Читать книгу Rainha sem reino (Estudo historico do seculo XV) - Alberto Pimentel - Страница 4
I
SEGREDOS DA ALCOVA...
ОглавлениеA infanta de Portugal, D. Joanna, filha de el-rei D. Duarte e da rainha D. Leonor d’Aragão, nasceu posthuma, em março de 1439. Duas grandes fatalidades pareceram cobrir com a sua aza negra o berço da infantasinha portugueza: o lucto pela morte de seu pae, esse illustrado e infeliz rei para quem a vida fôra pouco menos de um martyrio ininterrupto, e a peste que então grassava em Lisboa, obrigando a côrte da rainha viuva a retirar-se para Almada, onde a infanta nascera na quinta de Monte Olivete.
Menos feliz do que sua irmã D. Philippa, que n’esse mesmo anno morrera menina, tocada da peste, D. Joanna foi desabrochando as graças da sua infancia no meio de uma côrte melancholica, perturbada pelas luctas politicas da regencia, entregue ao cuidado da sua aia Maria Nogueira, e, mais tarde, confiada á companhia da sua camareira-mór D. Isabel de Menezes, mulher de Ruy de Mello, alcaide-mór de Elvas.
Menina e moça, a infanta, extremamente bella, fazia lembrar uma flor que vegeta á beira de um tumulo, porque essa côrte viuva, onde a triste reina não tinha uma hora de serenidade de espirito, não era, de feito, mais do que o tumulo de todas as alegrias de familia, porque não as teve a de D. Duarte, nem a de seu filho Affonso V.
Chegando aos dezesete annos de edade, fôra D. Joanna pedida em casamento por seu primo Henrique iv, de Castella, que tinha nascido a 5 de janeiro de 1425, e fôra jurado principe das Asturias nas côrtes geraes de Valhadolid com festas publicas.
O bispo de Cuenca, que o baptizara, prégou sobre este thema: Puer natus est nobis. Um menino nos nasceu. Mas apesar de nascer entre jubilos o menino, que no throno de Castella devia succeder a seu pae D. João II, as côrtes preoccuparam-se logo de resolver uma questão importantissima. Fôra o caso, que D. João II havia casado com a infanta D. Maria, sua prima carnal, filha de Fernando I, de Aragão, irmã de D. Leonor, casada com D. Duarte, de Portugal, e que este casamento intromettera nos negocios politicos de Castella os infantes de Aragão, especialmente D. João e D. Henrique, que procuravam tomar ascendente no animo do rei, seu cunhado.
D. Henrique, que era mestre de S. Tiago, e que aspirava a desposar, como desposou, D. Catharina, irmã do rei D. João, foi até ao extremo de assaltar o paço, e de querer aprisionar o rei. O infante D. Henrique entrara preso na fortaleza de Móra, e D. João II representou ao rei de Aragão, Affonso V, para que lhe entregasse os cavalleiros que tomaram partido por D. Henrique. Mediaram negociações, e o rei de Aragão resolveu finalmente invadir o reino de Castella.
Fôra pois a noticia d’esta invasão o assumpto que preoccupara a attenção das côrtes. Se o rei de Aragão se obstinasse em penetrar em Castella, o que se havia de fazer? Resistir-lhe, decidiram as côrtes ao cabo de longos debates.
Vagara entretanto o throno de Navarra, a que o infante aragonez, D. João, subira pelo seu casamento com a infanta D. Branca. Este incidente deu uma nova face ás pendencias de D. João de Castella com D. Affonso de Aragão. O infante D. Henrique reconquistara a liberdade, para continuar a lucta, e o rei de Aragão dissolveu o exercito com que se havia preparado para combater o adversario.
Em 1425 nascera, como dissemos, da alliança de D. João II com sua prima D. Maria, um infante, que recebeu o nome de Henrique. Era o quarto do nome que devia succeder na coroa de Castella.
A rainha D. Maria morreu envenenada, em Villecastin, a 15 de março de 1455. Pouco antes havia tambem fallecido em Toledo, crê-se que por effeito de veneno, sua irmã a rainha D. Leonor, viuva de D. Duarte, de Portugal. A morte d’estas duas princezas filia-se no apoio que poderiam querer dar ou receber do infante D. Henrique, seu irmão. Não faltou todavia em Portugal quem indiciasse o infante portuguez, D. Pedro, como cumplice, senão auctor, da morte de sua cunhada D. Leonor de Aragão, para evitar novos embaraços politicos á regencia, durante a menoridade de Affonso V. Esta suspeita, lançada sobre o caracter do infante D. Pedro, não conseguiu maculal-o perante a historia, porque são os proprios chronistas hespanhoes, entre elles Flores, que apontam o condestavel castelhano, D. Alvaro de Luna, como promotor do envenenamento de ambas as princezas. O infante D. Pedro havia até annuido a que D. Leonor voltasse para Portugal, mas a negociação mallograra-se pelo subito fallecimento da rainha em Castella.
Pelo que respeitava a esta senhora, receava D. Alvaro que influisse para que seu irmão D. Henrique voltasse a Toledo, d’onde fôra expulso, porque servindo a causa de seu irmão julgaria a rainha de Portugal favorecer a sua propria causa contra o regente D. Pedro.[1]
Quanto á rainha de Castella, D. Maria, pensou o condestavel D. Alvaro em desembaraçar-se da sua influencia por um meio violento, aliás muito vulgar então na côrte castelhana: o veneno.
«Uma e outra, diz o padre Flores, morreram de veneno, segundo a promptidão e effeitos da morte; pois que D. Leonor morreu de repente, depois de tomar um remedio caseiro; D. Maria não sentiu maior enfermidade que uma dor de cabeça, e ao quarto dia morreu. Os cadaveres de ambas cobriram-se egualmente de vergões, e portanto se attribuiu a morte a veneno. De mais a mais, vê-se do processo instaurado contra D. Alvaro de Luna, que influira para que fosse ministrada peçonha ás duas rainhas.»
O plano de D. Alvaro não falhara, porque logo depois da morte da rainha feria-se a 29 de maio uma batalha junto a Olmedo. O rei venceu. D. Henrique morreu, em Calatayud, do ferimento que recebera durante a batalha, e D. Alvaro de Luna conseguira ser investido no mestrado de S. Tiago, que o infante tivera.
Fôra o condestavel D. Alvaro que negociara o segundo casamento de D. João ii, de Castella, com a infanta D. Isabel, filha do infante D. João de Portugal e neta de D. João I. D’este segundo casamento nasceram a infanta D. Isabel e o infante D. Affonso, que vieram a representar na politica de Castella um papel importante, principalmente Isabel, que sobreviveu ao irmão, e que pelo seu casamento com Fernando de Aragão preparou a unidade hespanhola, finalmente realizada por Carlos V.
Por agora, reportemo-nos ao nascimento de Henrique IV, successor do throno de Castella.
O menino tinha nascido, mas não nascera com elle a tranquillidade da côrte de D. João II. Discussões de toda a ordem a agitavam. De mais a mais, o condestavel D. Alvaro de Luna, valido do rei, tinha visto levantarem-se contra elle todos quantos beneficiara, e a tal ponto o combatiam, que o rei se viu obrigado a pactuar em Castronunho, acceitando a imposição do desterro temporario de D. Alvaro.
Mas não teve forças D. João II para romper com o valido. Saltou por cima da concordata de Castronunho. Reagiram os confederados, e uma nova reunião foi aprazada para Valhadolid. O principe das Asturias assistiu, e concordou com os demais em que, por pedido do rei, se désse salvo-conducto a D. Alvaro de Luna; mas, no dia seguinte, o principe voltou-se para a politica dos confederados, impondo por sua vez condições ao rei.
Um tal procedimento causou grande escandalo na côrte. Puer natus est nobis. D. João II não podia duvidar de que tinha um filho, e por tal signal que lhe ia dando muito que fazer. É verdade que parecia inspirar-se nas suggestões de um mau conselheiro; nem tudo era obra propriamente sua. Dominava-o um donzel, de nome João Pacheco, seu valido, filho de Affonso Telles Giron, senhor de Belmonte.
Fôra o proprio condestavel D. Alvaro quem puzera este desagradecido rapaz, seu pagem, ao lado do principe, e é curiosa a circumstancia de que o condestavel dominava tanto o rei quanto o Pacheco dominava o principe.
Mas o feitiço voltara-se contra o feiticeiro, e Pacheco, feito marquez de Vilhena por D. João II, parecia agora aconselhar o principe a conspirar contra a politica do rei, que era a politica do condestavel. O principe das Asturias unira-se, pois, aos inimigos de D. Alvaro de Luna, que, tendo sido valido, veio a acabar no cadafalso, como quasi todos os validos em Castella.
O mesmo rei, que o defendera, entregou-o aos seus inimigos e, depois de o haver atraiçoado, mandou-o chorar pelos poetas da côrte. Um dos que choraram por conta do rei foi João de Mena.
D. João II pensou em arrancar o filho á influencia de Pacheco. Para isso lembrou-se de um meio: casal-o. Casal-o de facto, entende-se, porque D. Henrique já estava desposado com D. Branca de Navarra, como fôra estipulado no tratado de paz feito entre os reis de Aragão, Navarra e Castella.
Fez-se o que o rei pensara. D. Branca viera para Valhadolid juntar-se com o seu noivo. Realizaram-se festas esplendidas; houve saraus, banquetes, cannas, torneios, montarias e toiros. Dir-se-ia que o reino estava nadando em felicidade e paz. Mas, apesar das festas, o casamento de D. Henrique com essa infeliz princeza, que devia ser esposa mallograda, fôra tristemente agoirado. Os torneios e as festas deixaram uma lugubre recordação, ensanguentada pela morte e pelos ferimentos de alguns cavalleiros. As pontas das lanças, com que lidaram, eram de ferro acerado, de modo que a lide sahiu a valer.
Do casamento do principe das Asturias com D. Branca, de Navarra, não houve filhos. O principe dava-se habitualmente a outro genero de prazeres, segundo o testemunho de Mariana, e assim se explica a grande privança em que vivera com João Pacheco.
Quatorze annos já iam corridos sem que D. Branca désse successão. A voz publica attribuia a culpa d’esta esterilidade a impotencia do principe, e aos maus habitos adquiridos. Dizia-se geralmente que a pobre princeza estava como nascera. Mas, no processo do divorcio, o fundamento official é a impotencia relativa dos dois consortes. Questão de bruxedos, segundo as idéas da epocha, mas não, por certo, segundo as idéas de Pacheco, que outras razões teria.
Posta a questão do divorcio no fôro ecclesiastico, pronunciou sentença de nullidade Luiz da Cunha, que governava a egreja de Segovia. O processo subiu por appellação a Roma, e o papa Nicolau V delegou seus poderes em Affonso Corrilho, arcebispo de Toledo, que confirmou a sentença.
D. Branca de Navarra foi, pois, despedida. Sahia de Castella como entrara: sempre noiva. Atraz d’ella, sobre a cauda roçagante do seu véo branco, arrastavam-se epigrammas grosseiros, satiras mordazes. Diz Zurita que de Italia lhe mandavam os embaixadores aragonezes remedios para combater a esterilidade, já depois de repudiada, como se foram para cural-a de uma febre quartã! E Castella, vendo moribundo o seu rei, tinha de acceitar um principe devasso e impotente, que lhe succedia.
Em 1453 morria D. João II, e o principe descasado empunhava as redeas do governo. A hereditariedade punha a coroa na cabeça de um mau filho e de um mau esposo, que de mais a mais se affirmara poltrão desde os primeiros tempos do seu reinado.
Propoz-se D. Henrique renovar a guerra contra os moiros de Granada. Preparou um exercito formidavel, fez-se rodear de uma guarda distincta composta de tres mil e seiscentas lanças, a flor da nobreza de Castella; porem ao approximar-se da vega de Granada deu ordem para que se evitasse todo o encontro com o inimigo. O exercito ficou descontentissimo, chegou mesmo a lavrar entre elle o pensamento de se apoderar da pessoa do rei, mas um filho do marquez de Santilhana avisou da conspiração Henrique IV, que se retirou apressadamente para Cordova, e d’ahi para Madrid.
Henrique IV gostava da guerra... platonicamente, como das mulheres. Lisonjeava-o ver-se commandando um poderoso exercito no meio da floresta scintillante das lanças da sua guarda, mas a respeito de dar batalha, nada! Amava muito a vida para arriscal-a; apenas, como hypocrita que tambem era, dizia que por amar a vida dos outros os não queria sacrificar.
Os invernos passava-os na côrte, ou nas cercanias de Madrid em festas venatorias. A caça era o seu fraco e o seu forte. Quando a primavera chegava, montava a cavallo, cingia a espada impolluta, e ia fazer um passeio de recreio, com o seu exercito, até á vega de Granada. As vezes, por distracção, ia talando e incendiando os campos na passagem.
A veiga de Granada era então muito falada em trovas e praticas. No Cancioneiro, de Rezende, o poeta Nuno da Cunha, enfadado de tanto ouvir falar na veiga de Granada, diz a Henrique de Almeida, que regressava de Castella:
Da Veiga lá de Granada
e das estejas da guerra
vos nam ey já de ouvir nada.
Um anno, alguns jovens cavalleiros entraram em combate por sua conta e risco. No recontro, ficou morto Garcilaso de la Vega. O rei agastou-se, e então teve uns assomos ridiculos de traga-moiros: que incendiassem, que devastassem tudo. O emir Aben Ismail viu-se forçado a pedir treguas, mas a respeito de dar batalha campal, nada; Henrique IV continuava a amar platonicamente a guerra... como as mulheres.
Todas as phantasias poderia ter um rei impotente, menos a de tornar a casar. Pois teve-a Henrique IV, tão extravagante era a sua cabeça. E lançou as vistas para a infanta D. Joanna, de Portugal, sua prima, princeza formosissima, a cujos dotes de corpo e de espirito todos os historiadores castelhanos rendem encomiastica homenagem.
Mas Henrique IV tinha o seu pensamento. Segundo Lafuente, talvez quizesse desmentir a fama de impotente. Agora o que se não chega a perceber é o pensamento a que cedeu Affonso V, dando a mão da princeza ao primo de Castella, que tinha como marido os peores precedentes d’este mundo.
É verdade que as condições do casamento eram vantajosas para Portugal, porque Henrique IV contentava-se apenas com a pessoa da princeza, diz Sousa na Historia genealogica. Em vez de pedir, offerecia como arrhas vinte mil florins de oiro do cunho de Aragão, sendo Ciudad-Real a hypotheca proposta e acceita; e mais as rendas da villa de Olmedo, para ajuda da despesa da casa da infanta, e, para o mesmo fim, a annuidade de milhão e meio de maravedis de moeda corrente.
Affonso V não deu dote á irmã, a qual, porém, foi grandemente corrigida da sua pessoa; custou tudo, até ser entregue a el-rei de Castella, trinta mil dobras.[2]
Nas capitulações, que se fizeram em Lisboa a 22 de janeiro de 1455, presentes, de um e outro lado, Affonso V e o capellão-mór de Henrique IV, foi estipulado que a infanta poderia fazer-se acompanhar de doze damas portuguezas, uma dona, uma camareira, e todas as mais pessoas que quizesse, obrigando-se o rei de Castella a remuneral-as conforme a sua jerarchia.
Havia-se ajustado nas capitulações, que a infanta seria entregue na fronteira n’um periodo de tempo não superior a oitenta e um dias depois dos desposorios.
Cumpriu-se o contracto, e a infanta partiu, sendo acompanhada pela condessa de Athouguia, D. Guiomar, e pelo conde D. Martinho, seu filho.
Em Lisboa fizeram-se festas, segundo diz Pina, sem comtudo as especificar, e, quando a nova rainha de Castella passava pela Landeira, em direcção a Elvas, realizaram-se ahi justas em sua honra.
Em Badajoz era D. Joanna esperada com luzido sequito pelo duque de Medinacidonia. D’alli seguiram para Cordova, onde o rei estava, e onde os noivos receberam a benção nupcial (maio de 1455).
De Cordova passaram a Sevilha, e ahi houve cannas, justas, toiros, e um torneio de cincoenta por cincoenta, de que foram chefes o duque de Medinacidonia e o marquez de Vilhena.
As festas da côrte, a que Henrique IV se abandonava n’um sybaritismo insaciavel de testa coroada, redobraram de movimento e esplendor. Ora em Madrid, ora em Segovia, sitios predilectos d’este bom rei, tão madraço como os ultimos da raça merovingia, Henrique IV aturdia a noiva com festas sumptuosas porventura no empenho de lhe fazer esquecer as desillusões da alcova real.
A pobre princeza cahiu de chofre n’este mundo de tentações e perigos que ella desconhecia, que não tinha sido o da sua educação. O luxo e a galanteria ostentavam-se em requintes de fascinação, estonteavam como filtros allucinantes todas as cabeças, incluindo as mitradas.
O rei era o primeiro a dar o exemplo de dissipação.
De Henrique III, conta o nosso padre Manuel Bernardes, na Nova floresta, que, vindo esfomeado da caça, não tivera que comer certo dia. Disse-lhe o comprador que já não havia fornecedores que quizessem continuar a fiar para a real senhoria. O rei despiu o gabão e mandou-o empenhar por um pouco de carneiro. Os criados murmuraram do caso, extranhando que o rei tivesse fome e os fidalgos se banqueteassem lautamente, como n’essa mesma noite estava acontecendo no palacio do arcebispo de Toledo.
Henrique III, como isto ouvisse, sahiu disfarçado e entrou occultamente no paço archiepiscopal, ao tempo que os grandes da côrte conversavam jactanciosamente sobre as rendas da corôa, que cada um lograva. O rei recolheu-se a palacio, e mandou postar n’um dos pateos interiores um troço de seiscentos homens armados.
Logo que luziu a manhã, expediu recado aos grandes senhores para que sem demora lhe viessem falar, dizendo-se doente, e desejoso de fazer testamento. Os fidalgos acudiram em chusma, e foram isolados n’uma sala onde longo tempo esperaram.
Finalmente, appareceu o rei, de aspecto terrivel, e espada em punho; e, sem mais tir-te nem guar-te, perguntou a cada um de per si quantos reis de Castella conheciam. Uns disseram que tres, outros que quatro, e ainda outros que cinco. O rei fingiu-se admirado. «Sendo eu mais moço que todos vós, replicou elle, conheço mais de vinte.» Os fidalgos responderam que não entendiam sua alteza. Então Henrique III explicou, que todos elles eram reis, porque se banqueteavam todas as noites, ao passo que elle, se quizera comer carneiro, tivera de empenhar o gabão. E acabou gritando: «Olá, gente da minha guarda!»
Acudiram ás portas os soldados. Appareceu um algoz com o cepo, cutello e cordas, prompto a funccionar.
«Então, diz Bernardes, o arcebispo se lhe lançou aos pés, pedindo, em nome de todos, perdão, e as vidas de mercê; e que no tocante ás fazendas, cortasse por onde lhe parecesse.»
O certo é que o rei perdoou. Mas as contas ficaram justas por então, e o rei poude rehaver todos os castellos que, durante a sua menoridade, os tutores haviam alheado. E alem dos castellos, cento e cincoenta contos de maravedis.
Henrique IV não era homem que tivesse resolução para imitar este exemplo do seu homonymo. Em vez de tirar aos fidalgos para dar a si, tirava a si para dar aos fidalgos. Por isso Garcia de Rezende, diz na Miscellanea:
Mui poderoso e servido
El-rei Dom Henrique era,
Mui gran rico, mui querido,
Fôra mui obedecido,
Se governar se soubera.
Mas vimos-lhe tanto dar
E tanto deixar tomar
Os grandes toda Castella,
Que elles eram os reis d’ella,
Elle sem ter que reinar.
Vem a ponto citar o caso de outro arcebispo que, á semelhança do de Toledo na côrte de Henrique III, pompeava magnificencias na côrte de Henrique IV. Referimo-nos ao de Sevilha, D. Affonso da Fonseca, que uma noite, depois de ceia, fez servir á mesa duas bandejas coguladas de anneis de oiro, cravejados de pedras preciosas, para que a rainha e as suas damas tomassem os que lhe aprouvessem.
D. Joanna sentiu porventura a febre do prazer invadir-lhe o espirito n’uma perfida embriaguez, que principiou por aturdil-a, e que devia necessariamente acabar por perdel-a, tanto mais que nenhum laço intimo, d’estes que estreitam os affectos e criam raizes, a prendia a seu esposo.
Henrique IV, embriagado tambem, esquecia-se de que era casado, e de que a natureza lhe negara qualidades que o recommendassem aos olhos das mulheres. Fingia ser o que não era, e exaggerava o fingimento, porque galanteava com escandalo uma das damas da rainha, D. Guiomar de Castro, filha bastarda de D. Alvaro de Castro, conde de Monsanto, portugueza formosissima, que viera a casar accommodaticiamente com o conde de Tervinho, primeiro duque de Nájara.[3]
Julgava-se depreciado o rei por não ser tão completo como qualquer dos seus vassallos, e mascarava-se de Tenorio, prophetizava Byron. Dava-se a ostentação de uma amante como os velhos lords inglezes, exhaustos e carunchosos, que vivem de se illudir a si proprios com as mulheres. Antes d’esta D. Guiomar, já Henrique IV tivera por manceba uma Catharina de Sandoval, que acabara por fazer abbadessa de um mosteiro de monjas, em Toledo, sob color de que necessitavam ser reformadas.
Boa disciplina podia impor ás monjas a barregã do rei!
Mas Henrique IV não podia ter confiança nas mulheres, pela simples razão de que ellas não podiam confiar n’elle. Catharina de Sandoval amava do coração um homem, que não o rei. Chamava-se Affonso de Cordova. O rei, como não pudesse competir com o seu rival, mandou-lhe cortar a cabeça em Medina del Campo, e resolveu a questão.
Agora voltara-se para a bella Guiomar, tão platonicamente, por certo, como em tempo se voltara para a vega de Granada.
A rainha via-se enleada talvez n’uma duvida atroz. Quem teria razão? Seria Branca de Navarra, repudiada e virgem, ou D. Guiomar de Castro, que parecia inutilizar o rei para os seus deveres de marido?
A pobre rainha decidiu-se por esta ultima hypothese, e um dia, não podendo mais comsigo, segurou pelos cabellos a dama, e castigou-a por sua propria mão. O escandalo estrondeou, dividiu-se a côrte em partidos, um pela rainha, outro pela manceba. O arcebispo de Sevilha, talvez mal succedido junto da rainha, apesar da galanteria dos anneis, pronunciou-se, por vingar-se, a favor de D. Guiomar. E o rei, apagando na alma de sua mulher a ultima noção do decoro conjugal, levou a manceba para duas leguas da côrte, poz-lhe casa sumptuosa, e ia visital-a quando lhe aprazia chancear-se de prendas que não tinha.
Com este impulso mais, a rainha resvalara. Pelo menos a opinião publica boquejava desconfianças a respeito de D. Beltrão de Lacueva, hidalgo de los mas generosos de Ubeda, y uno de los mas apuestos y gallardos cabaleros de la córte, que comenzaba á gozar del favor del rey, y de paje de lanza habia ascendido á moyordomo mayor, diz Lafuente.
Tal foi o gentil homem que a rainha, no pendor do seu abandono e no estonteamento de uma côrte perigosa, encontrou no momento de resvalar.