do jantar supuz que Fidelia não viesse. Supuz errado. Fidelia e o tio foram os ultimos chegados, mas chegaram. O alvoroço com que D. Carmo a recebeu mostrava bem a alegria de a ver ali, apenas convalecida, e apezar do risco de voltar á noite. O prazer de ambas foi grande.

Fidelia não deixou inteiramente o luto; trazia ás orelhas dous coraes, e o medalhão com o retrato do marido, ao peito, era de ouro. O mais do vestido e adorno escuro. As joias e um raminho de myosotis á cinta vinham talvez em homenagem á amiga. Já de manhã lhe enviara um bilhete de comprimentos acompanhando o pequeno vaso de porcelana, que estava em cima de um movel com outros presentinhos anniversarios.

Ao vel-a agora, não a achei menos saborosa que no cemiterio, e ha tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa tambem. Parece feita ao torno, sem que este vocabulo dê nenhuma ideia de rigidez; ao contrario, é flexivel. Quero aludir somente á correção das linhas,—falo das linhas vistas; as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pelle macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal á viuvez. Foi o que vi logo á chegada, e mais os olhos e os cabelos pretos; o resto veiu vindo pela noite adiante, até que ella se foi embora. Não era preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e na conversação. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que pensei da pessoa. Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso justamente de Shelley, que relera dias antes, em caza, como lá ficou dito atraz, e tirado de uma das suas estancias de 1821:

I can give not what men call love.

Assim disse commigo em inglez, mas logo depois repeti em prosa nossa a confissão do poeta, com um fecho da minha composição: «Eu não posso dar o que os homens chamam amor... e é pena!»

Esta confissão não me fez menos alegre. Assim, quando D. Carmo veiu tomar-me o braço, segui como se fosse para um jantar de nupcias. Aguiar deu o braço a Fidelia, e sentou-se entre ella e a mulher. Escrevo estas indicações sem outra necessidade mais que a de dizer que os dous conjuges, ao pé um do outro, ficaram ladeados pela amiga Fidelia e por mim. Desta maneira pudemos ouvir palpitar o coração aos dous,—hiperbole permitida para dizer que em ambos nós, em mim, ao menos, repercutia a felicidade daquelles vinte e cinco annos de paz e consolação.

A dona da casa, afavel, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz naquella data; não menos o marido. Talvez elle fosse ainda mais feliz que ella, mas não saberia mostral-o tanto. D. Carmo possue o dom de falar e viver por todas as feições, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em poucas mulheres, ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto dão á velhice um relevo particular, e fazem cazar nella todas as idades. Não sei se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas folhas de solitario.

De quando em quando, ella e o marido trocavam as suas impressões com os olhos, e pode ser que tambem com a fala. Uma só vez a impressão visual foi melancolica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos convivas,—sempre ha indiscretos,—no brinde que lhes fez aludiu á falta de filhos, dizendo «que Deus lh'os negara para que elles se amassem melhor entre si.» Não falou em verso, mas a ideia suportaria o metro e a rima, que o autor talvez houvesse cultivado em rapaz; orçava agora pelos cincoenta annos, e tinha um filho. Ouvindo aquella referencia, os dous fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana Rita me disse depois que essa era a unica ferida do cazal. Creio que Fidelia percebeu tambem a expressão de tristeza dos dous, porque eu a vi inclinar-se para ella com um gesto do calis e brindar a D. Carmo cheia de graça e ternura:

—Á sua felicidade.

A esposa Aguiar, comovida, apenas pode responder logo com o gesto; só instantes depois de levar o calis á boca, acrescentou, em voz meia surda, como se lhe custasse sair do coração apertado esta palavra de agradecimento:

—Obrigada.

Tudo foi assim segredado, quasi calado. O marido aceitou a sua parte do brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de melancolia.

De noite vieram mais visitas; tocou-se, tres ou quatro pessoas jogaram cartas. Eu deixei-me estar na sala, a mirar aquella porção de homens alegres e de mulheres verdes e maduras, dominando a todas pelo aspecto particular da velhice D. Carmo, e pela graça apetitosa da mocidade de Fidelia; mas a graça desta trazia ainda a nota da viuvez recente, aliás de dous annos. Shelley continuava a murmurar ao meu ouvido para que eu repetisse a mim mesmo: I can give not what men call love.

Quando transmiti esta impressão a Rita, disse ella que eram desculpas de mau pagador, isto é que eu, temendo não vencer a resistencia da moça, dava-me por incapaz de amar. E pegou daqui para novamente fazer a apologia da paixão conjugal de Fidelia.

—Todas as pessoas daqui e de fora que os viram,—continuou,—podem dizer a você o que foi aquelle cazal. Basta saber que se uniram, como já lhe disse, contra a vontade dos dous paes, e amaldiçoados por ambos. D. Carmo tem sido confidente da amiga, e não repete o que lhe ouve por discreta, resume só o que pode, com palavras de afirmação e de admiração. Tenho-as ouvido muita vez. A mim mesma Fidelia conta alguma cousa. Converse com o tio... Olhe, elle que lhe diga tambem da gente Aguiar...

Neste ponto interrompi:

—Pelo que ouço, emquanto eu andava lá fóra, a reprezentar o Brazil, o Brazil fazia-se o seio de Abrahão. Você, o cazal Aguiar, o cazal Noronha, todos os cazaes, em suma, faziam-se modelos de felicidade perpetua.

—Pois peça ao desembargador que lhe diga tudo.

—Outra impressão que levo desta casa e desta noite é que as duas damas, a casada e a viuva, parecem amar-se como mãe e filha, não é verdade?

—Creio que sim.

—A viuva tambem não tem filhos?

—Tambem não. É um ponto de contacto.

—Ha um ponto de desvio; é a viuvez de Fidelia.

—Isso não; a viuvez de Fidelia está com a velhice de D. Carmo; mas se você acha que é desvio tem nas suas mãos concertal-o, é arrancar a viuva á viuvez, se puder; mas não pode, repito.

A mana não costuma dizer pilherias, mas quando lhe sae alguma tem pico. Foi o que eu lhe disse então, ao metel-a no carro que a levou a Andarahy, em quanto eu vim a pé para o Cattete. Esqueceu-me dizer que a casa do Aguiar é na praia do Flamengo, ao fundo de um pequeno jardim, casa velha mas solida.

Sabado.

Hontem encontrei um velho conhecido do corpo diplomatico e prometi ir jantar com elle amanhã em Petropolis. Subo hoje e volto segunda-feira. O peor é que accordei de mau humor, e antes quizera ficar que subir. E dahi pode ser que a mudança de ar e de espectaculo altere a disposição do meu espirito. A vida, mormente nos velhos, é um oficio cançativo.

Segunda-Feira.

Desci hoje de Petropolis. Sabado, ao sair a barca da Prainha, dei com o desembargador Campos a bordo, e foi um bom encontro, porque dahi a pouco o meu mau humor cedia, e cheguei a Mauá já meio curado. Na estação de Petropolis estava restabelecido inteiramente.

Não me lembra se ja escrevi neste Memorial que o Campos foi meu colega de anno em S. Paulo. Com o tempo e a ausencia perdemos a intimidade, e quando nos vimos outra vez, o anno passado, apezar das recordações escolasticas que surgiram entre nós, eramos estranhos. Vimo-nos algumas vezes, e passámos uma noite no Flamengo; mas a diferença da vida tinha ajudado o tempo e a ausencia.

Agora na barca fomos reatando melhor os laços antigos. A viagem por mar e por terra, eram de sobra para avivar alguma cousa da vida escolar. Bastante foi; acabámos lavados da velhice.

Ao subir a serra as nossas impressões divergiram um tanto. Campos achava grande prazer na viagem que iamos fazendo em trem de ferro. Eu confessava-lhe que tivera maior gosto quando alli ia em caleças tiradas a burros, umas atraz das outras, não pelo vehiculo em si, mas porque ia vendo, ao longe, cá em baixo, aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade com tantos aspectos pintorescos. O trem leva a gente de corrida, de afogadilho, desesperado, até á propria estação de Petropolis. E mais lembrava as paradas, aqui para beber café, alli para beber agua na fonte celebre, e finalmente avistado alto da serra, onde os elegantes de Petropolis aguardavam a gente e a acompanhavam nos seus carros e cavalos até á cidade; alguns dos passageiros de baixo passavam alli mesmo para os carros onde as familias esperavam por elles.

Campos continuou a dizer todo o bem que achava no trem de ferro, como prazer e como vantagem. Só o tempo que a gente poupa! Eu, se retorquisse dizendo-lhe bem do tempo que se perde, iniciaria uma especie de debate que faria a viagem ainda mais sufocada e curta. Preferi trocar de assunto e agarrei-me aos derradeiros minutos, falei do progresso, elle tambem, e chegamos satisfeitos á cidade da serra.

Os dous fomos para o mesmo hotel (Bragança). Depois de jantar saimos em passeio de digestão, ao longo do rio. Então, a proposito dos tempos passados, falei do cazal Aguiar e do conhecimento que Rita me disse que elle tinha da vida e da mocidade dos dous conjuges. Confessei achar nestes um bom exemplo de aconchego e união. Talvez a minha intenção secreta fosse passar dalli ao cazamento da propria sobrinha delle, suas condições e circumstancias, cousa dificil pela curiosidade que podia exprimir, e aliás não está nos meus habitos, mas elle não me deu azo nem tempo. Todo este foi pouco para dizer da gente Aguiar. Ouvi com paciencia, porque o assunto entrou a interessar-me depois das primeiras palavras, e tambem porque o desembargador fala mui agradavelmente. Mas agora é tarde para transcrever o que elle disse; fica para depois, um dia, quando houver passado a impressão, e só me ficar de memoria o que valer a pena guardar.

4 de Fevereiro.

Eia, resumamos hoje o que ouvi ao desembargador em Petropolis ácerca do cazal Aguiar. Não ponho os incidentes, nem as anedotas soltas, e até excluo os adjectivos que tinham mais interesse na boca delle do que lhes poderia dar a minha penna; vão só os precisos á comprehensão de cousas e pessoas.

A razão que me leva a escrever isto é a que entende com a situação moral dos dous, e prende um tanto com a viuva Fidelia. Quanto á vida delles eil-a aqui em termos secos, curtos e apenas biograficos. Aguiar cazou guarda-livros. D. Carmo vivia então com a mãe, que era de Nova-Friburgo, e o pae, um relojoeiro suisso daquella cidade. Cazamento a grado de todos. Aguiar continuou guarda-livros, e passou de uma caza a outra e mais outra, fez-se socio da ultima, até ser gerente de banco, e chegaram á velhice sem filhos. É só isto, nada mais que isto. Viveram até hoje sem bulha nem matinada.

Queriam-se, sempre se quizeram muito, apezar dos ciumes que tinham um do outro, ou por isso mesmo. Desde namorada, ella exerceu sobre elle a influencia de todas as namoradas deste mundo, e acaso do outro, se as ha tão longe. Aguiar contára uma vez ao desembargador os tempos amargos em que, ajustado o cazamento, perdeu o emprego por falencia do patrão. Teve de procurar outro; a demora não foi grande, mas o novo logar não lhe permitiu cazar logo, era-lhe preciso assentar a mão, ganhar confiança, dar tempo ao tempo. Ora, a alma delle era de pedras soltas; a fortaleza da noiva foi o cimento e a cal que as uniram naquelles dias de crise. Copio esta imagem que ouvi ao Campos, e que elle me disse ser do proprio Aguiar. Cal e cimento valeram-lhe logo em todos os casos de pedras desconjuntadas. Elle via as cousas pelos seus proprios olhos, mas se estes eram ruins ou doentes, quem lhe dava remedio ao mal fisico ou moral era ella.

A pobreza foi o lote dos primeiros tempos de cazados. Aguiar dava-se a trabalhos diversos para acudir com suprimentos á escassez dos vencimentos. D. Carmo guiava o serviço domestico ajudando o pessoal deste e dando aos arranjos da casa o conforto que não poderia vir por dinheiro. Sabia conservar o bastante e o simples; mas tão ordenadas as cousas, tão completadas pelo trabalho das mãos da dona que captavam os olhos ao marido e ás visitas. Todas ellas traziam uma alma, e esta era nada menos que a mesma, repartida sem quebra e com alinho raro, unindo o gracioso ao precizo. Tapetes de meza e de pés, cortinas de janelas e outros mais trabalhos que vieram com os annos, tudo trazia a marca da sua fabrica, a nota intima da sua pessoa. Teria inventado, se fosse preciso, a pobreza elegante.

Criaram relações variadas, modestas como elles e de boa camaradagem. Neste capitulo a parte de D. Carmo é maior que a de Aguiar. Já em menina era o que foi depois. Havendo estudado em um colegio do Engenho Velho, a moça acabou sendo considerada a primeira alumna do estabelecimento, não só sem desgosto, tacito ou expresso, de nenhuma companheira, mas com prazer manifesto e grande de todas, recentes ou antigas. A cada uma pareceu que se tratava de si mesma. Era então algum prodigio de talento? Não, não era; tinha a inteligencia fina, superior ao comum das outras, mas não tal que as reduzisse a nada. Tudo provinha da indole afetuosa daquella creatura.

Dava-lhe esta o poder de atrair e conchegar. Uma cousa me disse Campos que eu havia observado de relance naquella noite das bodas de prata, é que D. Carmo agrada igualmente a velhas e a moças. Ha velhas que não sabem fazer-se entender de moças, assim como ha moças fechadas ás velhas. A senhora de Aguiar penetra e se deixa penetrar de todas; assim foi joven, assim é madura.

Campos não os acompanhou sempre, nem desde os primeiros tempos; mas quando entrou a frequental-os, viu nella o desenvolvimento da noiva e da recem-casada, e comprehendeu a adoração do marido. Este era feliz, e para socegar das inquietações e tedios de fóra, não achava melhor respiro que a conversação da espoza, nem mais doce lição que a de seus olhos. Era della a arte fina que podia restituil-o ao equilibrio e á paz.

Um dia, em casa delles, abrindo urna coleção de versos italianos, Campos achou entre as folhas um papelinho velho com algumas estrofes escritas. Soube que eram do livro, copiadas por ella nos dias de noiva, segundo ambos lhe disseram, vexados; restituiu o papel á pagina, e o volume á estante. Um e outro gostavam de versos, e talvez ella tivesse feito alguns, que deitou fóra com os últimos solecismos de familia. Ao que parece, traziam ambos em si um germen de poesia instintiva, a que faltára expressão adequada para sair ca fóra.

A ultima reflexão é minha, não do desembargador Campos, e leva o unico fim de completar o retrato deste casal. Não é que a poesia seja necessaria aos costumes, mas pode dar-lhes graça. O que eu fiz então foi perguntar ao desembargador se taes creaturas tiveram algum resentimento da vida. Respondeu-me que um, um só e grande; não tiveram filhos.

—Mana Rita disse-me isso mesmo.

—Não tiveram filhos, repetiu Campos.

Ambos queriam um filho, um só que fosse, ella ainda mais que elle. D. Carmo possuia todas as especies de ternura, a conjugal, a filial, a maternal. Campos ainda lhe conheceu a mãe, cujo retrato, encaixilhado com o do pae, figurava na sala, e falava de ambos com saudades longas e suspiradas. Não teve irmãos, mas a afeição fraternal estaria incluida na amical, em que se dividia tambem. Quanto aos filhos, se os não teve, é certo que punha muito de mãe nos seus carinhos de amiga e de esposa. Não menos certo é que para essa especie de orfandade ás avessas, tem agora um paliativo.

—D. Fidelia?

—Sim, Fidelia e teve ainda outro que acabou.

Aqui referiu-me uma historia que apenas levará meia duzia de linhas, e não é pouco para a tarde que vae baixando; digamol-a depressa.

Uma das suas amigas tivera um filho, quando D. Carmo ia em vinte e tantos annos. Sucessos que o desembargador contou por alto e não valia a pena instar por elles, trouxeram a mãe e o filho para a casa Aguiar durante algum tempo. Ao cabo da primeira semana tinha o pequeno duas mães. A mãe real precisou ir a Minas, onde estava o marido; viagem de poucos dias. D. Carmo alcançou que a amiga lhe deixasse o filho e a ama. Taes foram os primeiros liames da afeição que cresceu com o tempo e o costume. O pae era comerciante de café,—comissario,—e andava então a negocios por Minas, a mãe era filha de Taubaté, S. Paulo, amiga de viajar a cavalo. Quando veiu o tempo de batizar o pequeno, Luiza Guimarães convidou a amiga para madrinha delle. Era justamente o que a outra queria; aceitou com alvoroço, o marido com prazer, e o batizado se fez como uma festa da familia Aguiar.

A meninice de Tristão,—era o nome de afilhado,—foi dividida entre as duas mães, entre as duas cazas. Os annos vieram, o menino crescia, as esperanças maternas de D. Carmo iam morrendo. Este era o filho abençoado que o acaso lhes deparára, disse um dia o marido; e a mulher, catolica tambem na linguagem, emendou que a Providencia, e toda se entregou ao afilhado. A opinião que o desembargador achou em algumas pessoas, e creio justa, é que D. Carmo parecia mais verdadeira mãe que a mãe de verdade. O menino repartia-se bem com ambas, preferindo um pouco mais a mãe postiça. A razão podiam ser os carinhos maiores, mais continuados, as vontades mais satisfeitas e finalmente os doces, que tambem são motivos para o infante, como para o adulto. Veiu o tempo da escola, e ficando mais perto da caza Aguiar, o menino ia jantar alli, e seguia depois para as Laranjeiras, onde morava Guimarães. Algumas vezes a própria madrinha o levava.

Nas duas ou tres molestias que o pequeno teve, a aflição de D. Carmo foi enorme. Uso o proprio adjetivo que ouvi ao Campos, com quanto me pareça enfatico, e eu não amo a enfasis. Confesso aqui uma cousa. D. Carmo é das poucas pessoas a quem nunca ouvi dizer que são «doudas por morangos», nem que «morrem por ouvir Mozart.» Nella a intensidade parece estar mais no sentimento que na expressão. Mas, emfim, o desembargador assistiu á ultima das molestias do menino, que foi em casa da madrinha, e pôde ver a aflição de D. Carmo, os seus afagos e sustos, alguns minutos de desespero e de lagrimas, e finalmente a alegria de restabelecimento. A mãe era mãe, e sentiu de certo, e muito, mas diz elle que não tanto; é que haverá ternuras atadas, ou ainda moderadas, que se não mostram inteiramente a todos.

Doenças, alegrias, esperanças, todo o repertorio daquella primeira quadra da vida de Tristão foi visto, ouvido e sentido pelos dous padrinhos, e mais pela madrinha, como se fora do seu proprio sangue. Era um filho que alli estava, que fez dez annos, fez onze, fez doze, crescendo em altura e graça. Aos treze annos, sabendo que o pae o destinava ao comercio, foi ter com a madrinha e confiou-lhe que não tinha gosto para tal carreira.

—Porque, meu filho?

D. Carmo usava este modo de falar, que a idade e o parentesco espiritual lhe permitiam, sem usurpação de ninguem. Tristão confessou-lhe que a sua vocação era outra. Queria ser bacharel em direito. A madrinha defendeu a intenção do pae, mas com ella Tristão era ainda mais voluntarioso que com elle e a mãe, e teimou em estudar direito e ser doutor. Se não havia propriamente vocação, era este titulo que o atraía.

—Quero ser doutor! quero ser doutor!

A madrinha acabou achando que era bom, e foi defender a causa do afilhado. O pae deste relutou muito. «Que havia no comercio que não fosse honrado, além de lucrativo? Demais, elle não ia começar sem nada, como sucedia a outros e sucedeu ao proprio pae, mas já amparado por este.» Deu-lhe outras mais razões, que D. Carmo ouviu sem negar, alegando sempre que o importante era ter gosto, e se o rapaz não tinha gosto, melhor era ceder ao que lhe aprazia. Ao cabo de alguns dias o pae de Tristão cedeu, e D. Carmo quiz ser a primeira que désse ao rapaz a boa nova. Ella propria sentia-se feliz.

Cinco ou seis mezes depois, o pae de Tristão resolveu ir com a mulher cumprir uma viagem marcada para o anno seguinte,—visitar a familia delle; a mãe de Guimarães estava doente. Tristão, que se preparava para os estudos, tão depressa viu apressar a viagem dos paes, quiz ir com elles. Era o gosto da novidade, a curiosidade da Europa, algo diverso das ruas do Rio de Janeiro, tão vistas e tão cançadas. Pae e mãe recusaram leval-o; elle insistiu. D. Carmo, a quem elle recorreu outra vez, recusou-se agora, porque seria afastal-o de si, ainda que temporariamente; juntou-se aos paes do mocinho para conserval-o aqui. Aguiar desta vez tomou parte ativa na luta; mas não houve luta que valesse. Tristão queria á fina força embarcar para Lisboa.

—Papae volta daqui a seis mezes; eu volto com elle. Que são seis mezes?

—Mas os estudos? dizia-lhe Aguiar. Você vae perder um anno...

—Pois que se perca um anno. Que é um anno que não valha a pena sacrifical-o ao gosto de ir ver a Europa?

Aqui D. Carmo teve uma inspiração; prometeu-lhe que, tão depressa elle se formasse, ella iria com elle viajar, não seis mezes, mas um anno ou mais; elle teria tempo de ver tudo, o velho e o novo, terras, mares, costumes... Estudasse primeiro. Tristão não quiz. A viagem se fez, a despeito das lagrimas que custou.

Não ponho aqui taes lagrimas, nem as promessas feitas, as lembranças dadas, os retratos trocados entre o afilhado e os padrinhos. Tudo se afirmou de parte a parte, mas nem tudo se cumpriu; e, se de lá vieram cartas, saudades e noticias, quem não veiu foi elle. Os paes foram ficando muito mais tempo que o marcado, e Tristão começou o curso da Escola Medica de Lisboa. Nem comercio nem jurisprudencia.

Aguiar escondeu quanto pôde a noticia á mulher, a ver se tentava alguma cousa que trocasse as mãos á sorte, e restituisse o rapaz ao Brazil; não alcançou nada, e elle proprio não podia já disfarçar a tristeza. Deu a dura novidade á mulher, sem lhe acrescentar remedio nem consolação; ella chorou longamente. Tristão escreveu comunicando a mudança de carreira e prometendo vir para o Brazil, apenas formado; mas dahi a algum tempo eram as cartas que escasseavam e acabaram inteiramente, ellas e os retratos, e as lembranças; provavelmente não ficaram lá saudades. Guimarães aqui veiu, sosinho, com o unico fim de liquidar o negocio, e embarcou outra vez para nunca mais.

5 de Fevereiro.

Relendo o que escrevi hontem, descubro que podia ser ainda mais resumido, e principalmente não lhe pôr tantas lagrimas. Não gosto dellas, nem sei se as verti algum dia, salvo por mama, em menino; mas lá vão. Pois vão tambem essas que ahi deixei, e mais a figura de Tristão, a que cuidei dar meia duzia de linhas e levou a maior parte dellas. Nada ha peor que gente vadia,—ou apozentada, que é a mesma cousa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não ha papel que baste.

Entretanto, não disse tudo. Verifico que me faltou um ponto da narração do Campos. Não falei das ações do Banco do Sul, nem das apolices, nem das cazas que o Aguiar possue, alem dos honorarios de gerente; terá uns duzentos e poucos contos. Tal foi a afirmação do Campos, á beira do rio, em Petropolis. Campos é homem interessante, posto que sem variedade de espirito; não importa, uma vez que sabe despender o que tem. Verdade é que tal regra levaria a gente a aceitar toda casta de insipidos. Elle não é destes.

6 de Fevereiro.

Outra cousa que tambem não escrevi no dia 4, mas essa não entrou na narração do Campos. Foi ao despedir-me delle, que lá ficou em Petropolis tres ou quatro dias. Como eu lhe deixasse recomendações para a sobrinha, ouvi-lhe que me respondeu:

—Está em casa da gente Aguiar; passou lá a tarde e a noite de hontem, e conta ficar até que eu desça.

6 de Fevereiro, á noite.

Diferença de vocações: o cazal Aguiar morre por filhos, eu nunca pensei nelles, nem lhes sinto a falta, apezar de só. Alguns ha que os quizeram, que os tiveram e não souberam guardal-os.

10 de Fevereiro.

Hontem, indo jantar a Andarahy, contei a mana Rita o que ouvi ao desembargador.

—Elle não disse nada da sobrinha?

—Todo o tempo foi pouco para falar da gente Aguiar.

—Pois eu soube o que me faltava de Fidelia; foi a propria D. Carmo que me contou.

—Se a historia é tão longa como a della...

—Não, é muito mais curta; diz-se em cinco minutos.

Tirei o relogio para ver a hora exata, e marcar o tempo da narração. Rita começou e acabou em dez minutos. Justamente o dobro. Mas o assunto era curioso, trata-se do cazamento, e a viuva interessa-me.

—Conheceram-se aqui na Corte, disse Rita; na roça nunca se viram. Fidelia passava uns tempos em casa do desembargador (a tia ainda era viva), e o rapaz. Eduardo, estudava na Escola de Medicina. A primeira vez que elle a viu foi das torrinhas do Teatro Lirico, onde estava com outros estudantes; viu-a á frente de um camarote, ao pé da tia. Tornou a vel-a, foi visto por ella, e acabaram namorados um do outro. Quando souberam quem eram, já o mal estava feito, mas provavelmente o mal se faria, ainda que o soubessem desde principio, porque a paixão foi repentina. O pae de Fidelia, vindo á Corte, teve noticia do caso pelo proprio irmão, que cautelosamente lhe disse o que desconfiava, e insinuou que era boa ocasião de fazerem as pazes as duas familias. O barão ficou furioso, pegou da moça e levou-a para a fazenda. Você não imagina o que lá se passou.

—Imagino, imagino.

—Não imagina.

—Pôl-a no tronco?

—Não, protestou Rita; não fez mais que ameaçal-a com palavras, mas palavras duras, dizendo-lhe que a poria fora de casa, se continuasse a pensar em tal atrevimento. Fidelia jurou uma e muitas vezes que tinha um noivo no coração e cazaria com elle, custasse o que custasse. A mãe estava do lado do marido, e opoz-se tambem. Fidelia resistiu e recolheu-se ao silencio, passava os dias no quarto, chorando. As mucamas viam as lagrimas e os sinaes dellas, e desconfiavam de amores, até que adivinharam a pessoa, se não foi palavra que ouviram aos proprios senhores. Emfim, a moça entrou a não querer comer. Vendo isto, a mãe, com receio de algum acesso de molestia, começou a pedir por ella, mas o marido declarou que não lhe importava vel-a morta ou até douda; antes isso que consentir na mistura do seu sangue com o da gente Noronha. A oposição da gente Noronha não foi menor. Ao saber da paixão do filho pela filha do fazendeiro, o pae de Eduardo mandou-lhe dizer que o deixaria na rua, se teimasse em semelhante afronta.

—Como inimigos eram dignos um do outro, observei.

—Eram, concordou Rita. O desembargador soube o que se passava e foi á fazenda, onde viu tudo confirmado, e disse ao irmão que não valia opor-se, porque a filha, chegada á maioridade, podia arrancar-se de caza. Ninguem obrigava a humilhar-se deante da gente Noronha, nem a fazer as pazes com ella; bastava que os filhos cazassem e fossem para onde quizessem. O barão recusou a pés juntos, e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte, sem continuar a comissão que se dera a si mesmo, quando Fidelia adoeceu deveras. A doença foi grave, a cura dificil pela recusa dos remedios e alimentos... Que sorriso é esse? Não acredita?

—Acredito, acredito; acho romanesco. Em todo caso, essa moça interessa-me. A cura, dizia você, foi dificil?

—Foi; a mãe resolveu pedir ao marido que cedesse, o marido concedeu finalmente, impondo a condição de nunca mais receber a filha nem lhe falar; não assistiria ao cazamento, não queria saber della. Restabelecida, Fidelia veiu com o tio, e no anno seguinte cazou. O pae do noivo tambem declarou que os não queria ver.

—Tanta luta para não serem felizes por muito tempo.

—É verdade. A felicidade foi grande mas curta. Um dia resolveram ir á Europa, e foram, até que se deu a morte inesperada do marido, em Lisboa, donde Fidelia fez transportar o corpo para aqui. Você lá a viu ao pé da sepultura; lá vae muitas vezes. Pois nem assim o pae, que tambem já é viuvo, nem assim quiz receber a filha. Quando veiu á Corte a primeira vez, Fidelia foi ter com elle, sosinha, depois com o tio; todas as tentativas foram inuteis. Nunca mais a viu nem lhe falou. Eu, mais ou menos, já contei isto a você; só não conhecia bem as particularidades da resistencia na fazenda, mas ahi está. Agora diga se ella é viuva que se caze.

—Com qualquer, não; pelo menos, é dificil; mas, um sujeito fresco,—continuei enfunando-me e rindo.

—Você ainda pensa...?

—Eu, mana? Eu penso no seu jantar, que hade estar delicioso. O que me fica da historia é que essa moça, além de bonita, é teimosa; mas a sua sopa vale para mim todas as noções esteticas e moraes deste mundo e do outro.

Ao jantar, contei a Rita o que me dissera o desembargador sobre haver ido a sobrinha passar alguns dias ao Flamengo, e perguntei-lhe se era assim a intimidade na casa.

—Certamente que é. Já uma vez Fidelia adoeceu no Flamengo e lá se tratou. Tendo perdido a esperança do filho postiço, o Tristão, que os esqueceu inteiramente, ficaram cada vez mais ligados á viuva. D. Carmo é toda ternura para ella. Você lembra-se das bodas de prata, não? Aguiar não lhe chama filha para não parecer que usurpa esse titulo ao pae verdadeiro; mas a mulher, não tendo ella mãe, é o nome que lhe dá. Nem Fidelia parece querer outra mãe.

11 de Fevereiro.

Antigamente, quando eu era menino, ouvia dizer que ás creanças só se punham nomes de santos ou santas. Mas Fidelia...? Não conheço santa com tal nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado á filha do barão, como a fórma feminina de Fidelio, em homenagem a Beethoven? Pode ser; mas eu não sei se elle teria dessas inspirações e reminiscencias artisticas. Verdade é que o nome da familia, que serve ao titulo nobiliario, Santa-Pia, tambem não o acho na lista dos canonisados, e a unica pessoa que conheço, assim chamada, é a de Dante: Ricorditi di me, chi son la Pia.

Parece que já não queremos Annas nem Marias, Catarinas nem Joannas, e vamos entrando em outra onomastica, para variar o aspeto ás pessoas. Tudo serão modas neste mundo, excepto as estrelas e eu, que sou o mesmo antigo sujeito, salvo o trabalho das notas diplomaticas, agora nenhum.

18 de Fevereiro.

Campos disse-me hoje que o irmão lhe escrevera, em segredo, ter ouvido na roça o boato de uma lei proxima de abolição. Elle, Campos, não crê que este ministerio a faça, e não se espera outro.

24 de Fevereiro.

A data de hoje (revolução de 1848) lembra-me a festa de rapazes que tivemos em S. Paulo, e um brinde que eu fiz ao grande Lamartine. Ai, viçosos tempos! Eu estava no meu primeiro anno de direito. Como falasse disso ao desembargador, disse-me este:

—Meu irmão crê que tambem aqui a revolução está proxima, e com ella a Republica.

2 de Março.

Venho da casa do Aguiar. Lá achei Fidelia, um primo desta, filho do desembargador, alumno da Escola de Marinha (16 annos) e um empregado do Banco do Brazil. Passei uma boa hora ou mais. A velha esteve encantadora, a moça tambem, e a conversação evitou tudo o que pudesse lembrar a ambas a respetiva perda, uma do esposo, outra do filho postiço. Contavam-se historias de sociedade, que eu ouvi sorrindo, quando era preciso, ou consternado nas ocasiões pertinentes. Tambem eu contei uma, de sociedade alheia e remota, mas o receio de lembrar á viuva Noronha alguma terra por onde houvesse andado com o marido me fez encurtar a narração e não começar segunda. Entretanto, ella referiu duas ou tres reminiscencias de viagem, impressões do que vira em muzeus da Italia e da Allemanha. Da nossa terra dissemos cousas agradaveis e sempre de acordo. A mesma torre da matriz da Gloria, que alguns defenderam como necessaria, deixou-nos a nós, a ella e a mim, concordes no desacordo, sem que aliás eu combatesse ninguem. O cazal Aguiar ouviu-nos sorrindo; o moço da Escola de Marinha tentou, em vão, suscitar a questão militar.

Com isso e o mais enchemos a noite. Ninguem pediu a Fidelia que tocasse, embora me digam que é admiravel ao piano. Em compensação, ouvimos-lhe dizer alguma cousa de mestres e de paginas celebres, mas isso mesmo foi breve e interrompido, pode ser que lhe lembrasse o finado. Saí antes della. Ouvi ao Aguiar que daqui a dous mezes, começará as suas reuniões semanaes.

10 de Março.

Afinal houve sempre mudança de gabinete. O conselheiro João Alfredo organizou hoje outro. Daqui a tres ou quatro dias irei aprezentar as minhas felicitações ao novo ministro dos negocios estranjeiros.

20 do Março.

Ao desembargador Campos parece que alguma cousa se fará no sentido da emancipação dos escravos,—um passo adiante, ao menos. Aguiar, que estava presente, disse que nada corre na praça nem lhe chegou ao Banco do Sul.

27 de Março.

Santa-Pia chegou da fazenda, e não foi para a casa do irmão; foi para o Hotel da America. É claro que não quer ver a filha. Não ha nada mais tenaz que um bom odio. Parece que elle veiu por causa do boato que corre na Parahyba do Sul acerca da emancipação dos escravos.

4 de Abril.

Ouvi que o barão caiu doente, e que o irmão conseguiu trazel-o para casa. Eis aqui como. Não lhe pediu logo que viesse; achou meio de lhe dizer que Fidelia estava em casa da amiga, donde não viria tão cedo, e acabou propondo-lhe tratar-se em casa delle. Santa-Pia recusou, depois aceitou. Tudo isso foi planeado com ella. Fidelia está effetivamente no Flamengo com a gente Aguiar. Deste modo a caza do Campos ficou livre ao pae irritado e enfermo. A opinião do Campos e do Aguiar é que o fazendeiro, mais tarde ou mais cedo, acabará perdoando a filha. Em todo caso, não se encontram agora, com pezar della.

Ora, pergunto eu, valia, a pena ter bridado com o pae, em troca de um marido que mal começou a lição do amor, logo se apozentou na morte? Certo que não. Se eu propuzesse concluir-lhe o curso, o pae faria as pazes com ella; ai, era preciso não haver esquecido o que aprendi, mas esqueci,—tudo ou quasi tudo. I can not etc. (Shelley).

7 de Abril.

A distração faz das suas. Hoje, vindo da cidade para caza, passei por esta, e dei commigo no largo do Machado, quando o bonde parou. Apeei-me, e antes de arrepiar caminho, a pé, detive-me alguns instantes, e enfiei pelo jardim, em direção á matriz da Gloria, a olhar para a fachada do templo com a torre por cima. Fiz isto porque me lembrou a conversação da outra noite no Flamengo.

A poucos passos, duas senhoras pareciam fazer a mesma cousa. Voltaram-se, eram nada menos que Fidelia e D. Carmo; estavam sem chapeo. tinham vindo a pé de caza. Viram-me, fui ter com ellas. Pouco dissémos: noticias do barão, que está melhor, e do Aguiar, que está bom, e despedimo-nos.

Vim para o lado do Cattete, ellas continuaram para o da matriz. A pequena distancia, lembrou-me olhar para traz. Poderia fazer outra cousa? É aqui que eu quizera possuir tudo o que a filosofia tem dito e redito do livre arbitrio, afim de o negar ainda uma vez, antes de cair onde elle perde a mesma aparencia de realidade; acabaria esta pagina por outra maneira. Mas não posso; digo só que não pude reter a cabeça nem os olhos, e vi as duas damas, com os braços cingidos á cintura uma da outra, vagarosas e visivelmente queridas.

8 de Abril.

Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta penna vadia. Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa do setimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor.

Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha meza, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o ceu, e alli ou acolá acharás descanço. Commigo, o mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que elle chegue, virá a troça dos malevolos ou simplesmente vadios.

Escuta, papel. O que naquella dama Fidelia me attrae é principalmente certa feição de espirito, algo parecida com o sorriso fugitivo, que já lhe vi algumas vezes. Quero estudal-a se tiver ocasião. Tempo sobra-me, mas tu sabes que é ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado José, e para ti, se tenho vagar e quê,—e pouco mais.

10 Abril.

Grande novidade! O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador sobre a alforria coletiva e immediata dos escravos de Santa-Pia. Acabo de sabel-o, e mais isto, que a principal razão da consulta é apenas a redação do acto. Não parecendo ao irmão que este seja acertado, perguntou-lhe o que é que o impelia a isso, uma vez que condenava a ideia atribuida ao governo de decretar a abolição, e obteve esta resposta, não sei se subtil, se profunda, se ambas as cousas ou nada:

—Quero deixar provado que julgo o acto do governo uma expoliação, por intervir no exercicio de um direito que só pertence ao proprietario, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso.

Será a certeza da abolição que impele Santa-Pia a praticar esse acto, anterior de algumas semanas ou mezes ao outro? A alguem que lhe fez tal pergunta respondeu Campos que não. «Não, disse elle, meu irmão crê na tentativa do governo, mas não no resultado, a não ser o desmantelo que vae lançar ás fazendas. O acto que elle resolveu fazer exprime apenas a sinceridade das suas convicções e o seu genio violento. Elle é capaz de propor a todos os senhores a alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazel-o por lei.»

Campos teve uma ideia. Lembrou ao irmão que, com a alforria immediata, elle prejudica a filha, herdeira sua. Santa-Pia franziu o sobrolho. Não era a ideia de negar o direito eventual da filha aos escravos; podia ser o desgosto de ver que, ainda em tal situação, e com todo o poder que tinha de dispor dos seus bens, vinha Fidelia perturbar-lhe a ação. Depois de alguns instantes respirou largo, e respondeu que, antes de morto, o que era seu era somente seu. Não podendo dissuadil-o, o desembargador cedeu ao pedido do irmão, e redigiram ambos a carta de alforria.

Retendo o papel, Santa-Pia disse:

—Estou certo que poucos delles deixarão a fazenda; a maior parte ficará commigo, ganhando o salario que lhes vou marcar, e alguns até sem nada,—pelo gosto de morrer onde nasceram.

11 de Abril.

Fidelia, quando soube do acto do pae, teve vontade de ir ter com elle, não para invetival-o, mas para abraçal-o; não lhe importam perdas futuras. O tio é que a dissuadiu dizendo-lhe que o barão ainda está muito zangado com ella.

12 de Abril.

Santa-Pia não é feio velho, nem muito velho; terá menos idade que eu. Arqueja um pouco, ás vezes, mas pode ser da bronquite. É meio calvo, largo de espaduas, as mãos asperas, cheio de corpo.

Conhecemo-nos um ao outro, eu primeiro que elle, talvez porque a Europa me haja mudado mais. Elle lembra-se do tempo em que eu, colega do irmão, jantei com elle aqui na Corte. Já o irmão lhe havia falado de mim, recordando as relações antigas. Disse-me que daqui a tres dias volta para a fazenda, onde me dará hospedagem, se quizer honral-o com a minha pessoa. Agradeci e prometi, sem prazo nem ideia da lá ir. Custa muito sair do Cattete. Já é demais Petropolis.

Está claro que lhe não falei da filha, mas confesso que se pudesse diria mal della, com o fim secreto de acender mais o odio—e tornar impossivel a reconciliação. Deste modo ella não iria daqui para a fazenda, e eu não perderia o meu objeto de estudo. Isto, sim, papel amigo, isto podes aceitar, porque é a verdade intima e pura e ninguem nos lê. Se alguem lesse achar-me-ía mau, e não se perde nada em parecer mau; ganha-se quasi tanto como em sel-o.

13 de Abril.

Hontem com o pae, hoje com a filha. Com esta tive vontade de dizer mal do pae, tanto foi o bem que ella disse delle, a proposito da alforria dos escravos. Vontade sem ação, veleidade pura; antes me vi obrigado a louval-o tambem, o que lhe deu azo a estender o panegirico. Disse-me que elle é bom senhor, elles bons escravos, contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão, e, em sinal de aplauso, beijar-lha. Vontade sem ação. Tudo sem ação esta tarde.

19 de Abril.

Lá se foi o barão com a alforria dos escravos na mala. Talvez tenha ouvido alguma cousa da resolução do governo; dizem que, abertas as camaras, aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fóra, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: «Eu, Abrahão Lincoln, presidente dos Estados-Unidos da America...» Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brazil, dizendo que restava agora que um povo christão e ultimo imitasse aquelle e acabasse tambem com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes.

7 de maio.

O ministério apresentou hoje á camara o projeto de abolição. É a abolição pura e simples. Dizem que em poucos dias será lei.

13 de Maio.

Emfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral.

Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me a li offereceu-me logar no seu carro, que estava na rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organisado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação á Regente. Estive quasi, quasi a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus habitos quietos, os costumes diplomaticos, a propria indole e a idade me retiveram melhor que as redeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a elle e aos outros, que se ajuntaram e partiram da rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam tambem todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos.

Ainda bem que acabámos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os actos particulares, escrituras e inventarios, nem apagar a instituição da historia, ou até da poesia. A poesia falará della, particularmente naquelles versos de Heine, em que o nosso nome está perpetuo. Nelles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde «a casa Gonçalves Pereira» lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales Perreiro; foi a rima ou a sua má pronuncia que o levou a isso. Tambem não temos ducados, mas ahi foi o vendedor que trocou na sua lingua o dinheiro do comprador.

14 de Maio, meia noite.

Não ha alegria publica que valha uma boa alegria particular. Saí agora do Flamengo, fazendo esta reflexão, e vim escrevel-a, e mais o que lhe deu origem.

Era a primeira reunião do Aguiar; havia alguma gente e bastante animação. Rita não foi; fica-lhe longe e não dá para isto, mandou-me dizer. A alegria dos donos da casa era viva, a tal ponto que não a atribui somente ao facto dos amigos juntos, mas tambem ao grande acontecimento do dia. Assim o disse por esta unica palavra, que me pareceu expressiva, dita a brazileiros:

—Felicito-os.

—Já sabia? perguntaram ambos.

Não entendi, não achei que responder. Que era que eu podia saber já, para os felicitar, se não era o facto publico? Chamei o melhor dos meus sorrisos de acordo e complacencia, elle veiu, espraiou-se, e esperei. Velho e velha disseram-me então rapidamente, dividindo as frases, que a carta viera dar-lhes grande prazer. Não sabendo que carta era nem de que pessoa, limitei-me a concordar:

—Naturalmente.

—Tristão está em Lisboa, concluiu Aguiar, tendo voltado ha pouco da Italia; está bem, muito bem.

Comprehendi. Eis ahi como, no meio do prazer geral, pode aparecer um particular, e dominal-o. Não me enfadei com isso; ao contrario, achei-lhes razão, e gostei de os ver sinceros. Por fim, estimei que a carta do filho postiço viesse após annos de silencio pagar-lhes a tristeza que cá deixou. Era devida a carta; como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, chegava bem. Novamente os felicitei, com ar de quem sabia tudo.

16 de Maio.

Fidelia voltou para casa, levando e deixando saudades. Os tres estão muito amigos, e os dous parecem paes de verdade; ella tambem parece filha verdadeira. O desembargador, que me contou isto, referiu-me algumas palavras da sobrinha ácerca da gente Aguiar, principalmente da velha, e acrescentou:

—Não é dessas afeições chamadas fogo de palha; nella, como nelles, tudo tem sido lento e radicado. São capazes de me roubarem a sobrinha, e ella de se deixar roubar por elles. Tambem se não forem elles, será o pae. Creio que meu irmão já vae amansando. A ultima vez que me escreveu, depois de falar muito mal do imperador e da princeza, não lhe esqueceu dizer que «agradecia as lembranças mandadas.» Fidelia não lhe mandára lembranças, estava ainda no Flamengo; eu é que as inventei na minha carta para ver o efeito que produziriam nelle. Hade amansar; isto de filhos, conselheiro, não imagina, é o diabo; eu, se perdesse o meu Carlos, creio que me ia logo desta vida.

17 de Maio.

Vou ficar em casa uns quatro ou cinco dias, não para descançar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem ouvir ninguem, a não ser o meu creado José. Este mesmo, se cumprir, mandal-o-hei á Tijuca, a ver se eu lá estou. Já acho mais quem me aborreça do que quem me agrade, e creio que esta proporção não é obra dos outros, e só minha exclusivamente. Velhice esfalfa.

18 de Maio.

Rita escreveu-me pedindo informações de um leiloeiro. Parece-me caçoada. Que sei eu de leiloeiros nem de leilões? Quando eu morrer podem vender em particular o pouco que deixo, com abatimento ou sem elle, e a minha pelle com o resto; não é nova, não é bella, não é fina, mas sempre dará para algum tambor ou pandeiro rustico. Não é preciso chamar um leiloeiro.

Vou responder isto mesmo á mana Rita, acrescentando algumas noticias que trouxe da rua,—a carta do Tristão, por exemplo, os agradecimentos do barão á filha, e esta grande peta: que a viuva resolveu casar commigo... Mas não; se lhe digo isto, ella não me crê, ri, e vem cá logo. Justamente o que eu não desejo. Preciso de me lavar da companhia dos outros, ainda mesmo della, apezar de gostar della. Mando-lhe só dizer que o leiloeiro morreu; provavelmente ainda vive, mas hade morrer algum dia.

21 de Maio.

Hontem escrevi á mana Rita anunciando-lhe a morte do homem, e hoje de manhã abrindo os jornaes, dei com a noticia de haver falecido hontem o leiloeiro Fernandes. Chamava-se Fernandes. Sucumbiu a não sei que molestia grega ou latina. Parece que era bom chefe de familia, honrado e laborioso, e excelente cidadão; a Vida Nova chama-lhe grande, mas talvez elle votasse com os liberaes.

Mana Rita, já pela minha carta, já pelas noticias de hoje, correu a ter commigo. Senhoras não deviam escrever cartas; raras dizem tudo e claro; muitas tem a linguagem escassa ou escura. Rita pedira-me noticias do leiloeiro, por lhe dizerem que elle morava no Cattete, e adoecera gravemente ha dias. Como era meu visinho, podia ser que eu soubesse delle: foi o motivo da pergunta, mas esqueceu dizel-o.

Hesitei entre confessar a minha invenção ou deixal-a encoberta pela coincidencia, mas foi só um minuto, nem isso, foi um instante. Rita é minha irmã, não me ficaria querendo mal e acabaria rindo tambem. Ouviu a minha verdade, sem zanga, mas tambem sem riso. A razão disto é um pormenor, que não vale a pena dizer miudamente e só o bastante para explicar a carta e a seriedade. Trata-se de contas entre ella e o finado, objetos que ella mandou vender, e não sabe se elle vendeu ou não, nem como havel-os ou o dinheiro; bastará ir ao armazem. Hade haver escrituração donde conste tudo; prometi acompanhal-a amanhã. Ficou satisfeita, começou então a sorrir, depois disse-me os objetos que eram, quadros velhos, romances lidos.

Jantou commigo. Antes de irmos para a meza, vimos passar o enterro do Fernandes. Teve a pachorra de contar os carros; ai de mim, tambem eu os contava em pequeno; ella é que parece não haver perdido esse costume estatistico. O Fernandes levava trinta e sete ou trinta e oito carros.

Deixo aqui esta pagina com o fim unico de me lembrar que o acaso tambem é corregedor de mentiras. Um homem que começa mentindo disfarçada ou descaradamente acaba muita vez exato e sincero.

22 de Maio.

Em caminho, mana Rita contou-me o que já sabe da carta de Tristão e da resposta que D. Carmo lhe mandou. Sabe mais que eu. D. Carmo leu-lhe as duas cartas. Tristão pede mil desculpas do longo silencio de annos e lança-o á conta de tarefas e distrações. Ultimamente, já formado em medicina, foi em viagem a varias terras, onde viu e estudou muito. Não podendo escrever as viagens, contar-lh'as-ha um dia, se cá vier. Pede noticias della e do padrinho, pede-lhes os retratos, e manda-lhes pelo correio umas gravuras; assim tambem lembranças do pae e da mãe que estão em Lisboa. A carta é longa, cheia de ternuras e saudades. A resposta, disse-me mana Rita que é em tom verdadeiramente maternal. Não sabe mostrar-se magoada; é toda perdão e carinho. Só lhe faz uma queixa; é que, pedindo os retratos della e do marido, não lhe mandasse logo o seu, o ultimo dos seus, porque os antigos cá estão. Diz muitas cousas longas, lembra os tempos de infancia e de estudo, e no fim insinua-lhe que venha contar-lhe as viagens. As gravuras são da casa Goupil.

Memorial de Ayres

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