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Capítulo 3 — O Senhor Cardeal

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Pobre Gringoire! O estampido de todos os morteiros de S. João, a descarga de vinte arcabuzes, a detonação dessa famosa serpentina da torre de Billy, que, por ocasião do cerco de Paris, no domingo 29 de setembro de 1465, matou sete borguinhões de um só tiro, a explosão de toda a pólvora arrecadada na Porta do Templo, irromper-lhe-ia com menor violência pelos ouvidos, nesse momento dramático e solene, do que essas seis simples palavras pronunciadas pela boca de um porteiro: Sua Eminência Monsenhor Cardeal de Bourbon.

Não havia nem ódio ao cardeal nem desprezo pela sua presença, na impressão desagradável que produziu em Pierre Gringoire. O que no entanto receava foi o que aconteceu.

A entrada de Sua Eminência revolucionou o auditório. Todos se voltaram para o estrado. Confusamente, todas as bocas repetiram:

— O Cardeal! O Cardeal!

O prólogo, o triste prólogo, foi mais uma vez interrompido.

Ao aparecer na tribuna, o cardeal parou um instante. Enquanto percorria pelo auditório um olhar indiferente, cresceu o tumulto. Todos o queriam ver. Os de trás passavam a cabeça pelos ombros dos da frente.

Era, com efeito, uma bela personagem, por quem valia bem a pena deixar de parte qualquer comédia. Carlos, cardeal de Bourbon, arcebispo e conde de Leão, primaz das Gálias. Era um bom homem; vivia regaladamente a sua existência de cardeal, permitia-se alegrar-se um tudo-nada com os bons vinhos reais de Challuau, mostrava-se mais esmoler para as moças do que para as velhas, e por todas estas razões muito simpático ao populacho de Paris.

Foi, por certo, esta popularidade, tão justamente adquirida que o preservou, à sua entrada, de um acolhimento desagradável da parte da turba, momentos antes descontente e muito pouco disposta a guardar respeito a um cardeal no próprio dia em que ia eleger um papa. Mas os parisienses não são de rancores; e demais, tendo feito com que o espetáculo principiasse, a autoridade dos bons burgueses havia prevalecido sobre a do cardeal, e esse triunfo lhes bastava. Além disso, o senhor cardeal de Bourbon era um belo homem, em quem assentava maravilhosamente a sua bela túnica vermelha, o que quer dizer que tinha a seu lado todas as mulheres, e por consequência a melhor metade da assistência. Seria injusto e de mau gosto apupar um cardeal que não chegava a horas, quando esse cardeal é um belo homem a quem tão bem ficava a sua túnica vermelha.

Entrou, pois, cumprimentou a assistência com esse sorriso hereditário dos grandes para o povo, e encaminhou-se lentamente para a sua cadeira, de veludo escarlate, com o ar mais distraído deste mundo. O cortejo, o que nós chamaríamos hoje o estado-maior de bispos e de abades, irrompeu, após ele, na tribuna, o que fez crescer o tumulto e a curiosidade na plateia. Apontavam-nos, pronunciavam-lhes os nomes: toda a gente forcejava por conhecer ao menos um; se não me engano, aquele é o senhor bispo de Marselha, Alaudet, aquele outro, é o primicério de Saint-Denis; o de além, Roberto de Lespinasse, abade de Saint-Germain-de-Près, irmão libertino de uma amante de Luís XI; tudo isto dito num cachoar de sarcasmos e cacofonias. Os estudantes esses praguejavam. Era o dia da pândega, o seu dia, a saturnal, a orgia anual da toga e da batina. Não havia torpeza que não se consentisse e respeitasse, como coisa livre e admitida. E então que meninas não estavam na sala! Simone Quatrelivre, Inês a Gadina, Robine Piédebou. Ao menos, era um dia cheio; podia-se praguejar e maldizer à vontade! De forma que todos eles usavam e abusavam; e, em meio do brouhaha, era um charivari espantoso de blasfémias e de enormidades, nessas línguas desenfreadas de escreventes e estudantes, coactos durante o resto do ano pelo receio do ferro quente de S. Luís. Pobre S. Luís, que troça que eles faziam no seu próprio palácio de Justiça! À porfia, iam tomando à sua conta, entre os recém-chegados do estrado, uma sotaina preta ou parda, branca ou violeta. Joannes Frollo de Molendino, esse, na qualidade de irmão de um arcediago, atirava-se valentemente à vermelha; cantava como possesso, fixando descaradamente o cardeal: Cappa repelta mero!

Todas estas minudências, que esmiuçámos aqui para edificação do leitor, eram por tal forma dominadas pelo rumor geral, que não conseguiam chegar até ao estrado reservado; de resto, ainda que chegassem, não seria o cardeal quem se melindrasse, porque nesse dia permitiam-se todas as liberdades. Além disso, e dava-o bem a conhecer exteriormente, Sua Eminência tinha uma outra preocupação que o seguia de perto e que entrou quase ao mesmo tempo que ele no estrado: a embaixada de Flandres.

Não era porque fosse um político profundo, nem que se preocupasse em excesso com as consequências possíveis do casamento da senhora sua prima Margarida de Borgonha com o senhor seu primo Carlos, delfim de Viena; inquietava-o mediocremente o saber se duraria muito ou pouco a falsa harmonia entre o duque de Áustria e o rei da França, e ainda menos a maneira como o rei de Inglaterra acolheria o desdém de sua filha; todas as noites fazia honra ao vinho das adegas reais de Chaillot, sem sequer lhe passar pela mente que algumas garrafas desse mesmo vinho (um tudo-nada correto e aumentado, é certo, pelo médico Coictier), cordialmente oferecidas a Eduardo IV por Luís XI, livrariam um belo dia Luís XI da presença de Eduardo IV. La moult honorée ambassade de monsieur le duc de Autriche não era motivo, para o cardeal, de nenhuma preocupação desta ordem, mas importunava-o por outro lado. Com efeito, era um pouco duro ser obrigado a mostrar-se amável e acolhedor, ele Carlos de Bourbon, com quaisquer burgueses; ele cardeal, com almotacéis; ele francês, conviva jovial, com flamengos bebedores de cerveja; e isto em público. Nunca, por amor do rei, tivera a cumprir uma missão tão penosa.

Voltou-se, pois, do lado da porta e com a mais graciosa amabilidade (por tal forma o sabia aparentar) quando o porteiro anunciou com voz sonora os Senhores enviados do senhor duque da Áustria. É inútil dizer que toda a sala fez outro tanto.

Então, com uma gravidade que contrastava em meio do petulante cortejo eclesiástico de Carlos de Bourbon, chegaram, dois a dois, os quarenta e oito embaixadores de Maximiliano de Áustria, tendo à sua frente o reverendo pére en Dieu, Jehan, abade de Saint-Bertin, chanceler do Tosão de Ouro, e Jacques de Goy, sieur Daubi, grande bailio de Gand. Fez-se na assembleia um grande silêncio acompanhado de frouxos de riso, para ouvir todos esses apelidos extravagantes e todos esses atributos a burgueses que, um por um, as personagens iam transmitindo imperturbavelmente ao porteiro, o qual, a seu turno, os lançava de mistura, apelidos e atributos, tudo estropiado, através da multidão. Era mestre Loys Roelof, almotacel da cidade de Lovaina, messire Clays d’Etuelde, almotacel de Bruxelas; messire Paul de Bacusi, sier de Voirmizelle, presidente da Flandres; etc., etc., etc.; bailios, almotacéis, burgomestres, burgomestres, almotacéis, bailios; todos empertigados, afetados, engalanados de veludo e de damasco, encapuchados com coifas de veludo preto de grandes borlas de fio de ouro de Chipre, pendentes; no fim de contas, boas cabeças flamengas, figuras dignas e severas, da família das que Rembrandt faz avultar, tão fortes e tão graves, no fundo negro da sua Ronda da noite.

Havia, no entanto, uma exceção. Era uma fisionomia fina, inteligente, sagaz, uma espécie de focinho de macaco e de diplomata, em frente de quem o cardeal deu três passos, fazendo uma profunda reverência e que, afinal, apenas se chamava Guilherme Rym, conselheiro e pensiondrio da cidade de Gand.

Pouca gente sabia então quem era esse Guilherme Rym. Génio raro que, num período de revolução, romperia luminosamente à tona dos acontecimentos, mas que, no século quinze, estava reduzido às entregas cavernosas e a viver nas minas. De resto, era apreciado pelo primeiro sapador da Europa, maquinava familiarmente com Luís XI, e não poucas vezes tomara parte nas tarefas secretas do rei. Coisas, no fim de contas, ignoradas da turba, maravilhada por ver as cortesias que o cardeal dispensava a essa figura mesquinha de bailio flamengo.

Victor Hugo: O corcunda de Notre Dame

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