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CAPITULO III
Os republicanos e os dissidentes organisam o 28 de Janeiro

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Quem, a dentro do partido democratico, teve a iniciativa da projectada revolta? Não é facil responder, porque ella estava desde muito no animo dos mais fogosos caudilhos d'esse partido. Entretanto, podemos conjecturar que, sabendo João Chagas dos trabalhos revolucionarios que alguns dos seus companheiros de lucta já tinham annos antes encetado, procurasse aproveital-os, realisando ao mesmo tempo a approximação dos republicanos e dos dissidentes, que a dictadura franquista hostilmente arredara do contacto do rei Carlos. Os primeiros passos para o movimento foram dados em casa do visconde da Ribeira Brava, de todos os amigos do sr. Alpoim o que então se mostrava mais inclinado a abandonar a monarchia. Conta elle o seguinte:

«Quando se tinham malogrado todos os esforços dos partidos para subjugar o despotismo do rei e de João Franco fui procurado pelo infeliz Alberto Costa, que me propoz tomar eu a iniciativa da revolta. Hesitei, objectando que para isso me faltavam os elementos populares, que estavam todos no partido republicano, e que sósinho nada poderia fazer.

« – E se você se entendesse com o João Chagas? – retorquiu Alberto Costa.

« – N'esse caso estou certo de que fariamos alguma coisa de importante.

«Ficou logo aprazado um encontro com João Chagas, que se efetuou n'esse mesmo dia, a dez de julho (1907) se não me engano, á meia noite, junto do coreto da Avenida. Ahi assentámos nas linhas geraes do movimento revolucionario, resolvendo-se nomear um comité organisador. A primeira reunião effectuou-se no dia seguinte, em minha casa, comparecendo a ella Affonso Costa, Alexandre Braga, Egas Moniz, França Borges, Mascarenhas Inglez, Marinha de Campos e Alpoim, tendo-se depois d'isso realisado ainda uma entrevista entre José d'Alpoim e Antonio José d'Almeida.»

Na mesma reunião e em posteriores conferencias escolheram-se, para a execução do plano revolucionario, dois comités: o civil composto pelos srs. Bernardino Machado e Antonio José de Almeida, membros do Directorio, e mais João Chagas, Affonso Costa e Augusto José da Cunha; o militar formado por Candido dos Reis, José de Freitas Ribeiro, José Carlos da Maia, Xavier Barreto, Sá Cardoso e Alvaro Pope. O primeiro cuidado d'estes comités foi o de aggregar os elementos que andavam dispersos mas que se conservavam fieis á causa da democracia os que restavam da mallograda revolta de 31 de Janeiro e se tinham preparado para o movimento de 1896, que mal chegara a esboçar-se.

Houve divergencia entre os mais evidentes dos revolucionarios por causa do plano a executar. Uma minoria, radicalissima na maneira de proceder, não contrariava o projecto, delineado ao de leve, de se atacar o paço das Necessidades e forçar o rei Carlos a um embarque consecutivo para o estrangeiro. Os restantes queriam simplesmente limitar a revolta á eliminação da monarchia com o menor dispendio de violencia. Por fim, triumphou a parte moderada dos organisadores do movimento e deliberou-se, em ultima analyse, fazer explodir a Revolução durante a ausencia do monarcha em Cascaes, mesmo para que a sua estada em Lisboa não influisse de qualquer modo na attitude que muitos dos officiaes, de politica indefinida, por certo, adoptariam. Por outro lado, alguns dos revolucionarios receiavam que um acto violento dirigido contra D. Carlos creasse, no extrangeiro, difficuldades á futura Republica. Assentou-se, portanto, em definitivo, que o movimento rebentaria quando o rei estivesse fóra da capital. A Revolução, uma vez triumphante, prenderia em Cascaes o soberano e a familia, e obrigal-os-hia a sahirem do paiz.

Mas, os trabalhos dos conspiradores alongaram-se mais do que seria licito calcular, e, como a familia real regressasse, no entanto, a Lisboa, houve precisão de concertar outro plano, que comprehendia, novamente o assalto ao palacio das Necessidades. N'esta altura do complot, um dos officiaes que os revolucionarios suppunham inteiramente do seu lado commetteu uma traição e o plano soffreu grandes modificações, recomeçando-se, n'outras bases, os trabalhos indispensaveis á sua realisação pratica. Appareceram ainda difficuldades de diversa natureza, contrariando fortemente a propaganda nos quarteis e o aliciamento de elementos civis, e a situação só melhorou quando a familia real partiu para Villa Viçosa, «simplificando bastante o programma pela suppressão d'um dos seus numeros mais difficeis e delicados…»

O plano da campanha, urdido por um official do estado-maior, passou então a ser cuidadosamente preparado. A cidade foi dividida em diversos sectores, comprehendendo cada um d'elles os pontos a atacar, isto é, os pontos d'onde se calculava que surgiria, no momento supremo, a defesa do regimen combalido. Cada quartel da municipal e de cavallaria era cercado de uma verdadeira rede de dynamitistas que, conjugando a sua acção com outros grupos de populares armados, procurariam impedir a sahida, para a lucta, das forças declaradamente monarchicas. As esquadras de policia tambem deviam soffrer o ataque dos populares; os officiaes de marinha e outros elementos revolucionarios tomariam conta do D. Carlos e do quartel de Alcantara; a carreira de tiro em Pedrouços e todos os pontos onde era relativamente facil encontrar armamento seriam egualmente visados pela acção dos revoltosos.

Para o assalto aos quarteis das forças que constituiam propriamente a guarnição de Lisboa, João Chagas organisára vários grupos de 30 a 60 homens de todas as classes – medicos, agronomos, engenheiros, advogados, empregados do commercio, etc. – grupos que se distinguiam uns dos outros por um emblema representando uma flor: – uma rodela de cartão aguarelado que o revolucionario pendurava no forro do casaco e que só seria visivel quando elle o abrisse perante um companheiro ou um chefe. Temos deante de nós varias d'essas rodelas e uma nota escripta a lapis pelo punho de João Chagas, que descrimina assim a formação das forças:

Malmequer, 60 homens.

Rosa, 30.

Violeta, 40.

Cravo, 60.

Saudade, 20.

Crysanthemo, 40.

Papoula, 30.

Total, 280 assaltantes para os quarteis das forças da guarnição. Cada grupo tinha previamente conhecimento do regimento onde, no momento opportuno, devia operar: isto com o fim de conhecer, tambem antecipadamente, o quartel onde prestaria a sua coadjuvação. Os melhores d'esses grupos eram os dirigidos pelo dr. Carlos Amaro, Sá Pereira, Saul Simões Serio e Paulino de Freitas. Estavam armados de revolvers e pistolas automaticas com cincoenta cargas cada.

Note-se incidentalmente que, n'essa época de preparação revolucionaria, a propaganda entre militares conquistara talvez mais adeptos do que annos depois, para o movimento que implantou a Republica. O numero de officiaes adherentes era, sem duvida, maior. A dictadura franquista despertára mais odios e sêde de liberdade do que a inacção, quasi absoluta, do gabinete Teixeira de Sousa. A teia revolucionaria era, innegavelmente, mais complicada. Comtudo, apesar das precauções tomadas e da adhesão de elementos prestigiosos, a opinião auctorisada não agourava bem do emprehendimento, exactamente por lhe parecer que havia demasiada somma de creaturas na posse do grande segredo. É certo que na constituição dos grupos de populares houvera o cuidado de erguer como que uns compartimentos estanques, para impedir que, uma vez um d'elles invadido pela onda da traição, os restantes se afundassem no mesmo pelago. Mas não o é menos que a distribuição de armamento de toda a especie fôra feita com excessiva antecipação – o que já não succedeu para o movimento de 5 de outubro – e o corpo dirigente da organisação revolucionaria admittia, pelas suas variadissimas ligações, uma maior interferencia de indicações e de alvitres, nem sempre proprios a favorecer o triumpho.

A acção dos dissidentes na preparação do 28 de janeiro não ha duvida que foi larga e abundante em peripecias. Os dissidentes e aquelles dos seus amigos que entraram na revolta deram-lhe um apoio material efficaz. O sr. Alpoim, quer em sua casa, ou na famosa pastelaria da Avenida – conhecida como um baluarte dos monarchicos revoltados – ou ainda na casa do visconde da Ribeira Brava, prodigalisava-se em insistente propaganda contra o regimen, a dictadura Franco e até contra a existencia do monarcha dos adeantamentos. Para o sr. Alpoim, como de resto para toda a gente que ousava falar com franqueza, a franqueza permittida pelo dictador, a suppressão de D. Carlos seria o golpe decisivo n'uma situação como, então, se supportava, de intoleravel arbitrio, de rancor, perseguição e delação ignobil. Não quer isto dizer que o chefe da dissidencia progressísta aconselhasse a morte do rei como um dos principaes numeros do programma dos revoltosos… Mas, encarando-a como a solução do problema a liquidar, traduzia as aspirações de muitos patriotas.

O sr. Alpoim, tendo palpitado o monarcha, convencera-se de que elle ligara indissoluvelmente o seu destino ao destino politico do dictador. O governo João Franco deslumbrara o espirito do rei Carlos, mostrando-se-lhe como o unico capaz de confeccionar, para o livro do seu reinado, uma pagina de certo relevo historico. O dictador era o ideal para um soberano que, vivendo até então pouco menos que alheiado da politica interna, resolvera d'um momento para o outro, assim como quem acorda d'um sonho, interessar-se assiduamente pela mesma politica. Eliminado o dictador, D. Carlos, se quizesse proseguir no seu proposito de modificar o regimen da successão ministerial, teria fatalmente que chamar ao poder o estadista ou estadistas que combatiam fortemente o rotativismo.

Não é desasisado suppôr que só com esta esperança é que o sr. Alpoim não adheriu desde logo á Republica. Veiu para a Revolução para trabalhar e trabalhou. Mas, no fundo do seu pensar, talvez se convencesse de que o movimento daria apenas em resultado o apeiar o governo João Franco do pedestal que o monarcha lhe erguera nas columnas do Temps. De resto, o sr. Alpoim confessou isso mesmo mais tarde n'estas linhas que recortamos do seu antigo órgão na imprensa:

«O chefe dissidente, e outros seus correligionarios – não a dissidencia progressista como partido – resolveram então collaborar com os republicanos no intuito de aniquilar o regimen dictatorial que assoberbava o paiz. Vinha a Republica? Tudo era preferivel, tudo, fosse o que fosse, á continuação d'este estado de coisas que era um opprobrio nacional.»

Decidido a trabalhar, tomou contacto com os chefes republicanos e avistou-se com os elementos sem rotulo partidario que apoiavam o movimento. Contribuiu immenso, e mais os seus amigos, para a compra de armamento – e d'ahi o espalhar-se um boato insubsistente a que em breve nos referiremos. A sua interferencia na collecta de fundos para o cofre revolucionario exerceu-se com devotamento digno de registo. Os seus amigos auxiliaram bastante a introducção do armamento em Lisboa e a larga distribuição que d'elle se fez por diversos pontos estrategicos. E se no dia primitivamente marcado para a explosão da revolta não a iniciou com um arranco heroico sobre o ninho da realeza, é porque lhe ponderaram a conveniencia de collaborar antes n'outro episodio não menos importante. Por si, satisfazendo apenas o seu desejo ardente, o sr. Alpoim teria defrontado, com as armas na mão, o monarcha provocador.

Dias antes do 28 de janeiro, Affonso Costa e João Chagas tentaram filial-o no partido republicano. N'uma reunião em casa do visconde da Ribeira Brava, a que tambem assistiu o dissidente Egas Moniz, fizeram-lhe vêr que a hostilidade do paço contra o grupo politico da sua chefia era invencivel e que, marchando elle para a Revolução, de mãos dadas com os republicanos, forçoso se lhe tornava ingressar abertamente na democracia. O sr. Alpoim, ás repetidas e persuasivas instancias que lhe dirigiram n'esse sentido, respondeu:

«Que, sendo chefe d'um grupo politico, que tão dedicada e lealmente o havia acompanhado sempre e onde havia um grande numero de individuos com idéas adversas á Republica, não podia, sem praticar uma deslealdade, abandonar esses amigos; que á causa da Revolução dava a sua pessoa; o seu filho e o seu dinheiro. Estava prompto no momento da lucta a occupar o ponto mais perigoso que lhe fosse distribuido; que nada queria, nem pedia, como recompensa, á Republica, mas que não alterava a sua situação politica.»

A seguir, perguntou ao visconde da Ribeira Brava o que tencionava fazer.

– Eu, meu caro Alpoim – retorquiu-lhe o visconde – já não volto para traz.

O inicio dos preparativos para o 28 de janeiro data de julho de 1907. Um mez depois, Machado dos Santos, que collaborava com os officiaes de marinha Serejo Junior e Soares Andréa n'um acanhado projecto de acção anti-monarchica, foi abordado por Marinha de Campos e Mascarenhas Inglez, que o convidaram a tomar parte no grande movimento organisado pelos republicanos e os dissidentes. A principio desconfiado, Machado dos Santos não tardou a acceder e em setembro, n'uma reunião effectuada no escriptorio de Alexandre Braga, foi apresentado a João Chagas e Candido dos Reis, que com aquelle illustre causidico, Serejo Junior, Marinha de Campos e Alberto Costa, discutiam então a necessidade de chamar o exército em auxilio da conjura. No relatorio que o triumphador da Rotunda publicou em 1911 encontram-se estas passagens que pormenorisam essa reunião:

«Pad-Zé queria ir com 50 homens atacar a cidadela de Cascaes; Marinha de Campos desejava sósinho agarrar a monarchia pelo pescoço e apertar-lhe os gorgomilos. Candido dos Reis com a sua evangelica paciencia deitava agua na fervura, aconselhava paternalmente a moderação e João Chagas, contando os insuccessos de anteriores tentativas revolucionarias, de que havia sido alma, dizia, com a auctoridade da sua experiencia, que sem o exercito nada se devia tentar. «Mas o exercito é nosso!» disse eu ingenuamente á illustre assembleia. Os sorrisos que obtive em resposta convenceram-me do contrario.

«Chagas, o eterno sacrificado das revoluções frustradas, Chagas que, melhor do que eu, melhor do que Candido dos Reis, conhecia os nossos navios de guerra, por n'elles ter sido hospedado pela monarchia, Chagas disse-me que não tivesse illusões, que era necessario trabalhar e trabalhar muito para que alguma coisa se fizesse, e alvitrou uma immediata convocação dos officiaes do exercito, para se saber se estavam dispostos a sahir comnosco para a rua. Candido dos Reis encarregou-se de os reunir e essa reunião ficou assente que se effectuaria tres dias depois, para se conseguir que ella fosse bastante concorrida afim de lhes dar uma impressão de força, que, reunidos em pequeno numero, os officiaes não podiam ter.

«Chamando de parte o almirante, perguntei-lhe se os officiaes da marinha com que contava estavam em commissão de embarque ou no quartel; respondeu-me que poucos, muito poucos, estavam n'essa situação e que d'um momento para o outro podiam ser transferidos e postos na condição de nada nos poderem valer. Perguntei-lhe então se concordava na organisação de fortes nucleos de marinheiros nas differentes unidades, afim de podermos empregar os nossos officiaes no caso do governo os deslocar das situações que tinham.

«Respondeu-me que isso seria optimo, mas que não via quem se quizesse encarregar d'essa organisação, que achava perigosa para a pessoa que a tentasse e que podia expôr o movimento a ser delatado pelo primeiro tagarella de camisola de alcaxa que aparecesse. Disse-me egualmente que via inconvenientes pelo lado da disciplina, porque se o movimento não lograsse exito havia de ser difficil mantêl-a a bordo e para a conseguir muitos teriam que soffrer; comtudo concordava em que sem os fortes nucleos de marinheiros nos diversos navios nunca a Revolução se poderia levar a cabo.

«Ficou assente entre os dois que eu me incumbiria d'isso, declarando ao almirante que me parecia que nenhum movimento os marinheiros deveriam fazer sem a presença d'um official, limitando-se elles a passarem a receber as ordens do official ou officiaes que fossem a bordo ou ao quartel a uma hora combinada…»

D'ahi a dias, Machado dos Santos encetou a tarefa de alliciamento e, dedicando-se especialmente aos frequentadores do bairro de Alcantara, conseguiu juntar oitenta marinheiros, devotadissimos, que, por seu turno se abalançaram, á conquista de novos camaradas, attrahindo-os cuidadosamente á conjura.

A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)

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