Читать книгу Moda, Luxo e Direito - Susy Inés Bello Knoll - Страница 7

Оглавление

Moda e Direitos Humanos

Lígia Carvalho Abreu (Portugal)

p3919@ulp.pt

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto, consultora jurídica, vice-presidente do I2J-Centro de Investigação Jurídica, professora convidada da Faculdade de Direito do Porto, do Instituto Superior da Maia e da APDL, membro do conselho científico do CIJE- Centro de Investigação Jurídico-Económica da Faculdade de Direito do Porto e membro do Fashion Law Institute Argentina. Doutorada pela Faculdade de Direito da Universidade de Genebra. Actualmente desenvolve um projeto editorial, da sua autoria, no âmbito do Direito da Moda (www.fashionmeetsrights.com).

Sumário

1.Introdução. 2. O respeito dos direitos humanos como parâmetro para definir ‘moda de luxo’ e ‘marca de luxo. 3. Conclusão.

Resumo

Partindo de uma análise do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana no contexto do modelo económico aplicado à produção de bens de moda de luxo, o presente capítulo é uma reflexão sobre a necessidade de definir ‘moda de luxo’ ou ‘marca de luxo’ segundo uma conceção jusnaturalista e evolucionista do direito, assente na dimensão da pessoa-essência, concreta e solidária e no respeito de um núcleo vital de direitos, como por exemplo, o direito à integridade física e psicológica, o direito ao ambiente e à qualidade de vida, o direito ao salário, a proibição da escravatura, o direito à saúde, os direitos das crianças, entre outros, bem como na implementação de medidas de proteção destes direitos.

1.Introdução

‘Moda de luxo’, ‘marca de luxo’, ‘alta-costura’ ou ‘alta joelharia’ são designações associadas a um determinado segmento de design de moda e acessórios, regido por parâmetros objetivos de excelência ao nível dos materiais e técnicas empregues para a obtenção de um produto estética e tecnicamente perfeito, e, em alguns casos,[27] exclusivo.

Costumamos admirar a perfeição e beleza do trabalho, bem como a dedicação e paciência, ao longo de centenas de dias, empregue na realização de uma única peça, muitas vezes elevada a forma de arte.

Todavia, a perfeição visual da moda não deve ofuscar a perfeição do conteúdo da mesma. Qual a origem dos materiais utlizados, como o algodão, o ouro ou as pedras preciosas? Como são produzidos ou obtidos? ‘Marca de luxo’ é sinónimo de respeito dos direitos humanos desde o momento da obtenção da matéria-prima até à produção de uma jóia ou peça de roupa? ‘Marca de luxo’ é apenas uma marca de atelier ou possui também uma segunda linha produzida em massa, à semelhança do fast-fashion, segundo uma lógica de maximização do lucro e sem controlo sobre os fornecedores de matérias-primas e prestadores de serviços?

Uma marca é uma associação simbólica entre um comerciante/empresa e o seu produto. Esta associação simbólica não abrange apenas o CEO, os accionistas, os designers e outros funcionários que trabalham na sede da empresa, mas também todos aqueles que, mesmo não tendo um vínculo laboral direto com a marca, contribuem para o seu sucesso. Por exemplo, o mineiro que extraiu o ouro ou operária têxtil que trabalha para uma outra empresa ou seja para a fornecedora da marca. É uma associação simbólica que não deve ter apenas um sentido comercial, mas também de responsabilidade social, ligada à proteção dos direitos humanos em todas as fases da cadeia de produção de bens de moda.

2. O respeito dos direitos humanos como parâmetro para definir ‘moda de luxo’ e ‘marca de luxo’

De acordo com o entendimento comum, o conceito de luxo e o significado de direitos humanos estão associados a duas realidades diferentes. Luxo é um conceito mutável de acordo com factores históricos, sociais, económicos e psicológicos,[28] que incide sobre as características materiais do produto e da marca, por exemplo à qualidade[29] do produto, à sua exclusividade[30] e a criatividade e inovação implícita no design e na imagem corporativa.

Apesar das marcas de moda procurarem assegurar a continuidade do seu sucesso, não só através das qualidades do produto, mas também por meio de um marketing de estímulo dos sentidos e das emoções do consumidor,[31] a realidade inerente ao conceito de luxo é meramente material.

Por sua vez, os direitos humanos são o núcleo essencial de valores da humanidade, inalienáveis, imutáveis, perpétuos e não passíveis de serem modificados ou suprimidos pelo poder económico ou político. É uma realidade espiritual intrínseca a cada individuo, membro de uma comunidade alargada de valores e aspirações comuns.

Neste âmbito, utilizar os direitos humanos como parâmetro para definir ‘moda de luxo’ e ‘marca de luxo’, pressupõe a adoção de uma política de responsabilidade social transparente, coerente e efetiva, de acordo com um código de valores ligado à proteção da pessoa humana e do ambiente.

Para o consumidor esclarecido, com preocupações humanistas, uma marca diminui ou perde o seu valor se frequentemente está envolvida em casos de desrespeito dos direitos humanos.

Todavia, não é este o típico consumidor de moda do mundo globalizado. Mesmo se, hoje em dia, a moda apela à expressão da individualidade, o consumidor de moda típico, ainda continua a ser predominantemente um consumidor estandardizado e vulnerável às fortes campanhas de marketing à escala global que uniformizam tendências e comportamentos de consumo em todo o mundo.

O crescimento considerável do consumo de bens de moda juntamente com a ânsia de continuidade e aumento do lucro por parte dos grupos económicos que gerem as marcas de luxo, impele estes atores económicos a alargar o seu leque de consumidores através da criação de coleções de segunda linha direcionadas a todos aqueles que não possuem poder de compra para adquirir, por exemplo, calças a 5000 reais, mas conseguem comprar um “substituto”, da mesma marca, a 1000 reais. Para praticar preços finais mais baixos, mas ainda dentro dos limites do preço que caracteriza uma marca como pertencente ao segmento de luxo, e, ao mesmo tempo, atingir os lucros esperados, alguns grupos económicos celebram contratos com empresas que lhes prestam serviços de produção de vestuário, calçado, algodão, metais preciosos, entre outras matérias-primas. Estas empresas não são geridas pelo grupo económico da marca de luxo. Existe, a este nível, um distanciamento entre empresas.

Tendo em conta o modelo económico implementado por algumas marcas de moda consideradas de luxo: Estará o respeito dos direitos humanos a ser usado como parâmetro para definir moda de luxo ou marca de luxo?

De acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a mais alta aspiração da humanidade é “o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria”.[32]

A concretização desta aspiração assenta, em primeiro lugar, no respeito da “dignidade inerente a todos os homens da família humana”,[33] porque todos nascemos “livres e iguais em dignidade e direitos”.[34]

Nas palavras de Capelo de Sousa a dignidade humana “é inata oferta pela natureza identicamente a todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem, em qualquer circunstância”.[35] Ela nasce, assim, com o indivíduo, e não lhe pode ser retirada. Como princípio fundamental dos direitos humanos a dignidade humana é “fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.[36] Por conseguinte, não existe liberdade, justiça e paz no mundo quando o homem não respeita a dignidade do seu semelhante.

São recorrentes os relatórios que evidenciam, na exploração de ouro, diamantes e outras pedras preciosas: a tortura, a repressão, o abuso sexual, a exploração de trabalhadores, a pobreza, a escravidão, o trabalho infantil, a degradação das condições de segurança com implicações graves para a integridade física e a vida das pessoas ou a discriminação em função da raça, etnia, género, origem geográfica ou religião. O contrabando e o financiamento de governos corruptos e ditatoriais e de grupos rebeldes opressivos assombram o comércio internacional de metais e pedras preciosas. O desenvolvimento da exploração de minas em locais com relevância ambiental e cultural ameaça o direito à paisagem e ao ambiente, bem como todos os outros direitos dos povos indígenas, associados à profunda relação destes povos com as suas terras.[37] Mesmo se uma pessoa consente, no uso da sua autonomia da vontade, em se submeter a condições laborais degradantes, como única forma de sobrevivência, a sua dignidade, ou por outras palavras a sua essência como pessoa humana está a ser violada. Aquele que submete o seu semelhante a tais condições fere os valores essenciais da humanidade.

A dignidade de cada ser humano é a expressão livre do seu desenvolvimento pessoal e não da sua mera sobrevivência. Neste sentido, o respeito do princípio da dignidade da pessoa humana depende da existência de uma subsistência condigna que, face à evolução das necessidades de desenvolvimento pessoal do homem situado no seu tempo, não se satisfaz com o simples assegurar de um direito a um mínimo de subsistência.

De acordo com uma investigação da organização não-governamental (ONG) Clean Clothes Campaign, os operários de empresas fornecedoras da Calvin Klein e Hugo Boss, situadas na República Checa e na Polónia, recebem salários iguais ou inferiores ao salário mínimo nacional.[38] Tendo em conta o custo de vida nestes países, os trabalhadores entendem que precisam de um salário três vezes superior ao salário mínimo de forma a viverem com dignidade. Em alguns casos, necessitam de trabalhar horas extraordinárias para atingir o salário mínimo. Noutros casos, as horas extraordinárias não são pagas.[39]

Como bem afirma Jorge Bacelar Gouveia, cada ser humano é uma “pessoa concreta e não indivíduo abstrato do Liberalismo oitocentista – a pessoa situada na História e não fora dela, vivendo no seu tempo e sentindo um conjunto de necessidades”[40] próprias do seu tempo. Por conseguinte, um salário que corresponda às necessidades do homem actual é condição necessária do desenvolvimento físico e intelectual, da concretização do direito à propriedade privada, bem como de todos os outros direitos humanos de natureza económica, cultural e social que permitem a autonomia e o desenvolvimento pessoal inerente à dignidade da pessoa humana.

Em virtude deste princípio proíbe-se o retrocesso nas condições de vida e na satisfação das aspirações humanas de desenvolvimento pessoal.

Todavia, devido à ânsia de competir com países onde a mão-de-obra é paga com salários muito baixos, assistimos, um pouco por toda à parte, à deterioração das condições laborais no setor têxtil ou do calçado.

De acordo com uma investigação da Campagna Abiti Puliti, publicada em 2016, as condições laborais dos trabalhadores da indústria de calçado e vestuário de Itália, têm vindo a deteriorar-se devido à pressão da concorrência do mesmo setor situado na Ásia e na Europa de leste. Trabalho ilegal e pagamento de salários que não permitem fazer face às necessidades de sobrevivência e desenvolvimento pessoal dos trabalhadores, estão entre os factos que minam a as naturais aspirações do Homem e da própria Humanidade.[41]

Ainda segundo a mencionada investigação, Louis Vuitton, Armani, Prada e Dior estão a comprar, em Itália, fábricas antigas que fecharam devido à concorrência da produção mais barata oriunda dos países do leste da Europa e da Turquia.[42] Teme-se que nestas fábricas recuperadas se adopte uma política de retrocesso ao nível das condições laborais de forma a fazer face à concorrência da produção mais barata.[43] No passado, embora recente, inspetores italianos do trabalho detetaram, por diversas vezes, trabalhadores ilegais e outras situações não conformes com o respeito da dignidade da pessoa humana, em empresas fornecedoras de marcas como a Prada, Louis Vuitton, Chanel ou Dior.[44]

Se a pessoa humana é essência e não mera existência,[45] então ela não é moldável em função da concorrência e do lucro. Muito menos deve ser um instrumento do poder económico.

Relembrando Immanuel Kant, na sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “O homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.[46] Uma vez que “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”.[47]

E se tem dignidade tem ainda liberdade de agir contra todas as formas de censura. Em 2015, a empresa turca SF Leather, que produz carteiras para a marca inglesa Mulberry, despediu catorze trabalhadores por serem membros da Associação de Trabalhadores Deriteks Sendika (membro da IndustriALL Global Union) e reivindicarem melhores salários.[48] Como bem entende Paulo Ferreira da Cunha: “a defesa da dignidade, a luta pela dignidade, é de todos e de cada um. A dignidade, sendo, como a personalidade jurídica, um pressuposto, constitui também, todavia como a capacidade para agir, uma variável do discernimento e do seu efetivo uso na prática”.[49]

Acompanhamos ainda o pensamento do professor Paulo Ferreira da Cunha no que diz respeito à dignidade da pessoa humana como “valor autónomo e auto-subsistente de um ser” que “se traduz na prática, pelo dever moral desse ser para consigo próprio, e pelos deveres jurídicos de respeito, solidariedade e socorro por parte dos outros” e “pressupõem precisamente uma individualidade, mas uma individualidade interativa, social, e radicada”.[50]

Este imperativo do Homem-solidário aplicado à indústria da moda e afins, não é o Homem que pratica a caridadezinha, mas sim aquele que cria ou facilita a existência de um sistema económico em que todos beneficiam, em igual medida, de acordo com os seus méritos, sem comprometer a dignidade da pessoa humana.

Por exemplo, no Uzbequistão, um dos maiores produtores de algodão do mundo, o Estado obriga quase todos os cidadãos, incluindo crianças, enfermeiros ou médicos, a trabalhar nos campos de algodão.[51] Médicos que deveriam estar nos hospitais, crianças que deveriam estar nas escolas trabalham para o negócio lucrativo de um grupo reduzido de oligarcas com ligações ao Estado uzbeque.

O aparente bem comum (riqueza da nação) que o Estado visa atingir, não é mais do que um jogo de egoísmos que beneficia só alguns, conseguido à custa da negação dos direitos humanos e não compatível com a ideia do homem-solidário inerente a uma concepção jusnaturalista da dignidade da pessoa humana.

Se as marcas de moda de luxo aplicam um preço elevado a bens ou matérias-primas que são produzidos e fornecidos em massa, este preço deve ter em conta a produção de bens de acordo com o respeito dos direitos humanos.

Neste contexto, as marcas de moda de luxo têm um dever de implementar uma verdadeira política de responsabilidade social em todas as suas relações comerciais. Impõem-se, assim, uma maior proximidade com as empresas fornecedoras das marcas de luxo e seus trabalhadores.

Essa proximidade deve ser feita através do envolvimento de quem gere estas marcas nas reuniões de associações de trabalhadores das empresas fornecedoras e do trabalho conjunto das marcas com ONGs e consultadorias que lutam pelo respeito dos direitos humanos, que são capazes de identificar por exemplo, os produtores de algodão ou as cooperativas mineiras que aplicam as regras de sustentabilidade e ética na produção e obtenção das matérias-primas, bem como de promover reuniões de concertação entre representantes das marcas de luxo, das empresas suas fornecedoras, dos trabalhadores e das ONGs.

Desta forma, a obtenção e produção do luxo pode ser controlada e realizada em conformidade com as Convenções da Organização Internacional do Trabalho que incidem sobre os direitos dos trabalhadores, a proibição do trabalho infantil, os direitos dos povos indígenas, os direitos dos trabalhadores migrantes, a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, a Convenção Americana dos Direitos Humanos, Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, entre outros instrumentos jurídicos.

Por exemplo, é graças à parceria com a Eco-age e a Alliance for Responsible Mining, que a Chopard consegue obter metais e pedras preciosas provenientes de explorações mineiras que respeitam os direitos humanos.[52]

Devido a ação da Clean Clothes Campaign juntamente com associações de trabalhadores e a sociedade civil, que culminou com uma petição internacional enviada à marca Mulberry, os catorze trabalhadores despedidos da SF Leather foram reintegrados e foi possível organizar, pela primeira vez, reuniões do sindicato dos trabalhadores nas instalações da fábrica turca.[53]

3. Conclusão

Citando o professor Castanheira Neves, para quem o “homem-pessoa é pressuposto decisivo, o valor fundamental e o fim último que preenche a inteligibilidade do nosso tempo”,[54] reafirmamos a importância da implementação, por parte dos grupos económicos que gerem as marcas de luxo, de uma verdadeira política de responsabilidade social em todas as suas relações comerciais, quer através do trabalho em conjunto com organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos, quer através do apoio à proteção dos direitos dos trabalhadores dos seus fornecedores.

As marcas de moda de luxo têm o dever e o poder de orientar e educar a sociedade, contribuindo para a sua evolução em direção ao respeito dos valores essenciais da humanidade ou seja dos direitos humanos.

Moda, Luxo e Direito

Подняться наверх