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ОглавлениеMulheres negras e de terreiro – uma experiência sociopolítica transatlântica
Janine “Nina Fola” Cunha
O artigo objetiva trazer para a discussão similaridades invariáveis presentes em mulheres negras diaspóricas no Sul da América do Sul (RS e SC – BR, UY e ARG) e que apresentam reminiscências ancestrais africanas não somente no que diz respeito às práticas religiosas, mas presentes na característica compreensão de mundo e de localização social pertinentes aos lugares de mulheres, negras e de tradições de matriz africana.
Abarcam-se, então, valores como estética, ancestralidade, corporeidade, oralidade, entre outros evidentemente reconhecidos em ações comunitárias, coletivas e políticas onde são essenciais na presença negra, articulados na esfera pública, nas relações sociais, nas práticas religiosas e no cotidiano, sejam eles dentro ou fora dos terreiros.
Minhas pesquisas recentes vêm fortalecendo a ideia de que este modo de ser e sentir-se negras na diáspora (Gilroy, 2017) e, principalmente ao Sul do Sul (Oliveira e Pereira, 2019), são epistemologias que organizam e mantêm vidas negras frente à constante violência que sofre a população negra diante da necropolítica (Mbembe, 2018) e do epistemicídio (Carneiro, 2003). Pauta-se então como podem se organizar as subjetividades afro-diaspóricas num contexto globalizado e hierarquizado.
Este é um ensaio que tenta descrever, a partir de uma experiência, pesquisa e escrita vivida sobre esse assunto e que mobiliza outras referências de pesquisa e escrita, constituindo uma escrevivência (Oliveira, 2009) que eleva o encontro com a experiência e se apresenta como uma metodologia de escrita e da narrativa, colocando em jogo as compreensões compartilhadas no exercício da vivência no terreiro, da vivência militante social negra e de acadêmica as quais pude estar nos últimos 25 anos.
Também e com a mesma importância, esta escrevivência parte da potência paradigmática da afrocentricidade (Asante, 2003) – que coloca a experiência e agência negra/o ao centro.
Contextualização
Os terreiros são espaços que conservam uma gama de conhecimento, um manancial epistêmico que, sem dúvidas, é o principal mantenedor civilizatório do povo negro na Diáspora Africana. Esses conhecimentos são materializados na presença das pessoas e das coisas que são cultuadas e preservadas imemorialmente. Todo o ethos cultural negro (Sodré, 1988), mesmo que em dimensões micro ou fragmentadas, se apresenta nos terreiros e nas práticas religiosas.
O que pode ser afirmado é que, por conta do racismo histórico na diáspora houve um recrudescimento destes conhecimentos, isolando-os e fragmentando-os. Mas, em contrapartida, com a globalização do conhecimento sobre África, línguas, filosofia e demais ciências, principalmente a tecnologia, promove-se um acelerado desenvolvimento de paralelos possíveis para o desenvolvimento das áreas afins de humanidades, principalmente porque este fenômeno vem sendo chamado de “reafricanização”. Este, por sua vez, mobiliza novas formas de reinventar as “tradições” constituídas no Brasil e no Sul da América do Sul – ao Sul do Sul, como nos localizam Fernanda Oliveira e Priscila Pereira,
Ao mencionar o espectro da movimentação de mulheres negras, referimos a historicidade inerente ao processo, pois importa compreender como um olhar mais atento auxilia na compreensão de interpelações localizadas ao sul dentro de uma perspectiva histórica […] apresenta aspectos acerca do lugar de produção de parcela do pensamento em questão, dando corpo às epistemologias outras […] e que acompanharão outras reflexões desde o sul. Lugar este que refere um espaço geográfico e social e sintetiza características fundamentais do pensamento de mulheres negras ao sul do Sul, a saber uma produção de um espaço que invisibiliza a história e a presença da população negra. (Oliveira e Pereira, 2019:454-5)
Esta narrativa prioriza a presença das mulheres neste contexto, que sempre se caracteriza violenta desde a colônia até os dias atuais, na colonialidade (Quijano, 1997). E afirmo que, mesmo com a força colonial patriarcal, a presença e força das mulheres negras resiste e por vezes prevalece, se sobressaltando nestes ambientes. Não simplesmente pelo fator numérico de presença feminina nos espaços negros, não somente pela permanência e liderança das mulheres em coletivos negros e familiares, mas pelo fator da matripotência (Ribeiro, 2020), que a seguir descreverei.
O pressuposto primeiro é da força matrigestora presente na cosmogonia negro-africana. A filosofia africana e seus teóricos, principalmente as teóricas afro-brasileiras as quais me filio, trazem o debate do poder feminino na permanência negra nas Américas e no processo colonial em África. Conforme afirma Katiúscia Ribeiro, mulher negra, gaúcha, de terreiro e filósofa que:
O poder do feminino nas tradições africanas é milenar – e essas relações de pertencimento estão envoltas por valores ancestrais e sociais, pois os poderes de gestação não são somente para gestar vida, mas estão também nas forças dinâmicas e propulsoras que movem as relações de todo um processo do comum2 que organiza e propõe perspectivas de interrelações grupais. (Ribeiro, 2020:38)
Se o poder feminino é milenarmente reconhecido nas tradições africanas, o que podemos desvendar com esta afirmação? Inicialmente, dá indícios de como que se refaz nas comunidades negras, sejam elas religiosas ou não, a garantia de um protagonismo das mulheres, que nem sempre são as geradoras daquela vida em especial, mas promotoras das continuidades viventes em si. Seguindo no que a filósofa continua afirmando, estes valores se envolvem em valores ancestrais e sociais e que estes saberes/fazeres das mulheres, muitas vezes entendidos como domésticos e hierarquicamente reduzidos pelos padrões patriarcais, são efetivamente poderes de geração de vida.
Assim, o que se entende é que fica assegurada através das mulheres a manutenção destes valores e certificada a presença continuada, dado que as mulheres, principalmente no sistema patriarcal, é dada a função de cuidadora. Esta função cuidadora também é subvalorizada pelo ocidente, mas fundamentalmente importante nos terreiros. Inclusive sendo nos terreiros de candomblé instituído um cargo para as mães criadeiras, mas que em todas as outras funções na hierarquia circular (Bueno, apud Cunha, 2020) o cuidado é presente, inclusive nos cargos ditos masculinos.
O cuidar no terreiro talvez seja um dos mais sérios, importantes e primordiais ensinamentos/conhecimentos que circulam na pedagogia do terreiro (Santos, 2019), onde a/o aprendiz deve abrir sua sensibilidade, se desfazer dos costumes cotidianos e entender que é base filosofal de todos os fazeres. Por isso, é importante enfatizar que, num contexto afro-diaspórico, num contexto em que atingidas/os por um projeto de violência secular como foi a escravidão e, depois num projeto genocida que se perpetua na colonialidade das Américas, jogada à marginalização, a população negra, incrivelmente, permanece viva. Como nos diz Paul Gilroy sobre o que a ideia de diáspora:
… possa nos ajudar a acabar com a tal marginalização. No espírito do que pode ser chamado de história “heterológica”, gostaria que considerássemos o caráter cultural e as dimensões políticas de uma narrativa emergente sobre a diáspora que possa relacionar, senão combinar e unificar, as experiências modernas das comunidades e interesses negros em várias partes do mundo. (Gilroy, 2017:11)
Paul Gilroy nos apresenta uma proposta de construção de outra narrativa, com uma ideia próxima da lógica da vida e que nos traz a importância, a responsabilidade e a garantia que as mulheres negras, principalmente as que são mais ligadas à ancestralidade, têm, contrapondo os projetos políticos de morte impetrados às populações negras, uma contra-colonialidade.
Katiúscia Ribeiro afirma e nos faz pensar que a força de gerir vida das mulheres (reduzidas somente à maternidade biológica pelo patriarcado) é, para as mulheres negro-africanas, também a mesma força de gestar as organizações sociais, ancestrais, econômicas e políticas do povo a qual estas mulheres pertencem.
Assim, juntamente com outras pensadoras negras (Oyewumi, 2016; Collins, 2019) o poder das mulheres africanas e afrodiaspóricas se materializa primeiramente por se localizar num tipo de saber promovido pela ancestralidade, organizado pela matriz africana e, portanto, organizado pela cosmossensação (Oyewumi, 2016) em lutas sociais e coletivas – pela justiça social (Collins, 2019) e pela democracia. Essas lutas são referências iniciadas pelos indivíduos escravizados e seus descendentes, de forma contracultural à modernidade, à política liberal que constrói “inocentes noções de justiça e democracia” (Gilroy, 2017), onde somente os iguais podem ter o pleno acesso e os diferentes habitam fora deste enredo. Portanto, a luta pela justiça social, pela democracia e liberdade também toma outras dimensões quando é dita pelas populações que se agenciam em causas próprias, incorporando assim dimensões de raça, classe, gênero e território.
A cosmossensação descrita pela socióloga Oyeronke Oyewumi se contrapõe ao paradigma da racionalidade ocidental, em que a razão está na máxima: penso, logo existo, de Descartes. No conhecimento nigeriano descrito pela intelectual, a racionalidade africana é produzida nas relações cosmogônicas e sentimentais, portanto, sinto, logo me conecto com o cosmo e produzo racionalidade compartilhada.
Dentro do esforço do giro decolonial (Quijano, 1997) que mobiliza tornar possível outras narrativas que se contrapõem ao esquema colonial ainda vigente – colonialidade – é que acredito ser possível localizar a fonte de saber das mulheres negras na diáspora, nas Américas e ao sul do Sul.
Então, construir uma narrativa que se assegura em olhar para fenômenos sociais e políticos – as similaridades invariáveis –, sem dar ao dado histórico devida relevância e verificar quais são suas possibilidades de variações, considerando que a humanidade sempre apresenta saídas criativas e inovadoras que fogem ao controle do previsível social, estaria desrespeitando um grande e importante princípio, quando falamos em civilizações antigas, que é a ancestralidade negro-africana. A ancestralidade que fez a travessia nas águas do Oceano Atlântico e nas Américas se hospeda. Um exemplo disso é a louvação à Iemanjá no Brasil e em toda a costa Atlântica – o Atlântico Negro.
A contaminação líquida do mar envolveu tanto mistura quanto movimento. Dirigindo a atenção repetidamente às experiências de cruzamento e a outras histórias translocais, a ideia do Atlântico Negro pode não só aprofundar nossa compreensão sobre o poder comercial e estatal e sua relação com o território e o espaço… (Gilroy, 2017:15)
Como os conhecimentos da ancestralidade operam diante do contexto de ruptura violenta que sofreram as africanas e os africanos com suas retiradas em massa para as Américas é o que atualmente os intelectuais, principalmente os de origem negra, têm descrito, com narrativas e potências de observação e entendimento sobre como foi possível resistir frente aos séculos de exploração e expropriação continental:
… devemos reconsiderar as possibilidades de escrever relatos não centrados na Europa sobre como as culturas dissidentes da modernidade do Atlântico negro têm desenvolvido e modificado este mundo fragmentado, contribuindo amplamente para a saúde do nosso planeta e para suas aspirações democráticas. (Gilroy, 2017:16)
As possibilidades de existências afrodiaspóricas no momento atual se apresentam diversas, dinâmicas e resultantes das arbitrariedades de sobrevivência à escravização e na manutenção de existências nos territórios compartilhados – de forma mais próxima com os povos originários (ameríndios) e de forma desigual com o povo colonialista (branco europeu). Estas possibilidades se apresentam plurais por vários motivos: clima do local, grupos étnicos reunidos, situação a que foram expostos – trabalhos de ganho, agropecuária, domésticos –, e possibilidades de rebeliões e fugas.
Assim, negras e negros nas Américas – diasporizados – levaram consigo suas existências. Pode parecer retórica esta afirmação, mas ela é importante quando estamos demarcando espaço acadêmico de construção de conhecimento, onde ‘negro’ sempre foi tema, objeto de pesquisa e sofreu uma sistemática invisibilização como sujeito de produção intelectual, epistemológica e filosófica.
Estas possibilidades de existência, mesmo que superficialmente se apresentem de maneiras diversas, também apresentam similaridades que nos últimos tempos têm se apresentado às ciências sociais que, debruçadas nos estudos africanos e centradas na agência negra (Asante, 2003), se baseiam na filosofia e epistemologia africana intentando afirmar a confluência (Santos, 2015) ancestral ou ancestralidade negro-africana.
Se, pelo conhecimento científico, pudermos eliminar todas as formas das frustrações (culturais e outras) que vitimam povos, a aproximação sincera do gênero humano para criar uma verdadeira humanidade será promovida. (Diop, 1974:545)
Fortalecida neste espírito científico contra-colonial de Cheikh Anta Diop, este ensaio me motiva em promover a confluência ancestral, tanto verbalizada por Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, afirmando que a confluência rege os processos de mobilização dos povos, gerando grandes debates entre a realidade e a aparência.
Lutas por justiça social
As condições de vida, na chegada de homens e mulheres negros africanos, vindos de África no tráfico transatlântico, eram de igualdade: todos eram corpos-coisas que serviriam como força de trabalho ao senhorio – escravos.3 No instante que se escolhia estes corpos-coisas, fazia-se a divisão sexual do trabalho. Ali estabelecia-se que mulheres serviriam para cuidar das mulheres e crianças brancas, cozinhar, lavar e passar as residências das famílias, enquanto as consideradas “mais fortes” eram encaminhadas para afazeres de força na agricultura ou ganho, juntamente com os homens, sejam eles crianças, jovens ou adultos.
Mesmo nesta descrição rápida sobre o que foi o comércio das pessoas escravizadas4, é possível entender que diante desta realidade se dá uma inversão de valores de cada trabalho/função, num contexto arbitrário, e que o indivíduo negro/a forçosamente devia entender e se reconstruir em padrões de valorização de si e do outro. Padrões totalmente diferentes dos que existiam nas sociedades negro-africanas.
Assim, foram se criando várias saídas de sobrevivência, com possibilidades de recriação do mundo africano, através de reminiscências ancestrais (Machado, 2019). Organizando-se inicialmente nos espaços de convivência social (senzalas) e depois nos outros espaços de aglutinação negra. Os terreiros se constituem nesta segunda opção, sendo uma forma dentro destas tantas possibilidades, assim como os quilombos também foram e que atualmente podemos reformular em aquilombamentos como nos permite pensar Beatriz Nascimento, que diz que o “quilombo não foi o reduto de negros fugidos: foi a sociedade alternativa que o negro criou” (Nascimento, 2018: 101).
O que podemos constatar assim é que, em qualquer que seja esta situação, a complexidade negro-africana perpetuou e influenciou nas composições de comunidades negras em geral, invadiu outros espaços sociais de maioria negra, tais como as comunidades de moradias pobres e periféricas, se espargindo para a construção cultural e social das mesmas.
Assim, a sabedoria ancestral de negras e negros compõe culturalmente as numerosas manifestações populares afrodiaspóricas e afroindígenas. Está impregnada no comportamento social, nas formas linguísticas, ritualísticas e culinária (principalmente no Brasil, de onde me localizo) e as invariáveis se apresentam como um complexo de saberes de ordem ontológica, epistêmica e ética. Por isso é fundamental afirmar a noção civilizatória e do conhecimento, da sua origem filosófica e teológica.
Movimentos sociais e acadêmicos no processo de fortalecimento afrodiaspórico
O movimento feminista negro, principalmente o estadunidense, tem pautado que a luta das mulheres negras segue em ser uma pauta coletiva e luta para garantir principalmente a justiça social e o Bem Viver. Nos últimos anos, este termo tem tomado conta dos movimentos feministas negros nas Américas e no Brasil, ficando mais evidenciado quando Bem Viver se torna slogan da Marcha das Mulheres, evento que reuniu mais de 50 mil mulheres em Brasília, capital do Brasil, em novembro de 2015. Mais especificamente no movimento de mulheres negras do Brasil, o conceito é retomado por Nilma Bentes5, no contexto da Marcha de Mulheres Negras, organizada pelo eminente recrudescimento das políticas públicas e sociais, se mobilizando em contraposição ao modelo capitalista neoliberal que mostrava crescimento. Mas o que é Bem Viver dentro do contexto feminino e negro?
Antes é necessário verificar que nas Américas, Bem Viver é:
… segundo Sólon (2017) em obra organizada sobre Alternativas Sistêmicas, é um termo que está em disputa. Proveniente de comunidades andinas, ele é na verdade uma concepção filosófica, uma cosmovisão sobre a relação entre seres humanos e natureza (2017:17). Há algumas décadas atrás, recebia outras denominações, como: qamaña (aymara) e o sumaq kawasay (quéchua). O Bem Viver desponta no cenário atual, sobretudo, entre os setores de esquerda no início do século XXI, tendo conquistado ampla visibilidade nos governos de Evo Morales na Bolívia (2006) e de Rafael Correa no Equador (2007). Ainda que anunciassem um novo momento político de reconhecimento da população indígena nestes territórios, para Sólon (2017), o conceito de Bem Viver fora reduzido na versão equatoriana a uma visão de direitos, e no caso boliviano, transformado em uma perspectiva ético-moral. O modelo desenvolvimentista destas sociedades seguiu não sendo confrontado e o conceito assumiu um caráter simbólico, instrumental, do campo dos princípios a serem alcançados. (Oliveira, 2019:26)
Desde a leitura do texto, este termo é aproximado à cosmovisão ameríndia, calcada no entendimento sobre a Mãe Terra – Pachamama – entre outras denominações. Tenta explicar a busca do equilíbrio, a complementaridade dos diversos, na convivência com a multipolaridade – a visão do todo ou a totalidade na Mãe Terra que questiona o projeto desenvolvimentista que vem do capitalismo como nos traduz Pablo Sólon (2017).
Bem Viver está dentro de uma concepção de vida cíclica, em que o tempo entre passado e presente vivem juntos, recriando futuro; em que humanidade e natureza pertencem igualitariamente ao mesmo cosmos, refutando dualidades e enunciando a necessidade da complementaridade com a diferença. Assim, se pertence e se atua com pressupostos de distribuição de riquezas, de trabalho coletivo e vida comunitária, e as desigualdades devem ser sempre ajustadas através do pensamento sobre equidade.
Bem Viver, portanto, também é uma reflexão das mulheres negras. Aparece produzido na resistência a estes séculos de violências e também é considerado como a possibilidade de existência individual e coletiva das pessoas negras (homens e mulheres), em que seus direitos primordiais possam existir, serem respeitados, assim como aquilo que produzem possam ser considerados como saberes e conhecimentos, não passíveis à expropriação.
No contexto brasileiro, e acredito que no sul-americano seja similar, há um enorme número de mortes violentas da população masculina e jovem negra: seja por violência policial, homicídios ou acidentes. Ou seja, o Bem Viver engloba a humanidade de mulheres e homens negros em relação àa sua cidadania. Em outras palavras, o Bem Viver de mulheres negras passa por lutar pela vida dos homens que fazem parte de suas vidas: pais, maridos, filhos e irmãos.
O Bem Viver tem muita proximidade à filosofia Ubuntu (Noguera, 2012), uma filosofia africana que tem a premissa sobre a existência humana, que somente se justifica por meio de outras existências, entendendo que esta outra existência é diversa, complexa e necessária para a complementaridade entre indivíduos e as coisas.
Assim, a proposta de justiça social e democracia pode se radicalizar e se ampliar, aceitar a diversidade de narrativas, se mostrar pluriversa e criar a possibilidade de constituir as cosmovisões amefricanas (González, 2018) – ameríndias e africanas – que se dão ao partilhar valores que são imprescindíveis para a conformação das comunidades marginalizadas, empobrecidas e submetidas à subalternidade, e que se apresentam como modelos similares, por isso, utilizar o termo Bem Viver cabe em sua complexidade para estas realidades, assim como Ubuntu, valores que são fundamentais e civilizatórios de toda a África.
O pensamento sobre equidade, trabalho associativo e complementar, respeito à diferença, entre outros, também faz parte do que chamamos de valores civilizatórios de matriz africana, muito bem descrito por Azoilda Trindade:
Reconhecemos a importância do Axé, da ENERGIA VITAL, da potência de vida presente em cada ser vivo, para que, num movimento de CIRCULARIDADE, esta energia circule, se renove, se mova, se expanda, transcenda e não hierarquize as diferenças reconhecidas na CORPOREIDADE do visível e do invisível. A energia vital é circular e se materializa nos corpos, não só nos humanos, mas nos seres vivos em geral, nos reinos animal, vegetal e mineral. “Na Natureza nada se cria, tudo se transforma”, “Tudo muda o tempo todo no mundo”, “… essa metamorfose ambulante”. Se estamos em constante devir, vir a ser, é fundamental a preservação da MEMÓRIA e o respeito a quem veio antes, a quem sobreviveu. É importante o respeito à ANCESTRALIDADE, também presente no mundo de territórios diversos (TERRITORIALIDADE). Territórios sagrados (RELIGIOSIDADE) porque lugares de memória, memória ancestral, memórias a serem preservadas como relíquias, memórias comuns, coletivas, tecidas e compartilhadas por processos de COOPERAÇÃO e COMUNITARISMO, por ORALIDADES, pela palavra, pelos corpos diversos, singulares e plurais (CORPOREIDADES), pela música (MUSICALIDADE) e, sobretudo, por que não, pelo prazer de viver – LUDICIDADE. Ao redescobrirmos os valores civilizatórios afro-brasileiros, podemos compreender que vivemos embates terríveis, sociais e históricos, determinados pelo racismo; perceber que não estamos condenados a um mundo euro-norte-centrado, a um mundo masculino, branco, burguês, monoteísta, heterossexual, hierarquizado… Outros modos de ser, fazer, brincar e interagir existem. (Azoilda Trindade)6
Azoilda Trindade destaca a África na sua diversidade e como os africanos e seus descendentes implantaram, marcaram e instituíram no Brasil valores inscritos na memORÍa – termo descrito por Beatriz Nascimento trazendo Orí (cabeça na língua iorubá) como possibilitador de uma memória coletiva ancorada no corpo negro e o quilombo como território corporal.
O africano vem com as suas nações. Mesmo que fossem fragmentadas em alguns momentos, as nações guardavam seus nomes e reproduziam isso em formas mitológicas e simbólicas. E Orí é a palavra mais oculta porque é o homem, sou EU. Porque é o indivíduo, a identidade. A identidade individual, coletiva, política, histórica. (Nascimento, 2018:343)
Por tudo isso, aproximamos o movimento de mulheres negras ao movimento afro, latino-americano e caribenho, que se entende e se harmoniza pelos valores do Bem Viver ou em palavras originárias africanas Ubuntu ou originárias ladinas Pachamama que,, lançando a possibilidade de mobilização em torno destes pressupostos, olha para os povos e comunidades invisibilizados neste processo neoliberal que tem crescido e imputado novas formas de violências. Muitas dessas regidas pelo discurso meritocrático e xenofóbico.
O movimento de mulheres negras, quando reivindica Bem Viver, está pensando nos direitos primordiais. Uma reivindicação para além dos direitos humanos (constituídos pela Declaração “Universal” dos Direitos Humanos de 1948), pois a humanidade das pessoas racializadas é enxergada (e os fatos de violência e morte em massa dessas pessoas vêm confirmando isso) de forma diferenciada tanto privada quanto publicamente.
O que quero expor como direitos primordiais são: vida, saúde, plena cidadania, educação, alimentação e moradia. Que determinariam a garantia de uma possível harmonia no viver e estar destes grupos. O que, na realidade, em termos de diretos ainda pouco se avançou para o que depois da escravidão foi determinado, para as comunidades negras e as poucas indígenas que restaram. Obviamente, observadas as proporções e as formas de expropriação física, mental e moral dos corpos negros, hoje podemos, junto com Achille Mbembe, dizer que há um processo necropolítico de matança de nosso povo (Mbembe, 2018).
Esta política de hierarquização de vidas escalona a valoração e escolhas que acabam deixando morrer ou fazendo viver, prioriza um contexto racista e neoliberal para que se estabeleça inclusive a menor valia de trabalho e prestação de serviços. Assim, pode-se rapidamente entender uma das coisas mais básicas das sociedades colonizadas, o serviço doméstico de mulheres racializadas. Visualizadas em imagens de controle (Collins, 2019) que as designam sempre para as funções de serviço doméstico, serviço sexual ou serviços de maternagem.
Boaventura de Souza Santos (Santos, 1995 apud Carneiro, 2005) promove um recorte interpretativo sobre epistemicídio baseado no dispositivo racialidade/biopoder, se constituindo, segundo o autor, como um dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial, pela negação da legitimação de outras formas de conhecimento e principalmente da negação dos membros sujeitos destes conhecimentos ignorados, portanto elaborado no paradigma da alteridade – negação do Outro –, em um empreendimento colonial e sua visão civilizatória, principalmente nas Américas, onde ocorre o epistemicídio e o genocídio.
O autor carrega nestas formulações conceituais o conhecimento no processo colonial que ficou arrolado somente aos detentores do poder e, portanto, para os povos colonizados seus conhecimentos primevos foram dizimados, mortos. Este contributo foi calcado a partir da tradição filosófica ocidental, e esta não suporta a complexidade da alteridade amefricana. E como diz Sueli Carneiro, é limitante para uma integração dos Outros, que são as mulheres e homens racializados, pois é “a construção do outro como não-ser como fundamento do ser” (Carneiro, 2005). Então, este conceito epistemicídio é ampliado como a autora descreve:
Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural7: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc. (Carneiro, 2018: 97)
A escrita da Sueli Carneiro apresenta a forma com que a luta das mulheres se coletiviza, quando a autora utiliza a terceira pessoa de plural no início de sua frase conceitual. E segue citando os diversos e amplos espaços de subjugação por onde o epistemicídio opera, traçando o que ela denomina de “indigência cultural”. Para além da morte intelectual, do conhecimento, somos atravessados pela invisibilidade histórica, o que cria uma não ação, um não lugar, uma não existência, um sequestro da razão quando nega a racionalidade deste Outro.
Esta crítica de Sueli Carneiro promove um pensamento importante para as construções acadêmicas, em que percebemos muitas das vezes uma brecha histórica sobre o sujeito e a sujeita negra. Quando não temos arcabouços teóricos para dimensionar a produção intelectual negra na diáspora. E eles existem, temos ainda o problema do acesso.
Por isso, é muito comum atualmente termos trabalhos acadêmicos que se referenciam à escravidão e pulam, dando um salto cronológico e histórico, para os dias atuais, como que se também no período pós-abolição não houvesse a agência negra em prol de suas vidas, desejos e conquistas. Como se a sociedade se tornasse “menos racista” ou “mais receptiva” à diversidade por ela mesma. Sem a contribuição fundamental do senso crítico social criado pelos movimentos negros, sejam eles de ordem social, cultural ou intelectual.
Nestas outras narrativas, as das sujeitas negras, dos sujeitos negros, poderemos encontrar um apanhado de informações que nos dizem sobre estas existências, de forma múltipla, individual, coletiva e organizada. Formas expressivas artísticas e culturais foram as que sempre escaparam para dentro das narrativas ditas como as expressões populares, “profanas” ou acessíveis ao público. Sempre colocadas em tom de brincadeira, deboche e com toques pornográficos, as expressões culturais por muito tempo foram vistas e descritas com uma peculiar desvalorização do fazer negro.
As mulheres de terreiro aparecem na brecha desta discussão, em seus terreiros, não se constituindo como espaço privados, mas como espaços públicos da população negra e indígena. Espaços de aglomeração da população empobrecida e carente das políticas públicas. E as comunidades se constituem para o atendimento das complexas demandas que estas existências sobrecarregam e assim sendo os espaços de resistência de conhecimento e de multiplicação das possibilidades de existência na diáspora.
O terreiro, este espaço que se visualiza físico, mas que se expande para a imaterialidade, não só contribui para uma manutenção de conhecimento, como também é capaz de gestar e gerar (Ribeiro, 2020) a ontologia do ser negro nas Américas. Ali a vida é reproduzida material e imaterialmente. A criação dos indivíduos e da comunidade se dá por e para ela mesma. Todos os elementos são corresponsáveis por cada vida, portanto, gestar e gerir vira um atributo coletivo do terreiro.
Os atributos vindos desta gestação são evidentes na estética, na culinária, vestimentas, artefatos, fazer musical, corporal e também estratégias de convívio social, onde se ressignificam símbolos e imagens, cores e sabores, polifonias e polirritmias, sem dualidades entre sagrado e profano ou entre o bem e o mal, mas sim fortalecendo a percepção cósmica – cosmopercepção – e coletiva das pessoas e das coisas.
As religiosidades de matrizes africanas, em suas lidas cotidianas, rituais e mistérios, engendram toda a sabedoria que foi transplantada e transportada pelo Atlântico. E neste oceano reside toda a força que em trânsito foi depositada através dos corpos-coisas que foram deixados, formando um grande cemitério negro ancestral.
As águas, para o Povo de Terreiro, o mar, cachoeiras, rios e lagoas, contêm um imenso significado vital, assim como deveria ser para todos os povos. As deusas, orixás, inkisses e voduns são aclamadas e cultuadas com muita intensidade, pois são elas que se assemelham e se representam nas águas. Assim, sabemos que no Atlântico reside um memorial de sabedoria que, materializado por Iyemanjá, a rainha do mar, a mãe de todas as cabeças, que concebe e permanece gerando mais e mais filhos – o Atlântico Negro.
Não podemos tentar mensurar quão complexas foram as saídas de resposta e de sobrevivência possíveis dos africanos e africanas, à medida que reconstroem e atualizam as práticas africanas. Sendo assim, em cada comunidade negra se produziu/produz uma tradição. Muito por conta das diferentes línguas, cultos, rituais e costumes vindos do continente africano. Podemos inclusive afirmar que clima, fauna e flora disponíveis, contribuíram também para a constituição da diversidade de organizações que se apresentam no Brasil e nas Américas, além de considerar os grupos étnicos africanos juntados e os grupos étnicos originários que tiveram que organizar convivências.
A importância dos povos originários para a organização negro-africana no Brasil se mostra fundamental. Aparece muito pela utilização de ervas e animais, que é basicamente experimentada e igualmente conhecida, mostrando que efetivamente a troca de conhecimentos se deu e ainda se dá de forma dinâmica, horizontal, circular e presente. Além do mais, como podemos verificar, as cosmopercepções de mundo africano e ameríndio são similares, fator que pode responder o porquê entre estes povos não aparecem, pelo menos em fatos historicizados, grandes conflitos, até porque o racismo latino-americano…
… é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. (González, 2018:326)
Portanto, a relação entre povos africanos e ameríndios traz, inclusive para dentro do pensamento feminista negro brasileiro, a produção de uma categoria analítica construída neste espírito pela intelectual Lélia Gonzalez: a Amefricanidade (González, 2018), que diz:
As implicações políticas e culturais da categoria Amefricanidade são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Em consequência, ela nos encaminha no sentido de construção de toda uma identidade étnica. Desnecessário dizer que a categoria de Amefricanidade está intimamente relacionada àquelas de Pan-africanismo, “Negritude”, “Afrocentricity”8 etc. (González, 2018:329-30)
Lélia Gonzalez colabora para que possamos reivindicar esta identidade negro-africana reconstituída na América ou Américas. Mas também não deixa de enfatizar que é uma reconstrução, e que diretamente isso quer dizer que histórica e culturalmente esta experiência não é igual àquela dos africanos em África, pois neste caso, mesmo sendo colonizados, estes permaneceram em seu próprio território-continente. Assim, podemos pensar que para os ameríndios, mesmo estando em situação de igual subalternidade, esta experiência se dá em seu território. Portanto, o fenômeno que se desencadeia na sobrevivência das culturas africanas (González, 2018) é um evento importante para os/as pesquisadores/as e militantes, pois pode proporcionar trocas intensas entre as/os interessadas/os nas Américas de Norte a Sul, sem o engano evolucionista e eurocêntrico, assim como o engano sobre estas sobrevivências sem considerar a potência criadora dos afrodiaspóricos.
Esta produção sem engano, sem fakes, é construída em cima do paradigma de que há um passado de resistência. Um passado de agência que é seguramente responsável pela nossa existência. Assim, entendemos a frase da pensadora Jurema Werneck, que diz que “nossos passos vêm de longe” (Werneck, 2010), pois esta frase carrega o compromisso da amplitude social e política digna da ancestralidade e das ialodês9 , e a autora faz…
… uma “aproximação dialógica com a tradição afro-brasileira utilizando a figura da Ialodê, como chave de análise de papéis, das funções e ações das mulheres nos processos da cultura popular. (Werneck, 2007: 59)
Considerando assim que nossos passos, passos do povo preto, vêm de África e dela percorrem todas as Américas. Neste caminho, as/os antepassadas/os, tiveram a necessidade de existir, resistir e vingar suas vidas, a partir de convivências forçadas pelo processo escravocrata, que forçosamente foram juntadas as pessoas de etnias e línguas diferentes em espaços diminutos, para ser mais um vetor de opressão (e foi), mas que o que aconteceu realmente foi a possibilidade de fundir e potencializar fragmentos de memórias que foram se reconstruindo estes saberes e que hoje é possível detectar e inclusive estudar no universo acadêmico. E Lélia Gonzalez novamente nos diz:
Por tudo isso, e muito mais, acredito que politicamente é muito mais democrático, culturalmente muito mais realista e logicamente muito mais coerente, identificar-nos a partir da categoria Amefricanidade e nos autodesignarmos amefricanos… Reconhecê-la é, em última instância, reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos. (González, 2018:333)
Assim, mulheres negras transatlânticas (Nascimento apud Ratts, 2006), amefricanas (González, 2018), afrodiaspóricas (Gilroy, 2007), constroem fortes versões de consciência histórica. Capazes de legar a esta coletividade política, filosófica, histórica e culturalmente um pleno e multicêntrico fluxo de conhecimento, em uma reconstrução de linhas cosmopolíticas.
Considerações finais
Fortalecida com as intelectuais negras, e considero aqui intelectuais não somente as mulheres que escrevem academicamente ou até militantemente (se é possível separar estas categorias), mas também as mulheres cotidianas, as mulheres práticas, as mulheres da vida (vida essa sendo vivida dentro das possibilidades para as mulheres negras), com elas, a cada dia, tenho percebido que se faz urgente uma união estratégica e política, pois filosófica e epistemologicamente temos condições de perceber que existe uma unicidade. Uma verdade contrapondo a mentira racista que diz que não somos unidos. O problema é que a vida de urgências, a comunicação imediata e fugaz e o imperialismo de consumo asfixiam e não deixam os indivíduos perceberem que existem frestas para alianças contra coloniais, que existem exemplos seculares desta forma de resistência e os terreiros e os quilombos também têm o poder de se expandir nesta fresta. Têm a força de contrafluir em prol da humanidade e vida desejada na diáspora.
Estes tempos presentes podem parecer mortais, como enfatiza Wanderson Flor do Nascimento (2020) e se apresentam como um modo de gestar as populações a partir da necropolítica. A discussão então gira em torno de qual humanidade reivindicamos, ou a partir de qual exemplo de humanidade podemos criar uma crítica à vivida até aqui perante as comunidades negras nas Américas?
Sabemos que o colonialismo, advento que trouxe a “modernidade” para o contexto histórico, político e cultural, hierarquizou existências pelas réguas do racismo, do sexismo e xenofobia. Não estamos falando de 1500, mas sim e também dos anos 2020, em que estas categorias ainda são regras de análise, julgamento e condenações para as pessoas pretas, não brancas, mulheres e jovens, pobres e marginalizados neste contexto de poder liberal.
Neste pandêmico ano de 2020, vivemos um contexto em que dirigentes das nações se armam com bélicos traços de ódio contra as expressividades afrorreligiosas na diáspora, pois, em contraposição, figura a imposição de um deus único, na figura de homem e branco, e que fortalece o jogo do poder, dando manutenção ao sistema e ajudando a justificar a escassez entre os muitos e a sobra entre poucos. Toda essa metalinguagem lançada aqui bipolariza o jogo de força de nós e eles, sendo eles – os inimigos da maioria racializada, feminina e pobre – cada vez mais fortes nesta guerra.
E com que armas lutamos?
A cada dia, quanto mais fortalecemos a ancestralidade, fortalecemos nossos valores conectados com a vida imaterial. Assim, podemos nos colocar de outra forma para lutar e persistir neste jogo tão desigual. Mais do que isso, estou convencida que nossos antepassados contavam com isso justamente quando se conscientizavam que suas vidas eram curtas e não tinham a importância relacionada com os seus valores sobre ela.
Sim, escrevo para afirmar que sempre resistimos e sempre tivemos consciência de nossa condição de subalternidade forçada. E que na intenção de vida, reagimos de várias formas possíveis às nossas condições. Muitos, muitas, viveram pouco, mas ajudaram no processo de não esquecimento do que é ser negro-africano para seus descendentes.
A morte violenta para a população negra, desde os tempos de travessias atlânticas foi banalizada. Esses crimes cotidianos não são de hoje, não começaram a acontecer após a morte de George Floyd10 (EUA, maio, 2020) e a banalização de nossas mortes é um efeito altamente nocivo do racismo histórico.
Mesmo assim, para o paradigma de vida do povo de terreiro, morrer não é um problema ou uma punição, como diz Tata Nkosi Nambá – Wanderson Flor do Nascimento:
Para os povos de terreiro, morrer não é um problema, nem é encarado como evento punitivo. Para entender isso, é importante saber que iku, o modo como a palavra morte é entendida em iorubá – língua de um dos povos que compõem os terreiros de candomblé –, é, antes de qualquer coisa, um orixá, isto é, uma divindade. Aquela divindade encarregada de desvencilhar o corpo das pessoas que habitam uma comunidade do restante daquilo que as faz serem pessoas, para que elas possam seguir na comunidade como ancestrais. Iku é, portanto, a morte e também a divindade que a nos toca, retira-nos parte daquilo que nos faz sermos pessoas vivas: nossa ligação com o corpo. (Nascimento, 2020:30)
O que o professor universitário e Tata de Nkisse11 está descrevendo faz parte das similaridades invariantes que tenho apontado e que somado às relações com todas as coisas de dentro de terreiro, que se organizam de forma horizontal, iku não rompe com o pertencimento à comunidade e muito menos destrói o que o corpo vivo construiu. Iku somente transforma a presença e pertença em mortos-viventes (Nascimento, 2020).
Por isso, mortes naturais, mortes de idosos, mortes pelo toque de iku são vistos como acontecimentos aos que conseguiram cumprir com o seu projeto mítico-social. Este que, como diz mitologicamente, foi desenhado no processo de nascimento de cada pessoa, neste momento de individualidade em que somos submetidos antes de começarmos a fazer parte de uma comunidade, nos tornandonos coletivos.
Por outro lado, as mortes dentro de um contexto necropolítico, em que são promovidas pela violência de estado e da escassez de políticas públicas, são mortes resultantes de uma vida sofrida e não de uma vida vivida como descrevi acima. Assim, estas mortes, mesmo que banalizadas, são eventos que nos tiram bruscamente de nossa comunidade ao invés de nos manter, mesmo mortos, nelas.
A ikupolítica, que nos propõe o filósofo Wanderson Flor do Nascimento – Tata Nkosi Nambá, é a promoção da vida vivida e impedir que as pessoas sejam mortas violentamente. Portanto, é uma promoção de permanência da vida negro-africana como negro-africana, seja onde for. Inclusive, retomar conhecimentos como da presença de iku nas comunidades amefricanas, é retomar a festividade realizada com a morte dos que cumpriram com o seu projeto mítico-social realizados em África e se desprender dos rituais coloniais que carregam de tristeza e fim de sentido da vida para aqueles que são chave para o processo de identidade negra – as/os mais velhas/as.
O filósofo, professor e homem de terreiro, Wanderson Flor do Nascimento, completa seu artigo promovendo uma provocação:
Promover uma ikupolítica que seja um modo de resistência à necropolítica. Tarefa para realizarmos no coletivo, tanto como viver e buscar reconstruir um mundo comunitário, onde se possa viver e morrer para sermos raízes. (Nascimento, 2020:31)
Obviamente, como diria Lélia Gonzalez, somente a negadinha pode promover a ikupolítica. A negadinha confluída com sua ancestralidade, vinda de coletivos gerados e gestados por mulheres negras, complementando a presença múltipla de idosos, jovens homens, crianças e pessoas brancas inclusive – a exemplo do que se encontra como narrativa sobre o quilombo dos Palmares. O que parece ser uma resposta às provocações dadas por Wanderson Flor do Nascimento, é o que Katiúscia Ribeiro responde dizendo:
Rever a história desses territórios (terreiros, famílias de axé e quilombos) e seu formato de organização é compreender que as mulheres negras tiveram e têm papel fundamental na continuidade da vida e estabeleceram relações de equilíbrio para o respeito a outras formas de conceber o sagrado diante das bárbaras opressões e do terrorismo que sofrem ainda hoje essas comunidades. (Ribeiro, 2020:40)
Por fim, a presença forte das mulheres contribui inegavelmente para a busca de igualdade de direitos, pela ação solidária, pela visão sobre a vida e sustentabilidade das comunidades e não dos indivíduos, como reza as concepções primeiras e filosóficas de nossa percepção, que é cósmica, de ser e estar no mundo em igualdade com todas as outras coisas.
Assim, o gestar e gerar vidas parece o grande desafio em contraponto às violências seculares do Estado e dos efeitos do racismo e do sexismo que mulheres amefricanas sofrem em seus corpos e nos corpos comunitários de seus entes. E a arma mais potente sempre foi e será a luta pelo bem viver, num paradigma centrado na coletividade e na complementariedade, que se contrapõe ao sistema opressor sem ser violento, entendendo a diferença sem ser complacente e a generosidade sem ser caridoso. É o entendimento de ser pelos outros, sendo os outros por um – ser Ubuntu. Uma proposta comunitária, social e política contrapondo a morte e violência como resto colonial.
As mulheres negras que vivem este embalo transatlântico têm a força transcendental de mobilizar, de continuamente construir e estabelecer um novo mundo de possibilidades de vivências. A matripotência está em jogo.
Referências
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2. Grifo da autora.
3. Primeiramente uso o termo para fazer justamente esta ressalva que lembrando que esta condição de escravo é reformulada se aplicada para a colônia nas Américas, onde se organiza toda uma construção teológica-política para que seja justificada e promovida como política de Estado e naturalizada como cultura colonial – a desapropriação de humanidade negra.
4. Aqui insiro o termo escravizada para demarcar linguisticamente a narrativa antirracista, que defende que esta é uma condição dada à população negra e não uma localização de sujeito.
5. Militante feminista negra histórica do estado do Pará e mobilizadora inicial da Marcha das Mulheres Negras, ocorrida em Brasília/DF em novembro de 2015.
6. Este trecho foi retirado de postagem do Facebook Coletivo Casa Escola no link https://www.facebook.com/532872260235838/posts/1084754288380963/ Acesso no dia 19/09/2020.
7. Grifos da autora.
8. Aspas da autora da citação.
9. Palavra da língua iorubá: (Ìyálòdè) é um termo honorífico dado aos orixás femininos nas casas de candomblé, mas que na tese representa uma metáfora para as lideranças femininas negras – uma realização concreta deste feminino.
10. George Floyd, um afroamericano que foi assassinado em 25 de maio de 2020, por um policial branco, chamado Derek Chauvin, de Minneapolis, que ajoelhou-se no pescoço dele durante oito minutos e quarenta e seis segundos enquanto Floyd estava deitado de bruços na estrada. Após a morte dele houve diversos protestos nos EUA, paralisações e o fortalecimento do movimento Vidas Negras Importam. Fonte: Wikipedia, acessado em 22 de setembro de 2020.
11. Tata de Nkisse é um alto cargo hierárquico nos terreiros de candomblé banto, é o cuidador das pessoas iniciadas.