Читать книгу Alguns homens do meu tempo: impressões litterarias - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 10

VI

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Já no leito, onde agonisou com divina resignação dois longos mezes, e onde parece que o seu espirito de poeta assumiu uma forma ainda mais idealmente melancolica, Gonçalves Crespo escreveu com a mão tremula de doente um soneto consagrado aos annos d'uma gentil senhora, nossa querida amiga, por quem elle tinha o mais respeitoso dos affectos, em cuja casa hospitaleira elle encontrou sempre um acolhimento fraternal.


Essa senhora é a Condessa de Sabugosa, mulher do amigo, talvez mais ternamente amado por Gonçalves Crespo.


Seria lastima conservar para sempre inedito este soneto que tem para mim um triplo encanto. O perfume camoeano que o impregna deliciosamente, a tristeza dulcissima, que elle respira, e a melancolica circumstancia de ser o ultimo que cahio, como uma perola solta, da lyra quasi partida do poeta moribundo.


Eis o soneto:


Na quadra azul da mocidade, a gente

Parte rindo e cantando, estrada fóra,

Gorgeia a cotovia em cada aurora,

Suspira á noite o rouxinol dolente.


Ai! Ditoso o que parte alegremente,

O que não vio aproximar-se a hora

Em que é força volver atraz... embora

Nos arfe o seio de illusões fremente.


Para ti ainda existe o sonho alado,

A fé robusta, e a candida alegria

Que nos chovem do céu claro e estrellado.


Nunca sejas forçada, flôr, um dia

A erguer, chorando, o braço fatigado

Em busca da ventura fugidia...

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A morte não consentiu que elle subisse aonde podia subir, que elle se affirmasse como se poderia ter affirmado. No emtanto, todos os que teem este sexto sentido divino, pelo qual, mesmo apezar dos desenganos que a vida encerra, vale a pena em todo o caso ter vivido, hão-de ler com intimo prazer os dois volumes do encantador poeta de Alguem.


É verdade que elle não respondeu a todas as interrogações que o nosso espirito se achou no direito de fazer-lhe, mas não respondeu porque o tempo lhe não deixou cumprir as mil promessas que a sua mocidade nos fizera.


E hoje que elle partiu para o paiz mysterioso d'onde ninguem voltou, e para onde, na tristeza ou na alegria, convergem os nossos olhares anciosamente prescrutadores, voam as nossas saudades n'um impeto de lagrimas, eu releio aquella soberba e indecifravel Sara, e pergunto a mim mesma se debaixo da forma esculpturalmente pagã dos versos, se não abriga um sentido occulto, um mysterioso symbolo...


Que ardente espiritualismo, tenaz e apaixonado, na carnalidade apparente d'esse poema!


Quanta dôr n'aquella aspiração, sempre trahida, de encontrar uma alma, no bello corpo insensivel que elle, como Pygmalião, quereria animar d'um divino sopro!


Na sua violenta sêde de perfeição, dolorosa e alanceadôra como poucas, nunca o poeta das Miniaturas e dos Nocturnos teve o contentamento da sua obra! Nunca achou que a Musa, que elle beijava, tivesse a vida, o fogo sagrado, que n'esse beijo fecundador a sua alma anceava communicar-lhe!


Era um insaciavel!


Nunca a Arte nem a vida o contentaram, a elle que teve todas as caricias luminosas da Arte, e todos os affectos sãos que a Vida póde dar e que a Vida só dá a rarissimos dos seus escolhidos...


Mas não estará n'esse eterno descontentamento, n'essa aspiração incansavel ao desconhecido, o signal mais caracteristico da sua grandeza?... Eu creio que sim.


Alguns homens do meu tempo: impressões litterarias

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