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Capítulo 1 — Nossa Senhora de Paris

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Incontestavelmente, a igreja de Nossa Senhora de Paris é ainda hoje um majestoso e sublime edifício. Mas, por bela que se tenha conservado ao envelhecer, é difícil não suspirar, não se indignar a gente à vista das degradações, das inúmeras mutilações que simultaneamente o tempo e os homens têm feito sofrer ao venerável monumento, sem respeito por Carlos Magno, que lhe assentou a primeira pedra e por Filipe Augusto que colocou a última.

Se tivéssemos vagar para examinar um por um com o leitor, os diversos vestígios de destruição que se notam na antiga igreja, a parte menor seria do tempo e a pior a dos homens, sobretudo dos homens da arte, visto que houve indivíduos que tomaram a qualidade de arquitetos nos dois séculos.

Três coisas importantes faltam hoje a essa fachada: primeiro o lanço de escadas de onze degraus que lhe dava ingresso; depois a série inferior de estátuas que ocupava os nichos dos três portais, e a série superior dos vinte e oito reis mais antigos de França que guarnecia a galeria do primeiro andar, desde Childeberto até Filipe Augusto, sopesando na mão «o pomo imperial».

O lanço de escadas, foi o tempo que o fez desaparecer elevando progressiva, irresistível e lentamente o nível do solo da Cidade; mas, fazendo devorar um a um, pela maré crescente do pavimento de Paris, os onze degraus que contribuíam para a altura majestosa do edifício, o tempo restituiu à igreja, mais talvez do que lhe tirou, porque foi o tempo que espalhou sobre a fachada a sombria cor dos séculos que faz da velhice dos monumentos a idade da sua beleza.

Mas quem deitou abaixo as duas filas de estátuas? Quem deixou os nichos vazios? Quem talhou, mesmo no meio do portal do centro, essa ogiva nova e bastarda? Quem se atreveu a entalhar aí a pesada e estúpida porta de madeira esculpida à Luís XV ao lado dos arabescos de Biscornette? Os homens, os arquitetos, os artistas dos nossos dias.

E, se entrarmos no interior do edifício, quem derrubou o colossal São Cristóvão proverbial entre as estátuas, como o era a grande sala do Palácio entre as salas e a flecha de Estrasburgo entre os campanários? E as inúmeras estátuas que povoavam os interstícios das colunas da nave e do coro, de joelhos, de pé, equestres, homens, mulheres, crianças, reis, bispos, gendarmes, de pedra, de mármore, de ouro, de prata, de cobre e até de cera, quem brutalmente as varreu? Não foi o tempo.

E quem substituiu o velho altar gótico esplendidamente obstruído de cofres e de relicários pelo pesado sarcófago de mármore com cabeças de anjos e nuvens que parece uma amostra desemparelhada de Val-de-Grâce ou dos Inválidos? Quem estupidamente assentou esse pesado anacronismo de pedra no pavimento carolino de Hercandus? Não foi Luís XIV dando cumprimento ao voto de Luís XIII?

E quem pôs uns frios vidros brancos no lugar das vidraças «altas e de cores» que fazia hesitar os olhos maravilhados dos nossos pais entre a rosa do portal grande e as ogivas da abside? E que diria um subchantre do século XVI, vendo a bela pintura a ocre com que os nossos vândalos arcebispos enxovalharam a sua catedral? havia de lembrar que era a cor com que o carrasco pintava os edifícios infamados; recordar-se-ia do palácio do Petit-Bourbon, todo caiado de amarelo também, pela traição do Condestável. Julgaria que o lugar santo se tivesse tornado em lugar infame e fugiria.

E se subirmos à catedral sem nos determos em mil barbaridades de todo o género, que fizeram desse pequeno encantador campanário, que se erguia sobre o ponto de interseção da janela e que, não menos delicado e não menos arrojado do que a flecha sua vizinha (destruída também), da Sainte-Chapelle, emergia pelos céus mais além do que as torres, esguio, agudo, sonoro, todo vasado? Amputou-o um arquiteto de bom gosto (1787), e julgou que era bastante mascarar a chaga com esse largo emplastro de chumbo que se assemelha à tampa de uma marmita. É assim que a maravilhosa arte da Idade Média tem sido tratada em quase todos os países, especialmente em França.

É um edifício da transição. O arquiteto saxónico acabava de levantar os primeiros pilares da nave, quando a ogiva, que chegava da cruzada, veio colocar-se como conquistadora sobre os largos capitéis romanos que só deviam sustentar plenos arcos. A ogiva, senhora desde então, construiu o resto da igreja. No entanto, inexperiente e tímida na sua estreia, dilata-se, alarga-se, contém-se e não se atreve a erguer-se ainda em flechas e lancetas, como fez mais tarde em tantas maravilhosas catedrais. Dir-se-ia que ela se ressente da vizinhança dos pesados pilares romanos.

De resto, estes edifícios da transição do romano para o gótico não são menos preciosos para estudar do que os tipos puros. Exprimem um cambiante da arte que sem eles se perderia. É o enxerto da ogiva no pleno arco.

Nossa Senhora de Paris é em particular, uma curiosa amostra dessa variedade. Para só indicar os pormenores principais, ao passo que a pequena porta Vermelha chega quase aos limites das delicadezas góticas do século quinze, os pilares da nave, pelo seu volume e pela sua gravidade, recuam até à abadia carolina de Saint-Germain-des-Prés. Julgar-se-ia que há seis séculos entre a porta e os pilares.

A abadia romana, a arte gótica, a arte saxónica, o pesado pilar redondo, tudo está fundido, combinado, amalgamado em Nossa Senhora. Esta igreja central e geratriz é entre as velhas igrejas de Paris uma espécie de quimera; tem a cabeça de uma, os membros, o dorso daquela, alguma coisa de todas.

Victor Hugo: O corcunda de Notre Dame

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