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III
Primeiros esforços
ОглавлениеÉ possivel? Joanna tinha os maiores desejos de responder «sim» a esta pergunta, para que o seu pensamento se apressasse a colligir e amontoar os argumentos que podiam confirmar esta inexperada, esta fulminante descoberta.
Quando viu Valentina fechar a porta da carruagem que a conduzia para um recanto occulto d'esse grande Paris – tão propicio a encontros mysteriosos, – invadiu-a uma violenta commoção.
N'um só momento, o procedimento da sua orgulhosa prima tinha-a rehabilitado aos seus proprios olhos, rebaixando aquella ao seu nivel.
E, posto que o facto de Valentina ter abandonado a carruagem á porta do grande armazem, lhe provasse que a sua primeira supposição era racional, a sua excitação tornára-se tão viva que se não sentia capaz de esperar – o que era natural – que a senhora de Chalinhy voltasse, a fim de verificar a attitude d'esta, interrogal-a mesmo e observar o seu natural embaraço.
Bastar-lhe-hia metter-se no coupé abandonado, de maneira que no momento da entrada, depois da visita clandestina, a marqueza a encontrasse na sua frente e fosse violentada a confessar tacitamente a falta, só pela natural confusão.
Um tal procedimento exigia, porém, um sangue frio de que Joanna se não julgava capaz. Mostraria logo pela sua propria perturbação, que espionava a rival. E esta, advertida por aquella fórma, dominar-se-hia, depois de passada a primeira impressão. Posta de sobre aviso, procuraria, de futuro, desnortear qualquer curiosidade que pretendesse penetrar mais intimamente no segredo que, até ao presente, tão bem tinha sabido occultar. Não. Para chegar a saber se effectivamente Valentina tinha qualquer mácula na sua vida, a principal condição era que esta nem sequer suspeitasse da descoberta. A primeira idêa de Joanna de Node, em presença do sobresalto d'uma tal revelação, foi fugir, para não ser vista pela prima, e ir para casa. Lá meditaria sobre o meio mais seguro de não perder o fio que um phantastico acaso acabava de pôr nas suas mãos, e que não abandonaria mais. Parecia-lhe até imprudente que qualquer pessoa da sua intimidade a encontrasse na visinhança do grande armazem, e podesse denunciar a sua estada ali, n'esta tarde, á marqueza de Chalinhy.
Só conseguiu tranquilisar-se, depois de ter subido para a carruagem, e dito ao cocheiro que a conduzisse á rua Barbet-de-Jouy.
– «É possivel?..» repetia ainda emquanto o cavallo d'aluguer da sua carruagem seguia ao longo das Tulherias, e depois pelo caes e ponte de Solferino. Mesmo contra sua vontade, tantas provas de seriedade dadas por Valentina desde a mais tenra infancia, influenciavam no seu espirito, destruiam a suspeita, luctavam contra a injuriosa hypothese sugerida repentinamente pelo indicio implacavelmente revelador.
Ha mulheres que praticam a caridade occultamente.
E se Valentina fosse a casa d'alguns pobres, modestamente, sem ir na sua carruagem, porque esses pobres habitavam n'alguns bairros escusos, onde a sua equipagem causasse escandalo, ou o cocheiro e trintanario corressem risco de ser insultados?..
Mas n'este caso teria entrado no armazem como uma criminosa, temendo evidentemente ser seguida? Sahiria com aquella precipitação e em taes condicções?
Todos os bairros populares ficam, hoje, nas proximidades dos boulevards ou de qualquer praça, onde uma mulher rica póde ir com os seus cavallos, sem necessitar servir-se de carruagem extranha…
«Tel-a-hia Norberto prohibido de dar esmolas?..
«Mas isso é facil de saber. Basta-me perguntar-lh'o…» Fez com a mão o gesto de apertar a pequena esphera de cautchú do aparelho que serve para chamar o cocheiro… Ia dar-lhe ordem para, de caminho, parar na rua Varenne. Eram as commodidades que a sua qualidade de prima proporcionava ao adulterio.
Deixou, porem, cahir a esphera sem a ter comprimido: «Seria perdel-a se estava culpada, isso não faria ella.»
Uma primeira tentação – nem sequer a sombra d'uma denuncia – passára rapidamente pelo seu pensamento, e o mesmo sentimento que, ha annos, a fazia invejar Valentina, apresentava esta agora aos seus proprios olhos, n'uma attitude generosa mas não sem uns laivos da sua habitual acrimonia.
«Não o faria…» repetia ainda. «E o que aproveito eu com isso? Não sei, porventura, que Norberto não se preocupa mesmo nada com os seus actos? Que deposita n'ella a mais absoluta confiança. Tambem eu a tinha. E igual. Não se faz, porem, o que acabo de lhe ver fazer, sem haver para isso muito poderosos motivos…»
– Porque, emfim, podia ser vista por qualquer outra pessoa que não fosse eu e que não seria certamente tão indulgente…
Onde iria ella?.. Ah! Eu o saberei! Mas como?
Era já noite e a baroneza de Node entrara em casa, passado muito tempo, sem que, atravez d'essas multiplas occupações d'uma tarde toda: – escrever bilhetes, receber visitas intimas, fazer a sua toilette para a noite – cessasse de dirigir a si mesma esta pergunta, para que não obtinha resposta: «Sim, como?»
Se taes pesquizas são já difficeis e trabalhosas para um homem que tem o previlegio de poder andar por toda a parte, quasi sem ser notado, para uma mulher, nova, bonita e um tanto elegante, tornam-se impossiveis. Deve-se pensar. Não lhe é permitido sahir de casa senão vestida com fato proprio da sua classe. Basta isto para limitar muito o seu campo d'acção. Ha agencias particulares cujos prospectos, com promessas de segredo absoluto, pontualidade e rapidez, são enviados, de tempos a tempos, pelo correio, ás diversas pessoas que, por qualquer motivo, figuram em um dos numerosos annuarios do mundo parisiense, grande ou pequeno. Joanna tinha muitas vezes ouvido falar a alguns homens do meio em que vivia havia dez annos, do perigo de similhantes processos, para se expôr, de caso pensado, em emprezas certas de exploração e talvez de chantage.
Revelar a policias incompetentes o vehemente desejo de saber o segredo de sua prima, não era pol-os ao corrente de outro segredo – o seu?
Estes obstaculos, levantados deante da curiosidade do mundo, explicam como tantas historias adivinhadas e assacadas á bocca pequena, ficam sempre inverificadas, e, portanto, facilmente negaveis. Poucas pessoas teem geralmente um tão grande interesse em as conhecer nos seus mais intimos e insignificantes detalhes, que se aventurem a arrostar com tantas difficuldades.
A mór parte permanece n'uma incerteza que lhes permitte misturar justos indicios com infames calumnias, alliviando a sua consciencia com estas phrases classicas:
«Em todo o caso se não é verdade, podia muito bem sel-o!.. – Se é possivel acreditar-se tudo quanto se diz!.. – Eu cá nada vi, e isto são coisas tão graves!..» – indulgentes formulas tão deploraveis como os ditos maliciosos que pretendem attenuar.
Attestam bem quanta leviandade ha nas conversas dos salões e dos clubs, e tambem que n'ellas caminham a par o indifferentismo e a ferocidade!
Mas a baroneza de Node não se achava em presença de um «diz-se», tratava-se d'um facto, com consequencias funestas!
O procurar conhecer toda a verdade, sem compromisso proprio, tendo a luctar com a finura d'uma mulher tão prudente, que havia sido necessario um inacreditavel concurso de circumstancias para pôr a sua parenta mais proxima, quasi sua irmã, sobre esta pista, muito vaga, quasi perdida já – é trabalho para esgotar todas as paciencias, mas não a d'uma invejosa!
Quando, um pouco antes das oito horas, a baroneza sahiu de caza para ir jantar com os Guy de Sarliévre, das relações de ambas, e aonde sua prima devia tambem estar – a resolução de pôr inteiramente a claro o enygma, que subitamente se lhe deparou, era tão irrevogavel como um juramento corso, e a primitiva idéa estava posta de parte.
O ardor d'uma lucta começada – a mais forte das sensações para os nervos d'uma parisiense de habitos tão monotonos – dava á sua belleza, um tanto apagada, uma animação singular. Os olhos pretos, a que faltava muitas vezes a expressão, tinham um brilho desusado; o rosto quasi sempre descórado, um vivo colorido; toda a sua pessoa, mixto de frieza e fadiga, muita vitalidade e movimento.
A impaciencia de tornar a ver Valentina obrigara-a a partir muito cedo para a casa aonde ia jantar, chegando a sua nevrose ao mais elevado grau, quando a marqueza de Chalinhy que, por acaso, foi a ultima a apparecer, entrou, acompanhada pelo marido, na sala em que se achavam reunidos os convidados – quatorze, contando os recem-chegados.
A marqueza tinha aquella expressão de doçura e candidez que tão bem sabia guardar, mesmo quando vestia uma toilette de soirée, que punha inteiramente a descoberto os seus hombros finos opulentos, os braços d'um contorno delicioso, a nuca graciosa e robusta – toda a graça dos seus trinta annos. Era o agrado da sua encantadora cabeça de cabellos louros, illuminada pelos olhos d'um azul tão curioso – era o pudor, e a pureza.
N'este dia usava um vestido á moda do tempo de Luiz XIII, d'uma tonalidade rosea, com bordados antigos, laços de setim e fivelas de diamantes. O penteado, em dois espessos bandós, d'onde se escapavam sobre a testa pequenos anneis, harmonisava com a toilette e lembrava os retratos d'essas mulheres do primeiro quartel do seculo XVII, que realisavam tão completamente o typo exquisito da franceza de outro tempo, por uma mistura unica de delicadeza e distincção, feminidade e sensatez, gentileza e honestidade.
– «Não é deliciosa esta gentil Chalinhy?..» perguntou alguem atraz da baroneza de Node, «é preciso que Norberto seja muito tolo para não o comprehender, pois não é verdade?..»
Era o duque de Arcole que assim falava, dirigindo-se ao visinho, um dos irmãos Mosé, o conde Abel, um dos parisienses mais circumspectos da sociedade elegante; tão circumspecto que Luciano d'Arcole ficou sem resposta.
A justificação de bravo official, que tem um nome glorioso, estava em que, mesmo com licença, só pensava no seu esquadrão. Não tinha reparado que a amante de Chalinhy se achava na sua frente. A um rapido signal, uma leve inclinação de cabeça, feito por Mosé, percebeu a sua inconveniencia. Joanna, que os via perfeitamente no espelho que lhe ficava fronteiro, poude observar o gesto dissimulado de Mosé, e que o duque se ruborisou um pouco.
Quando reconhecia por estes e outros pequenos indicios que se suspeitava da sua aventura com Norberto, sentia uma viva irritação. N'aquelle momento, foi-lhe quasi intoleravel que o elogio da prima fosse misturado com uma expressão mal contida da censura com que a sociedade a feria.
Desejaria poder gritar a Mosé, ao duque de Arcole, a todos os presentes, os quaes estava bem certa d'isso, tinham já ouvido censurar ou elles mesmo censurado a sua falta: «Sim, Chalinhy é meu amante.
«É verdade, atraiçoa a mulher comigo. Mas perguntai-lhe tambem a ella, para que entrevista ia hoje, de carruagem, ás 3 horas da tarde?..»Desejaria tambem poder fulminar com aquella phrase vingadora o proprio Chalinhy que se lhe dirigiu para a cumprimentar, com um certo ar de constrangimento, que já por mais vezes lhe tinha notado, quando estavam em publico. Nunca se tinha podido habituar a taes reservas, muito insultantes para esta ligação, e contra as quaes só as suas caricias eram soberanas – durante os momentos em que as proporcionava a esse amante, ao mesmo tempo tão invejavel como incomprehensivel.
Quizera ainda dirigir a phrase insultuosa á propria Valentina, cuja doce serenidade contrastava, d'uma maneira imprudente, com o seu procedimento d'aquelle dia, se tal procedimento era culposo, e a verdadeira confirmação d'essa culpabilidade seria a resposta á pergunta insidiosa que sua prima ia fazer-lhe em seguida – primeiro passo andado no caminho d'uma devassa que, por perfidia, se devia transformar, bem depressa, em denuncia.
– «Cheguei a imaginar que mudarias de tenção» começou Joanna, «e que me mandasses dizer esta manhã que podiamos sahir juntas. Esperei, porém, em vão, uma palavra tua…»
– «Acompanhar-te-hei ámanhã se quizeres, respondeu Valentina. Hoje não tive um momento de meu. Tinha muitas coisas atrazadas que pôr em ordem. Para a semana vamos para Pont-Yonne…»
– «Percebo, poseste as tuas visitas em dia. Onde foste então?»
– «Oh! A dez casas differentes e só em duas deixei bilhetes.»
– «A maior parte das familias das minhas relações são estrangeiras. É esta a sua estação em Paris; mas não se comprehende muito bem o que veem cá fazer, visto estarem sempre em casa.»
Annunciava-se que ia ser servido o jantar, na occasião em que Valentina acabava de descrever a sua prima como tinha occupado toda a tarde d'esse dia, acompanhando a descripção com um sorriso tão infantil, tão fresco, que punha de parte qualquer idêa de mentira.
As duas primas separaram-se.
A senhora de Sarliévre, na qualidade de dona de casa, julgava faltar a um dever de delicadeza, se não proporcionasse a duas pessoas, suspeitas d'um amor clandestino, estando em sua casa, mais uma occasião de passarem algumas horas ao lado uma da outra. Reservou tambem, naturalmente, a Chalinhy o prazer de conduzir para a mesa a baronesa de Node. É o processo habitualmente empregado em Paris, pelas mulheres levianas, quando desejam que lhes façam o mesmo, e pelas mulheres honestas, quando querem recrutar frequentadores assiduos para os seus salões.
Enganam-se muitas vezes, pensando que, procedendo por esta fórma, são agradaveis para com os seus convivas.
Acontece frequentemente que estas complacencias obrigam amantes arrufados a uma visinhança deveras incommoda e impertinente. Acontece tambem que magoam certas susceptibilidades um pouco desconfiadas, como sendo uma indelicadesa. É mostrar muito claramente que se conhecem os segredos da sua vida. Chalinhy pertencia ao grupo dos amorosos susceptiveis.
Vinte vezes Joanna de Node o tinha visto, em jantares como este, sentar-se junto d'ella com o mesmo aspecto melancolico, contrafeito, com os mesmos modos retrahidos d'um homem que se encontra n'uma situação falsa, e vinte vezes lhe disse, para o empolgar, para readquirir o imperio sobre elle, phrases de estimulante ternura como a que lhe murmurou, quasi em segredo, aproveitando o primeiro bulicio da instalação á mesa:
– «É uma felicidade para mim passarmos juntos alguns momentos. Ha mais de uma semana que lá não vaes».
– «Sabes perfeitamente que a culpa não é minha, tenho caçado quasi todos os dias…»
– «Sei tambem que isso te não pode servir de desculpa,» disse galantemente. «Tinhas um ar tão contrafeito quando a Emiliana te pediu para me conduzires á mesa…»
– «Respeito-te muito,» replicou, «por isso confesso-te que fiquei contrariado… Sempre que jantamos fóra, nos collocam propositadamente um junto do outro. Sei perfeitamente o que isto significa…»
– «E eu tambem,» respondeu ella. «Sejamos francos, Norberto, não é a minha pessoa que te preoccupa…»
– «Quem é então?..»
Joanna lançou um olhar para o lado de Valentina, d'uma significação tão clara que Chalinhy respondeu vivamente:
– «E se tiver por ella toda a consideração? Se desejar evitar-lhe um desgosto?»
– «E imaginas que ella tem a teu respeito iguaes sentimentos?» replicou a amante. Depois, com uma expressão singular que ainda esse dia não tinha tido, deixou escapar dos seus labios um: «Estás bem certo d'isso?» que acompanhou com um sorriso ainda mais singular, e voltou-se para o visinho do lado, que lhe perguntou:
– «O que está dizendo o Chalinhy que tanto a faz rir?..»
– «Oh! nada», respondeu, «é a historia d'um marido. São sempre divertidas.»
Poz-se a rir, mas mais alegremente, da enormidade da sua insolencia. Não pensou senão no effeito a produzir em Chalinhy, e, por acaso, o visinho a quem se dirigiu n'aquelles termos, era nem mais nem menos do que Paulo Moraines, o marido «mais marido» de toda aquella sociedade. Peor do que isso. Era publico e notorio que o luxo da sua esposa fôra pago primeiramente pelo velho Desforges e depois por um outro dos Mosé, o conde Abrahão. Mas Moraines não desconfiou nunca das galanterias venaes da sua Suzanna – da aventura com o elegante Casal, por exemplo, ou da ligação com o poeta René Vincy.
A herança inesperada da senhora Bois-Daufraines – prima afastada de Suzanna Moraines – veio trazer ao casal dois milhões de francos, justamente no momento em que os Desforges e Mosé iam começar a fazer falta, agora que a idade chegava com o seu fatal cortejo: pontos dourados na alvura dos dentes, tranças postiças e espartilhos reparadores! Paulo Moraines tinha a mania de contar a toda a gente a historia d'essa herança, em todos os pormenores, e accrescentava invariavelmente: «Vejam o que é ter uma mulher inteligente. Quasi que nem chegámos a perceber que tinhamos alguns milhares de libras de renda a mais, tão boa dona de casa ella é!»