Читать книгу Mulheres e creanças: notas sobre educação - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 20
II
ОглавлениеNas paginas antecedentes condemnava eu a vida de apparato, a vida da sociedade, a vida de sala, pela influencia corruptora que ella exerce nos costumes e nos sentimentos, e pela absoluta desharmonia em que ella está com a moderna concepção da familia e da sociedade.
No entanto não basta só lavrar a condemnação de um modo de ser social, é necessario apontar o remedio, ou pelo menos apresentar um alvitre que á nossa consciencia pareça proficuo e salutar.
As mulheres gostam da vida frivola e inutil dos salões, pelos seguintes motivos:
—Porque as salas são o theatro dos seus triumphos e conquistas.
—Porque é ahi que ellas são lisongeadas, louvadas, incensadas e queridas.
—Porque os homens só prestam homenagem ás mais bonitas, ás mais vaidosas, e ás mais ricas, na realidade ou na apparencia.
Além d'estas causas que as levam a gostar da representação e da pompa mundana, ha outras dependentes d'estas ou relacionadas com ellas, que as levam a aborrecer-se no interior das suas casas.
Primeiramente, e acima de tudo, a falta de uma educação solida e positiva, que as faça encarar a vida debaixo do seu verdadeiro aspecto. Um aspecto de seriedade e de justiça, assentando na comprehensão de todos os deveres.
Segundo, a inhabilidade e a ignorancia, que as torna incapazes de qualquer trabalho seguido. A falta de gosto natural ou de gosto adquirido, para se entreterem, para se distrahirem, para revestirem de uma fórma sympathica e attrahente as suas obrigações de donzellas, de esposas, de mães, de donas de casa.
Terceiro, a inveterada frivolidade que herdaram, e que os exemplos recebidos, e a falsa educação mais aggravou e desenvolveu, tornando-a um perigo, o maior de todos os perigos que ameaçam a familia.
Eu tenho repetido isto tantas e tantas vezes, que receio por fim enfastiar as minhas leitoras.
É necessário antes de tudo transformar radicalmente a educação das mulheres.
Muitas das cousas que hoje se ensinam é mister que deixem de se ensinar.
Muitas outras que se encaram debaixo de um certo e determinado ponto de vista, cumpre que se vejam sob outro aspecto inteiramente differente.
Outras ha ainda a que ninguem attende e que se não ensinam, e é positivamente a essas que se deve dar a maxima e a mais desvelada attenção.
Tratemos de apresentar exemplos das tres asserções que acabamos de apresentar.
Das cousas inuteis que hoje se consideram ainda partes integrantes de uma educação perfeita.
Ha a dança: um talento absolutamente dispensavel, que nas meninas só serve para desenvolver a coquetterie, o desejo de brilhar e de agradar.
A tapeçaria: um pretexto futil para estragar o tempo. Em quanto a mão vae preguiçosamente bordando a talagarça, a phantasia irrequieta da mulher, da creança, corre e vôa por montes e valles, á procura de um vedado ou de um impossivel ideal. Chama-se a este genero especial de trabalho feminino, a hypocrisia da preguiça.
Como estas duas cousas, ha muitas mais que não temos tempo de enumerar, mas que se não são nocivas como a primeira, são pelo menos inuteis como a segunda.
Procuremos agora muitas das materias que se ensinam, e devem continuar a ensinar-se, mas ás quaes a educação tal como está rotineiramente estabelecida, não sabe dar a importancia e o valor devido.
São a musica, a historia, as linguas, a geographia, a arithmetica, etc., etc.
O primeiro cuidado de toda a mãe vaidosa ou illustrada, intelligente ou mediocre, é que as suas filhas aprendam a tocar piano.
Muito bem.
É preciso, porém, advertir-se que a monomania do piano, tal como ahi anda inoculada e propagada, é um flagello, um temivel flagello e nada mais.
A musica é de todas as artes aquella que mais falla aos sentidos e á alma do homem.
Modera, dulcifica, adormenta, consola, estimula, apaixona, enternece e muitas vezes, quando profanada e desvirtuada por sacerdotes sacrilegos, enerva, abranda a energia e a vitalidade do espirito, e vence todas as resistencias viris do caracter.
É uma amiga, póde ser uma cumplice.
Em todos os casos é um grande, um milagroso, um divino, um terrivel poder.
Mas mesmo pelo papel importante que occupa, mesmo pela influencia profunda que exerce, não é dado a todos interpretal-a e comprehendel-a.
Muitos ha que se submettem ao seu irresistivel dominio, sem saber sequer adivinhal-o ou presentil-o.
Quantas vezes não temos visto uma pobre mulher boçal, uma modesta e ignorante creatura, chorar de commoção ouvindo as notas tristes de uma flauta ou de uma guitarra!
Não tem a consciencia da commoção que a perturba, mas vibram-lhe os nervos, latejam-lhe as fontes, toda ella palpita e estremece como que agitada por uma potencia ignota.
Como todas as artes, a musica só póde ser interpretada por quem a comprehenda com o seu espirito, e por quem a sinta com o seu coração.
De outro modo é uma profanação e é um escarneo.
Achamos, portanto a musica, um elemento poderosissimo de educação, mas exigimos que haja intelligencia e vocação nas pessoas que a aprendem.
Não é fazer do piano um attributo indispensavel de todo o ensinamento elegante, e obrigar sem discernimento e sem escolha todas as meninas a estudal-o e a atormentar com elle o ouvido do proximo.
Logo que se comprehenda bem o grande alcance da musica, a sua influencia moralisadora, a sua missão artistica, as mães escolherão de entre as suas filhas, aquella ou aquellas que mostrarem predisposição para este genero de estudo e auxiliarão por todos os modos o desenvolvimento d'essa vocação.
O piano deixará de ser o flagello e a peste das soirées sem ceremonia, o tormento dos visinhos proximos, o pezadello dos maridos, o martyrio das proprias executantes. Não reinará exclusivamente como até aqui esse despotico e terrivel instrumento.
Não se dirá das meninas bem educadas: toca admiravelmente, subentendendo já o malfadado piano.
Dir-se-ha mais acertadamente: sabe musica, toca muito bem violoncello, ou harpa, ou rebeca, ou piano mesmo, porque nós não queremos condemnar nenhum instrumento ao ostracismo, pelo contrario queremos livrar os outros do ostracismo a que estão injustamente condemnados.
Com esta escolha sensata das pessoas que particularmente devessem cultivar a sua vocação musical, muitos bens proviriam á educação da mulher.
A musica executada só por quem a entendesse, ouvida só por quem a apreciasse, tornar-se-hia, em vez de um ornato de vaidade, uma elevada distracção artistica.
Educaria e apuraria o gosto, exerceria a sua pura e civilisadora influencia, seria o repouso depois do trabalho ou a consolação no meio d'elle.
Os velhos mestres allemães com as suas largas e simples harmonias, ouvidas á noute no serão modesto da familia, ao pé de um ou dous amigos intelligentes e sinceros, penetrariam o coração da mulher de uma serenidade affectuosa e dôce, de um casto enternecimento salutar!
O que dizemos da musica instrumental tem applicação a todas as outras artes.
O canto, o desenho, a pintura, a escultura mesmo.
Todas merecem o nosso respeito, não como adornos pueris, mas como elementos de util e fecunda moralisação.
Sempre que a mãe ou que a educadora descubra em sua filha, ou na sua discipula, tendencia pronunciada para um ramo qualquer de actividade intellectual, deve por todos os modos facilitar e desenvolver essa vocação espontanea.
Mas que a educação de todas não seja pautada por um molde uniforme!
Mas, por Deus! que não se faça d'esta grande e sublime missão de cultivar um espirito infantil, uma questão de moda, uma questão de vaidade, uma questão de mutua inveja mesquinha.
As linguas são hoje ensinadas com muito esmero.
Mas que applicação se dá a essa sciencia adquirida em muitos annos de estudo e de pratica?
Uma applicação deveras ridicula!
Entre vinte das meninas que sabem hoje francez, inglez, allemão ou italiano, não ha quatro que tenham lido Hugo ou Bossuet, Racine ou Montaigne, Shakspeare ou Milton, Goethe ou o Dante, não ha quatro sobretudo que estejam aptas para comprehenderem estes mestres do pensamento e da palavra.
E no entanto para que servem as linguas estrangeiras?
Não passam de meros instrumentos com os quaes adquirimos noções, factos, idéas, conhecimentos, que nos seriam estranhos sem ellas.
Na lingua de um povo está consubstanciado muito do que elle é moral, physica e intellectualmente. Penetra-se no caracter de uma nação conhecendo a fundo as locuções de que ella se serve.
E quem é que hoje encara as linguas d'este modo a não ser algum philosopho retirado na sua torre ideal, ou algum philologo embebecido nos seus estudos?
É preciso que este conhecimento se vulgarise e se propague, para que as linguas estrangeiras tomem na educação o lugar que lhes compete.
A historia, que é um apontoado de datas e de nomes proprios, de dynastias e de batalhas, logo que passasse a ser na educação das mulheres o que ella é já no espirito dos criticos, seria um estudo attrahente, mais dramatico do que todos os romances, de uma realidade mais poderosa e dominadora.
A geographia, que não é mais do que uma arida e enfadonha nomenclatura, animada pelo espirito da mãe intelligente, levaria a imaginação infantil, não já pelos paizes chimericos, do sonho e do impossivel, mas por essas regiões pittorescas, onde tanto ha que vêr e que aprender.
Mais tarde as sciencias naturaes, a botanica, a mineralogia, a biologia, abririam ao espirito já preparado, horisontes larguissimos, onde pudesse espraiar-se livremente.
Assim educada, quer dizer, sabendo tudo que sabe hoje, mas classificado por outra ordem, e encarado debaixo de outro aspecto, e muitissimas cousas que hoje não sabe, mas ás quaes a conduziria naturalmente, o novo methodo dos seus estudos, a mulher transfigurada, levantada, fortalecida, podia aspirar a uma vida inteiramente diversa da que hoje tem.
Teria grandes vantagens esta modificação profunda no seu modo de ver, de pensar e de sentir.
Vulgarisada para todos a educação cujas bases apontamos, desapparecia da sociedade essa entidade singular chamada mulher pedante.
É extraordinario mas é verdade, a ignorancia das outras é que constitue o pedantismo d'esta.
Sendo uma excepção no seu meio, tem as qualidades e os defeitos das excepções.
Comprehende que é alvo da curiosidade, do pasmo, da observação dos que a rodeiam, e a pouco e pouco vae cahindo n'uma pose artificial que a torna ridicula.
Poucas são as que téem a coragem de—tendo um lado superior—se conservarem simples, desartificiosas, naturaes.
Lêram, estudaram, compararam; no meio da estupidez geral, produzem um vago assombro que lentamente vae distinguindo n'ellas!
Oh! mas no dia em que a mulher instruida deixasse de ser uma excepção admiravel, como ellas, as pobres mulheres pedantes se sentiriam humilhadas e deslocadas!
A vida de sala iria pouco a pouco sendo o apanagio das frivolas e das tôlas, e acabaria por desapparecer completamente.
A mulher dentro de sua casa sentir-se-hia bem, porque teria em si recursos sufficientes não só para entreter os seus, como tambem—e é isto o principal—para se entreter a si.
É essa a grande questão!
É preciso que as mães preparem o espirito de suas filhas de modo que ellas não precisem dos outros para viver contentes.
E como se ha de conseguir este fim?
Educando-as para que ellas bastem a si proprias. Dando-lhes ao espirito todos os recursos, ao corpo todo o vigor, ao caracter toda a austera dignidade; cultivando e desenvolvendo todas as faculdades superiores que ellas revelem, encadeando harmonicamente as suas acquisições intellectuaes, para que d'essa harmonia interior resulte para ellas uma exacta e elevada comprehensão da vida!
E não é muito o que nós exigimos.
Somos a primeira a confessar que hoje ha muito mais esmero e apuro do que havia antigamente na instrucção que as classes abastadas dão ás suas filhas.
Pouco mais precisam de aprender; o que lhes falta é a ligação logica entre as varias cousas que aprendem, é uma concepção mais larga das mesmas sciencias que adquirem, é o conhecimento das proprias armas que possuem, contra esse inimigo poderoso da mulher, chamado Tedio.
Em nosso humilde entender classificariamos d'este modo os conhecimentos indispensaveis a toda a mulher, para esta ser julgada apta a exercer o sacerdocio de esposa, de mãe, e de dona de casa.
As linguas estrangeiras, consideradas como meios de adquirir noções praticas, idéas justas, factos positivos; como meios de comparar, de julgar, de aquilatar, de exercer emfim o seu senso critico, de modo que o desenvolvesse, elevasse e afinasse; como meios de conhecer as differentes manifestações do bello e de as poder relacionar entre si.
A Historia, com o fim de conhecer através d'ella a humanidade de todos os tempos, de seguir a sua lenta e continua evolução, e de penetrar lucidamente no sentido da palavra—progresso.
O conhecimento profundo e philosophico da historia moralisa, pacifica, e revigora as crenças. Dá ao espirito, além de notavel perspicacia, grande justeza de pontos de vista.
Viriam depois, como já dissemos, a geographia natural, a arithmetica, a geometria, as sciencias da natureza, e isto harmonicamente, progressivamente, de deducção em deducção, sem esforço, ligando um conhecimento a outro conhecimento, n'uma cadeia logica e inquebrantavel.
Juntamente com estas acquisições uteis, e como que amenisando os esforços que ellas por ventura custassem, a mãe intelligente levaria sua filha a cultivar especialmente a arte para a qual sentisse mais accentuada vocação.
Preparada por esta iniciação em que o espirito fosse exigindo dia a dia alimento mais substancioso e mais forte, á proporção que mais rico de vigor e de vitalidade elle se sentisse, escusado é dizer, que nenhuma mulher deixaria de comprehender e de saborear com intimas delicias o encanto novo e superior com que a arte illuminasse a sua vida.
Seria uma ascensão gloriosa e lenta, ás alturas onde se respira um ar mais puro e mais subtil.
D'alli, d'aquella montanha ideal, a que ella houvesse subido, levada pela sciencia e pela arte, pelo estudo e pelo sentimento, ser-lhe-hia facil descobrir o caminho que devesse seguir na vida. A idéa do dever, esta idéa que é o remate e a corôa da educação perfeita, apresentar-se-lhe-hia como um resultado natural de todo o trabalho interior que no seu espirito se houvesse feito.
Chegariamos emfim ao ponto que queremos attingir.
A educação deixaria de ser um fim e tornar-se-hia o meio elevado e transformado de alcançar a perfeição moral.
Resta, porém, fazer uma pergunta que está no animo de todos.
Sujeitar-se-ha a mulher, assim arrancada de chofre á banalidade da esphera limitada em que tem vivido até agora, a cumprir as mesmas humildes obrigações, que teem sido e continuarão a ser a sua tarefa quotidiana, e o seu quinhão na vida?
De certo que sim, e seguindo o mesmo methodo que seguimos para o seu cultivo intellectual não nos será difficil provar que esses mesmos deveres, logo que sejam comprehendidos dignamente, em vez de humilharem, são um triumpho para aquella que os sabe exercer.