Читать книгу A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891) - Abreu Francisco Jorge de - Страница 3
CAPITULO II
O primeiro rebate do conflicto diplomatico anglo-portuguez
ОглавлениеPrecisemos os factos:
O ultimatum de 11 de janeiro de 1890 teve como pretexto a expedição do major Serpa Pinto na Africa Oriental. Antes d'ella já se falava vagamente na possibilidade d'um conflicto anglo-portuguez e porque em 1889, nos fins do reinado de D. Luiz, tudo o que dependia da influencia ou da acção ministerial se inclinava a hostilisar – ainda que mais ou menos disfarçadamente – a Inglaterra e as cousas inglezas.
Parece assente que aquelle soberano, levado talvez por considerações de ordem familiar, projectava lançar-se e lançar ostensivamente o paiz nos braços do imperio allemão, quebrando todos os laços intimos que, desde seculos, uniam a nacionalidade portugueza á Grã-Bretanha. D. Luiz e os seus ministros queriam mais: queriam amarrar á Allemanha o destino do nosso commercio vinicola e das nossas colonias – o primeiro ligado á França e as segundas relacionadas quasi todas com o dominio inglez. Tentou-se mesmo fazer derivar da França para a Allemanha a exportação dos vinhos nacionaes, com a organisação em Berlim d'um certamen, que, no fim de contas, nada deu de productivo.
Mas o primeiro rebate d'essa hostilidade appareceu de fórma inilludivel em julho de 1889, quando o governo então no poder rescindiu o contracto de 14 de dezembro de 1883 (o contracto para a construcção do caminho de ferro de Lourenço Marques). Não diremos em absoluto que essa rescisão fosse apenas inspirada no desejo de ferir homens e interesses da Grã-Bretanha. A verdade, porém, é que muita gente quiz vêr logo no facto o ensejo propicio para o trespasse da mencionada concessão a um grupo de capitalistas allemães e essa suspeita surgiu clara e precisa na imprensa a mais ponderada e suave de termos. A Inglaterra, pela bocca dos seus orgãos jornalisticos, sentiu-se fundamente attingida com a medida tomada pelo governo portuguez e não tardou que désse largas a uma celeuma até certo ponto exagerada, mas comprehensivel em face das nossas manobras secretas com a chancellaria germanica.
Os periodicos londrinos aconselharam acto continuo o governo inglez a enviar a Lourenço Marques uma esquadra, com o fim, diziam ironicamente, de «proteger os seus subditos ali ameaçados pela valentia de Portugal», e embora um ou outro d'esses mesmos periodicos indicasse vagamente a arbitragem como um meio decente de liquidar o assumpto, o conjuncto d'elles não desafinava na sua exigencia de que deviamos soffrer uma punição significativa. Por alguns dias receiou-se, effectivamente, que o governo inglez seguisse o conselho da imprensa exaltada. Mas, como ainda não soara a hora para a diplomacia britannica nos mostrar que andavamos por caminho errado, pretendendo, nos pactos de alliança internacional, substituil-a pela Allemanha, as cousas foram atamancadas sem grande dispendio de dignidade e as nuvens negras, que já carregavam e entenebreciam o horisonte, perderam um pouco do seu aspecto ameaçador.
O partido republicano, tendo seguido com interesse patriotico a marcha dos incidentes, não duvidou estigmatisar publicamente o projecto desvairado da monarchia ao procurar enredar a nacionalidade na teia emmaranhada d'um conflicto diplomatico. Os jornaes da epoca falam pormenorisadamente da campanha que esse partido então fez não só contra a projectada alliança luso-germanica mas, principalmente, contra a entrega do caminho de ferro de Lourenço Marques a um grupo allemão.
Quando surdiu o ultimatum, ninguem hesitou em reconhecer que, se a patada do colosso de além Mancha era brutal, mesmo brutalissima, á monarchia e aos seus governos cabiam, entretanto, uma boa parte das culpas. Opinião identica expressou-a mais tarde João Chagas ao tratar do assumpto, de collaboração com o ex-tenente Coelho:
«Estava-se em principios de janeiro sob uma situação presidida pelo sr. José Luciano de Castro e na qual detinha a pasta dos estrangeiros o sr. Henrique de Barros Gomes, quando os jornaes começaram referindo-se com insistencia á possibilidade d'um conflicto com a Inglaterra, a proposito das pretenções d'esta nação sobre os territorios do Nyassa, onde algumas expedições portuguezas de caracter scientifico operavam ao tempo. O facto pareceu novo e surprehendeu, se bem que tivesse origem antiga no plano de absorpção da Africa Austral e dos territorios sertanejos de Moçambique, principiado a executar-se em 1888, pelo tratado feito entre a Inglaterra e o potentado Lobengula no qual era comprehendido o territorio dos Mashonas, reivindicado por Portugal; e levado a cabo pelo tratado de 18 de maio de 1891, extorquido pelo governo britannico á invalidez portugueza.
«O litigio, que veiu a liquidar-se desastrosamente pelo ultimatum de 11 de junho de 1890, pode dizer-se, começou então. Durante dois annos – forçoso é reconhecer para esclarecimento da historia e apuramento de responsabilidades – a Inglaterra oppôz ás pretenções de Portugal o veto mais formal. Já em 1887, o marquez de Salisbury protestava contra os tratados, assignados e publicados, de Portugal com a Allemanha e a França, declarando não nos reconhecer o direito, que aquellas nações nos attribuiam, de exercermos jurisdicção em territorios d'Africa, onde não tinhamos occupação effectiva, e invocava, para justificar o seu protesto, as decisões da conferencia de Berlim.
«Mais tarde, em 1888, sir James Fergusson pronunciava na Camara dos Communs um discurso que fez impressão em Portugal, mas nem por isso deixou de constituir uma negação severa, que o governo britannico officialmente apoiou, dos direitos de soberania, invocados pelo governo portuguez, sobre o sertão da Africa Oriental. Quando, apoz o tratado feito pela Inglaterra com o regulo Lobengulo, o governo portuguez quiz definir, por uma delimitação, a posse dos territorios da Africa Oriental (outubro de 1888) o governo britannico, presentindo que não chegaria a uma rapida conciliação, fez-lhe sentir, pelo ministro em Lisboa, sir George Petre, que o estado das relações entre os dois governos, no que se referia ás questões africanas, «estava longe de ser satisfatorio, e que uma prolongação d'esse estado podia conduzir a uma seria quebra de amizade entre os dois paizes.»
Em janeiro de 1889, o marquez de Salisbury queixava-se ao representante de Portugal em Londres de que o governo lusitano tivesse feito partir para a Africa e com destino mysterioso (aos territorios do Nyassa) a expedição do capitão tenente Antonio Maria Cardoso e avisava o diplomata portuguez «de que as boas relações dos dois paizes não podiam por muito tempo resistir ao perigo a que estavam sendo expostas». Essa expedição, á data da queixa do marquez de Salisbury, acampava no Monte Melange e luctava não só com as febres mas tambem com a falta de carregadores, parte dos quaes havia fugido. E facto curioso: emquanto o ministro inglez mostrava ao representante de Portugal apprehensões sobre o objectivo principal da expedição, «que lhe parecia ser o territorio occupado pelas missões e estações commerciaes inglezas», os indigenas da região atravessada por Antonio Maria Cardoso desfaziam-se em queixas contra os subditos britannicos, considerando-os d'uma tyrannia excepcional.
Em resumo: os inglezes, antes mesmo de occorrer o facto que mais tarde invocaram como a causa directa do rompimento de relações com o nosso paiz, já preparavam o golpe, aproveitando todos os ensejos de insinuar na diplomacia portugueza a ideia de que cedo ou tarde rebentaria o conflicto e de que este seria motivado essencialmente pela nossa politica e a nossa acção na Africa Oriental. O ultimatum de 1890 surprehendeu até certo ponto a população portugueza. O mesmo não succedeu, por certo, aos governantes, que estavam fartos de saber que a Grã-Bretanha só espreitava o momento favoravel de nos enviar essa ameaça humilhadora.
Ha quem attribua ao ministro do gabinete progressista que mais de perto lidou com a diplomacia ingleza intenções criminosas. Cremos, porém, que isso é exagerado. O ministro em questão, o sr. Barros Gomes, deve antes talvez ser accusado de incompetencia e inhabilidade. As cousas ter-se-hiam naturalmente passado de modo diverso se, quando appareceu na tela da discussão diplomatica a contestação da Inglaterra aos direitos que Portugal affirmava ter em varios territorios da Africa Oriental, o ministro, longe de empregar processos dilatorios, houvesse sem perda de tempo sujeitado o litigio ao exame e decisão d'uma conferencia das potencias signatarias do Acto Geral de Berlim. Por outro lado, como a Inglaterra fundamentava a sua contestação em que esses territorios nunca tinham sido occupados d'um modo effectivo por Portugal nem soffrido a menor influencia civilisadora, ao governo da epoca incumbia logicamente desmentir com actos, e não com palavras, os argumentos utilisados pela poderosa Albion.
Mas o ministro culpado entendeu dever manter até quasi ás vesperas do ultimatum uma attitude de indecisão e de pusillanimidade e assim, quando se iniciou a occupação definitiva dos territorios contestados, lançando-se atravez d'Africa algumas expedições, todas ellas chocaram innumeros obstaculos que precipitaram logicamente o desfecho da questão. O ministro n'essa altura ainda quiz emendar a mão; era tarde, porém, e os erros diplomaticos por elle commettidos não permittiam já que se recorresse á arbitragem internacional. Portugal tinha que aguentar a pé firme e sem esquiva tudo o que a Grã-Bretanha sobre elle fizesse desabar.