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Take II.

A última das opções, pode ser a melhor Escolha

No fundo, eu sabia que se entregasse aquela candidatura, que tinha preenchido com a minha Mãe, era praticamente certo que entraria em alguma universidade de Trás-os-Montes, e que isso me condenaria à estagnação no tempo e no espaço. Da sétima e oitava opções que a Mãe me tinha autorizado a Escolher — Porto e Aveiro respetivamente — eu tinha preferência pela que fosse mais longe de Trás-os-Montes e consequentemente mais perto do Alentejo. E por isso, Aveiro era a cidade que eu queria!

A minha intuição estava bruta e inquebrável, e eu deixei-a enraizar-se nos meus atos. Gritava-me tão alto que decidi dar-lhe as mãos, começando por amarrotar a candidatura vigorosamente. Posso chamar-lhe rebeldia, irresponsabilidade ou loucura, mas aquela minha revolta toda, era o meu espírito a reclamar a propriedade do meu mundo. Eu herdei o espírito lutador e felino da minha Mãe e, por isso, em vez de lhe pedir desculpa, eu estou-lhe eternamente grato!

Enquanto caminhava em direção aos escritórios para entregar a candidatura, eu sabia que me iam fazer preencher outro formulário porque o que preenchera com a minha Mãe estava completamente amarrotado. E esse era o desafogo da minha alma e o alimento da minha intuição.

Ao chegar aos serviços, dei por mim diante da senhora administrativa, enquanto todo o meu mundo tremia! A princípio ainda pensei entregar-me ao destino e esperar que a senhora, por sua própria iniciativa, me propusesse preencher uma candidatura nova. Mas depois pensei: e se ela não o fizer? E se ela aceitar a candidatura amarrotada? O meu destino de novo pendente de uma Escolha alheia? Não!

«Bom dia, minha senhora, pode, por favor, dar-me outro formulário de candidatura para passar a limpo? É que este que aqui tenho meti-o no bolso de trás e amarrotou-se durante a viagem de autocarro. A minha Mãe está lá fora e assinará o novo formulário, não se preocupe.»

Peguei no novo formulário com a pulsação a pedir um novo corpo, saí porta fora, dando a entender que ia ter com a minha Mãe, e, sem refletir um só segundo, inverti por completo a ordem de preferência das oito opções e falsifiquei a sua assinatura. Naquele momento, a oitava Escolha, que era Aveiro, passou a ser a primeira Escolha, e o número oito passou a ser o meu preferido! Aquela foi a minha primeira Grande Escolha.

No final daquele verão de 1998, foram publicados os resultados das candidaturas, e, sem surpresas para mim, fui colocado em… Aveiro! Se por um lado eu me culpabilizava um pouco por ter adulterado a candidatura, por outro lado a minha intuição dizia-me que aquele ato mudaria para sempre a minha vida e a da minha Família! Eu acreditava piamente nisto, embora o caminho se apresentasse bastante ingreme.

Primeiro problema: a Mãe não tinha condições financeiras para pagar os meus estudos numa cidade tão longínqua e com um custo de vida tão elevado. Mal soubemos da minha colocação, candidatámo-nos à bolsa de estudo da Universidade de Aveiro e o resultado foi… negativo!! Como é que era possível ser negativo, se nós mal tínhamos dinheiro para pôr comida na mesa?! Mais tarde, depois de ter visto a bolsa ser atribuída a estudantes com carro próprio e que viviam a cinco quilómetros da universidade, fiquei a perceber como funciona a maioria dos benefícios neste meu país. Mas pronto, não havia nada a fazer. Alias, havia! Para poder ganhar um extra, a Mãe abdicou ainda mais da sua existência para trabalhar no turno da noite, das oito da noite às oito da manhã.

O primeiro ano na Universidade de Aveiro, o aclamado ano de caloiro, foi, de forma expectável, o mais excêntrico de todos, o de muita descoberta e muita reinvenção.

Senti, logo no início, que estava um passo atrás da maioria em termos de preparação académica, mas que não tinha qualquer atraso no aspeto social e humano. Pelo contrário, aquela minha infância e juventude mostravam-me agora o seu lado vitorioso. Quando cheguei à universidade, eu não era minimamente consciente da importância e do valor da formação académica, e aquilo era acima de tudo um bónus da liberdade e do crescimento para mim, onde eu poderia finalmente viver em função das minhas próprias Escolhas. Para ajudar ao certame, o curso onde fui parar não tinha absolutamente nada a ver comigo (área de finanças), mas não podia dar-me ao luxo de desistir, mudar ou recomeçar.

Nesse primeiro ano de caloiro, dediquei-me a tudo menos aos estudos e não fiz uma única cadeira durante o período normal. No entanto, no mês de repescagem, em setembro, inscrevi-me em sete exames, passei a todos e consegui também passar para o segundo ano. Resumindo, num só mês fiz mais do que muitos outros alunos durante o ano inteiro. Foi o mais correto? Não! Mas naquele momento descobri que, eu querendo, tudo estava ao meu alcance.

Com o passar dos anos, percebi que o ritmo boémio, intenso e apaixonante que levava não poderia durar para sempre, embora ele funcionasse como uma espécie de alívio e recuperação do tempo perdido. Ter sido eu a Escolher o meu destino tinha-me dado a sensação de propriedade e justiça que buscava, mas atirava para cima de mim a responsabilidade sobre o meu próprio futuro. Cheguei então à conclusão de que eu não poderia ser livre se continuasse refém da minha dor interior e a única forma de superar os traumas era crescer como pessoa e espírito, fazendo mais Escolhas.

Ressaca após ressaca, a consciência começou a ficar pesada e eu não gostava daquela sensação. A partir de certo ponto, eu não podia continuar encostado ao estatuto de vítima das Escolhas alheias e de um passado turbulento, e tinha de mudar. Afinal de contas, eu é que havia Escolhido aquele destino, e, como tal, a minha Mãe não podia ser a única a pagar por isso.

Uma certa manhã, saí de casa decidido a arranjar um emprego que me permitisse acompanhar os estudos ao meu ritmo e ritmar a vida a meu custo. Nem que não desse para pagar tudo, daria pelo menos para me responsabilizar e me libertar psicologicamente do peso do esforço financeiro solitário da minha Mãe e da minha Irmã, que sempre que podia também ajudava.

Depois de bater a muita porta, entrei numa das lojas de roupa de um centro comercial recentemente inaugurado na cidade de Aveiro, e a gerente da loja achou por bem entrevistar-me. Criou-se empatia instantânea e dali a propor-me emprego, foi um ápice! Para mim era evidente que trabalhar numa loja de roupa era muito mais próximo da minha essência do que aquele curso superior de contabilidade, economia e finanças!

A paixão com que me passei a dedicar ao mundo da moda ia muito para além das peças de roupa ou da performance de venda propriamente dita! O que mais me preenchia era criar empatia com aqueles clientes mais inseguros e fechados, desbloquear-lhes o sorriso e preencher-lhes a alma, nem que fosse por um segundo, mesmo que depois saíssem da loja de mãos vazias! Mas era preciso vender, e durante aquela minha primeira experiência profissional, eu explorei a minha estratégia de negociação METIS ao máximo, ao ponto de alguns clientes darem por eles a falar sobre a sua vida, enquanto enchiam o saco de roupa quase sem se aperceberem! Apesar de eu ter aprendido a gostar do binómio «corpo-roupa», eu desenvolvi em mim o binómio «personalidade-roupa», ajustando as peças ao carácter de cada cliente. Era por demais evidente que a roupa era o que menos me importava — eu podia até estar a trabalhar num negócio de pastilhas elásticas, desde que envolvesse negociação e contacto humano.

Ao fim de praticamente dois anos a trabalhar na loja, foi-me montada uma cabala em que fui injustamente acusado de roubar dinheiro da caixa registadora. Aquilo era algo parecido com a história em que me haviam acusado de escrever a carta insultuosa à rapariga da turma. Mais uma vez, o meu carácter puro, genuíno e algo louco fez com que o «criminoso» me usasse como bode expiatório e cobaia. A gerente da loja, que até aquele momento me tinha como uma «máquina» fiel e produtiva, viu-se obrigada a desconfiar.

Já farto deste tipo de eventos, a minha intuição fez com que eu me despedisse, e saí pelo próprio pé sem sequer argumentar. Eu precisava do dinheiro e foi duro, muito duro fazer aquela Escolha sem sequer defender a minha inocência, mas eu sabia que ao colocar-me de novo em situação de aperto, eu iria crescer na necessidade de encontrar outra solução.

Pouco tempo depois de me ter despedido, a vida mostrou-me que a injustiça é como um vinho mais gastronómico, que com o passar do tempo perde os traços de madeira em que envelheceu, descobrindo-se-lhe o verdadeiro carácter! A diretora de recursos humanos do grupo de lojas ligou-me diretamente, pedindo-me desculpa e a implorar para voltar, pois após a minha saída os roubos continuaram e eles «caçaram» a malfeitora! Sinceramente, estava de orgulho ferido e não me apetecia voltar, mas como sou um tipo que adora o perdão, aceitei o apelo. Admito que também precisava de ganhar dinheiro, mas a verdadeira razão do meu regresso foi a compaixão e respeito por aquela jovem gerente que me tinha dado emprego inicialmente. A minha primeira gerente!

Uns dias a seguir ao meu regresso à loja, recebi um telefonema de uma ex-professora de português — dos tempos da escola profissional em Chaves — a convidar-me para criar e escrever um artigo da minha autoria para um jornal regional do qual ela era codiretora. Naquele momento, senti que a vida me estava a entregar sinais inequívocos do caminho que eu próprio tinha Escolhido. Fiquei verdadeiramente incrédulo e não entendia como é que uma ex-professora da escola secundária me estava a lançar um convite daqueles, ainda para mais sendo eu um dos alunos mais desorganizados e menos estudiosos que ela deve ter visto!

Viajei até Trás-os-Montes para me encontrar com a senhora, sem saber que aquilo que estava prestas a ouvir se viria a tornar numa das maiores lições de humildade que recebi na vida. Aquela minha ex-professora — que no meu tempo de estudante nunca demonstrara qualquer tipo de afinidade especial comigo — confessou-me que avaliava positivamente o conteúdo das minhas respostas nos exames, mesmo quando este pouco ou nada tinha a ver com o conteúdo das perguntas!! Justificou-se, explicando-me que apesar de eu não ser conhecedor da matéria, ela não poderia ignorar a forma como eu me expressava.

Obviamente que toda a gente vai pensar que aquela professora era uma assassina dos princípios-base da educação, mas para além de uma verdadeira lição de humildade, reconhecimento e gratidão, o que ela realmente fez foi ensinar-me que por mais errado que um conteúdo nos possa parecer, não devemos ignorar a forma como ele se apresenta perante nós.

Fiquei tão comovido com aquela sua confissão que expressei imediatamente o meu interesse pela sua proposta, até porque isso significava também mais uma pequena fonte de rendimento para mim! Batizei a minha rúbrica de «O 10 já viu» — em alusão à expressão «déjà-vu» — e nela dei vida a certos tabus da humanidade como o desejo, a sorte ou a coragem, pondo-os a analisar a forma como o ser humano os aborda. No fundo, era uma perspetiva invertida da vida.

Entre o trabalho a tempo inteiro na loja, as rubricas do jornal e a vida boémia, eu tinha também a maior de todas as certezas: saber o que não queria! E eu sabia que a área financeira não era para mim, apesar de também saber que, devido às circunstâncias da minha vida, eu não podia dar-me ao luxo de trocar ou abandonar aquele curso.

Fui progredindo nos estudos universitários a um ritmo de envelhecimento em garrafa, até que chegou o dia do último exame. O professor era um icónico Homem arrogante, conceituado mundialmente na área da contabilidade e conhecido na universidade como o «dono disto tudo». Preparei-me bem, mas correu-me mal e fui chamado à prova suplementar de escolha múltipla para tentar recuperar da nota negativa.

Eu estava desesperado, porque se reprovasse naquele exame, teria de permanecer mais um ano só com aquela cadeira, e isso não poderia de todo acontecer-me. Fiz então uma Grande Escolha e marquei reunião com o mítico professor no seu gabinete. Recebeu-me de forma arrogante e agreste, dando-me a entender que não estava habituado a que um aluno o abordasse daquela forma! Mantive-me calmo e genuíno, olhei o imponente homem nos olhos e disse-lhe que me faltava apenas aquela cadeira para acabar o curso.

«E o que é que você quer que eu faça?», perguntou-me em tom imperativo, acrescentando: «Prepare-se como todos os outros, depende tudo de si!». Percebi logo ali que qualquer intervenção me iria ser prejudicial. Deixei a minha emoção fluir por breves segundos, apertei-lhe a mão e agradeci-lhe o tempo que me dedicou, porque isso já era mais do que suficiente para ele.

Passados uns dias, ainda antes de as notas da prova suplementar serem publicadas, o saudoso, áspero e icónico professor — sportinguista excêntrico — enviou-me um e-mail pessoal: «Parabéns, acabou o curso». Nunca ficarei a saber se tive ou não tive nota para passar àquela cadeira, mas tenho a certeza de ter ganho a sua admiração pela coragem em ter ido ao seu gabinete. Sim, era precisa coragem! E sim, eu acredito que o professor me ajudou, porque lhe dei a conhecer a minha situação.

Demorei bem mais do que a conta para concluir o curso, é certo, mas esse foi também o tempo de que precisei para desenhar e constituir o meu Ser, que até à entrada na universidade era um castelo de areias levianas. Podia ter acabado o curso em metade do tempo? Sim, podia, mas também teria desperdiçado o tempo necessário para crescer.

***

Uma das maiores fragilidades que enfrentamos é a compreensão da essência humana e espiritual em idades cruciais como são a adolescência e a juventude adulta. É extremamente difícil, tanto para o jovem indivíduo — que por norma sonha bastante — como para os seus progenitores, perceber quais as Escolhas académicas e consequentemente profissionais que irão levar ao preenchimento e satisfação interior.

Perante esta enorme dificuldade, a maioria dos adultos acaba por incentivar os jovens a Escolherem o seu caminho em função das probabilidades de sucesso financeiro, deixando o preenchimento interior para mais tarde, normalmente associado à compra de casa, carro e constituição de uma Família.

Mais tarde e já em fase adulta, o sucesso — quase sempre associado a dinheiro, poder hierárquico e estatuto social — transforma-se muitas vezes em transtorno e sofrimento para aqueles que o atingem. Porquê? A explicação é invariavelmente a ausência de um preenchimento interior, associado a uma contradição entre a verdadeira essência do adulto e a vida pessoal e profissional que este tem. Digamos que em muitos casos, o corpo avança rumo a um objetivo e a alma fica para trás a reclamar tudo aquilo que é mais importante e não foi atendido.

Compreender a essência dos adolescentes e jovens adultos, ajudando-os posteriormente na Escolha do caminho académico ou profissional a seguir, é por isso uma ação preventiva de extrema importância, na qual devemos investir com mais seriedade. Estou certo de que ao fazermos isso, iríamos eliminar uma parte significativa das frustrações em fase adulta.

O Tipo adulterou corajosamente o formulário da candidatura à universidade, Escolhendo o seu próprio destino geográfico. No entanto, por ter tirado — contrariado — um curso profissional na área financeira, ele ficou de alguma forma condenado a seguir um caminho académico universitário nessa área, tão distante da sua essência. Isso contribuiu também para que o Tipo demorasse tanto tempo a acabar o seu curso, mas ativou a necessidade de encontrar um preenchimento bastante superior, tanto na loja de roupa como a escrever o artigo de jornal.

Agora, o Tipo deveria Escolher entre resignar-se e abraçar uma carreira profissional longe da sua essência, ou adulterar esse caminho como fizera com a candidatura à universidade, procurando o preenchimento interior em áreas totalmente distintas da financeira. Mas que iria ele Escolher?

Grandes escolhas: Autobiografía regeneradora

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