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II
NA CÔRTE DE HENRIQUE IV

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Estava-se então em pleno cyclo cavalheiresco. O valor dava as mãos á poesia, na côrte de Castella. Muitos cavalleiros eram trovadores; não ser nenhuma d’estas coisas, importava o mesmo que viver e morrer anonymo. A magnificencia completava, como sabemos, as seducções da côrte, em que D. Joanna, de Portugal, era duas vezes rainha, pela formosura e pelo casamento.

Os passos de armas eram frequentes e notaveis. Propunham-se fazel-os os cavalleiros que queriam dar prova publica de seu brio e destreza, em honra de qualquer dama. Marcado o logar onde a lide devia realizar-se, o cavalleiro reptava solemnemente quantos por alli passassem.

O passo de armas mais caracteristico d’aquelle tempo foi o de Suero de Quinhones (1434).

Uma noite, estando D. João II em Medina del Campo, folgando com a côrte em sarau dançante, apresentou-se-lhe o nobre cavalleiro Suero de Quinhones, acompanhado de mais nove gentis-homens, e pediu a el-rei auctorização para, em honra da sua dama, fazer um passo de armas quinze dias antes e quinze dias depois da festa de S. Tiago, propondo-se os dez quebrar trezentas lanças de ferro de Milão com todos os cavalleiros, nacionaes e extrangeiros, que por alli passassem á ida ou á volta da festa do grande apostolo. Todas as damas, que não fossem acompanhadas por gentilhomem disposto a combater, perderiam a luva da mão direita.

Lafuente traz a descripção minuciosa d’este celebre passo, do apparato dos cavalleiros, do campo da lide, e dos combates que se travaram. Nem menos de 68 aventureiros justaram com os dez mantenedores. Fizeram-se setecentas e vinte e sete carreiras; mas faltou o tempo para quebrar todas as trezentas lanças. Ficou a coisa reduzida a 166, e ninguem dirá que foi pouco.

O primeiro aventureiro que acceitou o repto foi messire Arnaldo de la Floresta Bermejo, allemão, que correu seis carreiras e quebrou duas lanças.

Assim como um allemão vinha justar a Castella, muitos cavalleiros castelhanos corriam mundo assistindo a todas as grandes festas e torneios das côrtes da Europa. Tornou-se notavel como cavalleiro andante o valoroso João de Merlo, honra da cavallaria castelhana.

A recepção que em toda a parte se fazia aos cavalleiros andantes era magnifica.

De visita á côrte de Affonso V veio em 1446 o famoso cavalleiro messire Jacques de Lalain, de Borgonha, que foi recebido com honras verdadeiramente principescas.

Os torneios eram muitas vezes cruentos. Taes foram os que mal-agoiraram as nupcias de Henrique IV com D. Branca, de Navarra. O proprio D. Alvaro de Luna, justando na acclamação de D. João II, cahiu gravemente ferido.

Isto, quanto aos paladinos. Os trovadores, os cultores da gaya sciencia, como se dizia, não eram menos numerosos que os paladinos.

O proprio D. João II versejara. Attribuem-se-lhe umas trovas que principiam assim:

Amor, yo nunca pensé

que tan poderoso eras,

que podrias tener maneras

para trastornar la fé,

hasta agora que lo sé.

A rainha D. Joanna ainda foi encontrar na côrte de Castella o celebre marquez de Santilhana, auctor da conhecida carta ao condestavel de Portugal, que póde considerar-se como uma verdadeira arte poetica d’aquelle tempo. Como se vê por essa carta, o marquez de Santilhana, D. Inigo Lopez de Mendonça, era um erudito; mas as suas composições testemunhavam que, alem de conhecer profundamente a historia de toda a gaya sciencia, era tambem um poeta.

As suas serranillas são verdadeiramente notaveis. Bastará um exemplo. Certo dia o marquez, dirigindo-se para uma das suas expedições militares, encontrou na serra uma zagala que pastorava os rebanhos de seu pae, D. Diogo de Mendonça. Encantado da sua formosura, compoz esta bucolica, em que todas as graças pastoris rescendem:

Moza tan fermosa

non vi en la frontera

como una vaquera

de la Finojosa.

...

En un verde prado

de rosas é flores

guardando ganado,

con otros pastores,

la vi tan fermosa,

que apenas creyera

que fuese vaquera

de la Finojosa.

Quando as vaqueiras formosas eram assim galanteadas em trovas, não admira que a rainha D. Joanna, não menos bella que a pastora de Finojosa, por muito que o fosse, se convertesse n’uma especie de sol em torno do qual girava todo o systema planetario da poesia castelhana, que extendeu a sua influencia até Portugal.

A côrte de Castella tornou-se um fóco de attracção, sobretudo para Portugal. Os portuguezes que de lá vinham, impunham de castelhanos, tão fascinados voltavam. Os poetas de cá motejavam-n’os porisso:

Oh! que modo que trazeis

a desdenhar portuguez!

oh que graças contareis,

e tomareys

d’elas mesmas o invés.

Jorge Manrique descreve bem todos os encantos da côrte de Castella, já sobredoirados pela saudade de um bello tempo que passou:

Las justas y los torneos,

Paramentos, bordaduras,

Y cimeras,

Fueron sino devaneos?

Qué fueron sino verduras

De las éras?

Já D. Duarte quizera obstar á emigração fidalga para Castella. Por carta dada em Obidos, em setembro de 1434, ordenou «que as pessoas que tiverem rendas n’este reina, e viverem em Castella, se passem a viver a elle; e não o fazendo, não possam levar as taes rendas para Castella, e não se lhe pagarão, e acabe.»

Mas os fidalgos portuguezes, zombando da lei, continuaram a deixar-se fascinar por Castella.

O duque de Alva compuzera um romance, Nunca fue pena mayor, e a rainha desejara ver glosados os versos d’esse romance. O commendador Roman impoz-se o encargo de glosador, por agradar á rainha:

Dizem que a vuestro oido

agradó aquel dulçor,

de la cancion del sentido,

famoso, franco, sabido

Duque d’Alva, mi señor.

Por darle gracia famosa

y favor demasiado,

alta regina gloriosa

que aveis pedido la glosa

y que nunca os han glosado.

Póde parecer extranho que todos os poetas da côrte não acudissem de tropel a acceitar o repto poetico que lhes propunha a bella rainha. Mas o commendador Roman, atravez do véo transparente da sua modestia, dá a razão do caso:

No saliendo delantero

de mil otros de consuno,

antes simple postrimero,

mas porque supe primero

la causa que otro ninguno.

Vê-se, ao contrario do que poderia presumir-se, que os poetas da corte não desaproveitavam ensejo de vibrar a lyra em honra d’essa rainha, cuja belleza, segundo a expressão do poeta commendador, não havia lingua que a descrevesse, nem mão que a pintasse.

Hoje, os commendadores não sabem dizer d’estas coisas.

É, pois, n’esta côrte cavalheiresca e poetica, alem de ostentosa, que o gentil Beltrão de Lacueva nos apparece.

Quando o duque da Bretanha enviou uma embaixada a Henrique IV, propondo-lhe alliança e amizade, quiz o rei obsequiar o embaixador com luzidas festas, que se fizeram na casa de campo del Pardo.

Quatro dias deslizaram em banquetes, torneios, justas e caçadas. Mas as festas ainda não acabaram ahi.

Ao quarto dia, quando a côrte regressava a Madrid, Beltrão de Lacueva preparou um passo de armas á Porta de Ferro, para que justassem todos quantos regressavam do Pardo.

D. Beltrão não quiz perder esta occasião de exhibir aos olhos da rainha, por entre as pompas do torneio, a sua elegancia e destreza como grande cavalleiro de gineta, notavel entre os eximios.

Não era permittido aos gentis-homens da côrte, que acompanhavam damas, passar alem sem que com D. Beltrão fizessem seis carreiras. Os que não quizessem justar deixariam, como signal da sua deshonra, o guante da mão direita.

Sobre um arco de madeira havia muitas lettras lavradas a oiro, e o cavalleiro que quebrava tres lanças, dirigia-se para o arco, e tomava a lettra inicial do nome da sua dama.

D. Beltrão com todos os outros cavalleiros luctou em honra de uma dama mysteriosa, a dos seus pensamentos, de cuja inicial fez segredo. Mas essa dama estava presente: era a rainha.

Foi-se todo o dia n’esta festa, e o bom rei Henrique IV, tão contente ficou com o passo de armas, em que o unico ferido foi elle... moralmente, que por memoria fundou n’aquelle logar o mosteiro de S. Jeronymo, acabado em 1464.

Bom homem, o rei!

A belleza da rainha, o seu papel importante entre o circulo dos poetas da côrte, o abandono, em que se achava, de todo o affecto conjugal, a corrupção do tempo e do paço, e o boquejar do mundo, especialmente o da côrte, que é o mundo que mais boqueja e moteja, crearam em torno de D. Joanna, de Portugal, uma lenda de devassidão romantica em que, por entre anachronismos frisantes, figuram a rainha e o poeta João Rodrigues del Padron.

Resaltava das composições d’este trovador uma vaga anciedade de amar e ser amado, que encontrou echo na sensibilidade vibratil da rainha.

Um dia, de uma das janellas do paço, alguma dama mysteriosa deixou cahir uma carta, quando o poeta passava.

Padron guardou-a, e leu-a. Era nada menos que o convite para uma entrevista nocturna: pelas duas horas da madrugada, o poeta devia estar á porta falsa da cava, e bater com os dedos tres pancadas; o mais absoluto segredo devia envolver esta aventura, sob pena de mallograr-se.

Padron aconselhou-se com um amigo intimo, que se promptificou a acompanhal-o, para o defender, se a sua vida corresse perigo. Padron foi, fez o signal ajustado, a porta abriu-se, e recebeu-o, no mysterio da escuridão, uma dama, cuja voz era doce como a musica. Sobre a capa d’elle se sentaram, no chão, e ahi conversaram, cingidos um ao outro, negando-se ella a quaesquer revelações, e insistindo na condição do segredo, que devia ser inviolavel.

De tres em tres dias avistar-se-iam, no mesmo sitio, dado o mesmo signal na porta da cava.

Padron confidenciou ao amigo o que se tinha passado, e um e outro, por mais tratos que déssem á imaginação, não puderam sequer suspeitar quem a dama fosse.

Á terceira noite, nova entrevista. As mesmas instancias por parte do poeta; a mesma reserva por parte da dama. Pediu-lhe elle uma madeixa de cabello, cortou-a por sua propria mão; porêm nem Padron nem o seu amigo puderam depois adivinhar de que dama da côrte fosse o cabello.

O rei andava fóra: em côrtes, diz a lenda. Mas ia regressar, e a dama, n’uma nova entrevista, annunciou ao poeta essa contrariedade, que o era realmente, porque as chaves d’aquella porta ficavam na camara do rei.

Conta a lenda que Padron, para experimentar de que jerarchia fosse a dama, lhe pedira dinheiro, emquanto lhe tardava de casa. Tem a gente o direito de suspeitar da intenção d’este pedido, pondo em duvida que Padron não recorresse ao processo ignobil de um mr. Alphonse, poeta e villão.

N’outra noite, a dama deu-lhe as joias, mas recommendou-lhe que as desmanchasse, porque eram da rainha, e podiam ser conhecidas. Padron acceitou-as, e não diz a lenda que fossem restituidas.

Entretanto, o rei chegara, e a porta da cava deixou de abrir-se. Mas o poeta insistira sempre e, finalmente, de uma vez a porta abriu-se.

Queixou-se Padron de que a dama levasse o receio de declarar-se até á desconfiança affrontosa. A dama acabou por ceder, e fez uma nova concessão. Estava proxima a festa de S. Pedro; que lhe désse elle uma joia, que por ella a distinguiria na festa. Padron tinha apenas comsigo, de que pudesse dispor, um cinto escarlate. Tirou-o, e deu-lh’o. A dama afiançou-lhe que o poria em laço no cabello.

Chegou o dia da festa. Padron e o seu amigo esperavam que a côrte se dirigisse para a sala do throno. Ambos procuravam avidamente com os olhos a dama do laço escarlate. Na cabeça da rainha o descobriu o amigo de Padron, e fez signal ao poeta. A rainha surprehendeu esse movimento, e o poeta, sem dar por isso, tão louco de alegria ficou, que nos torneios d’esse dia se avantajou a todos os cavalleiros da côrte.

Á noite, Padron bateu á porta da cava. A rainha, porque era ella a dama, recebeu-o, mas para lhe censurar asperamente a sua indiscreção, e para o ameaçar com a morte se não sahisse essa mesma noite de Castella.

Padron obedeceu, e partiu com o coração despedaçado, chorando a sua perdida felicidade, partindo só e triste, como elle proprio, segundo a lenda, o diz na trova.

... E assim iam corridos mais de seis annos de casamento esteril, quando, em 1461, uma noticia inesperada explodiu: a rainha estava gravida.

O rei Henrique delirou de contentamento, mas o paiz inteiro ria do jubilo do rei, porque estava capacitado de que o esperado herdeiro do throno era o fructo immoral dos amores adulterinos da rainha com D. Beltrão de Lacueva.

Porêm o rei continuou a delirar de jubilo, e ordenou que D. Joanna fosse conduzida a Madrid, onde elle estava, devendo fazer a jornada n’uma liteira, para que mais repoisada viesse.

João Pacheco, marquez de Vilhena, e o arcebispo de Toledo, prevenindo os conflictos politicos que deveriam derivar-se do parto da rainha, aconselharam o rei a que chamasse para a côrte, onde melhor poderiam ser educados, seus irmãos, D. Isabel, que tinha então dez annos, e D. Affonso, que apenas contava oito, mas que, segundo o tratado de paz feito entre Henrique IV e seu tio o rei de Navarra, deviam casar com D. Fernando e D. Leonor, filhos d’este monarcha.[4]

Em março de 1462, D. Joanna, de Portugal, deu á luz uma filha. O rei ordenou que se fizessem festas pomposas. Era aquelle, para elle, um presente do céo! diz Lafuente. E eu creio que fosse assim.

A princezasinha recebeu o nome de Joanna. Baptizou-a o arcebispo de Toledo, tendo por assistentes os de Calahorra, Carthagena e Osma. Foram padrinhos o embaixador de França, conde de Armagnac, e o marquez de Vilhena; madrinhas, a infanta D. Isabel, irmã do rei, já então aposentada na côrte, e a marqueza de Vilhena.

Contrastam singularmente com estes jubilos da côrte de Castella os lacrimaveis episodios do passamento da rainha Branca, de Navarra, no castello de Orthez.

O principe de Vianna, D. Carlos, devia ser, por morte de seu pae, herdeiro do throno de Navarra. O principe fallecera, transferindo á irmã, a infeliz Branca, os direitos de successão; mas D. Branca não nascera senão para soffrer. Só uma coroa lhe estava destinada: era a da virgindade perpetua.

A irmã mais nova de D. Branca, D. Leonor, tinha casado com o conde de Foix, e parece que uma das condições secretas do casamento fôra que D. Branca seria entregue ao conde, que a obrigaria a renunciar ao throno ou a fazer-se freira, succedendo portanto D. Leonor ao rei, seu pae, logo que elle morresse.

O rei de Navarra não duvidou sacrificar a filha ao apoio que, em troca, o conde de Foix lhe promettia dar contra o rei de Castella, e achando-se com a infeliz Branca em Olite convidou-a a passar com elle os Pyrenéos, sob pretexto de que projectava casal-a com o duque de Berri, irmão do rei de França.

Sabia Branca o que se passava, e recusou-se a ir, allegando ao pae, segundo a expressão de Zurita, que não queria ser homicida de si mesma. O rei arrancou então a mascara, e obrigou-a a partir á força, bem guardada por pessoas da sua confiança. Poucos dias depois, o rei de Navarra contratava definitivamente com o conde de Foix em Olite.

D. Branca foi encerrada no mosteiro de Roncesvalles, e d’ahi teve meio de protestar contra a usurpação que se lhe queria fazer, declarando que por vontade propria declinaria os seus direitos no rei de Castella, que a havia repudiado!

O protesto inquietou a côrte de Navarra, como era natural, e a mallograda rainha foi mandada transferir para S. João Pied de Port.

Comprehendeu D. Branca que não se contentavam com usurpar-lhe os direitos ao throno, mas que tambem a sua vida corria risco, e pediu a Henrique IV, ao conde de Armagnac e ao condestavel de Navarra, que por meio da força defendessem, se tanto fosse preciso, os seus direitos e a sua vida, auctorizando-os a tratarem-lhe casamento com qualquer principe.

Soube, porêm, D. Branca que o rei, seu pae, ia envial-a a S. Pelagio, no Bearn. Então, julgando-se completamente perdida, escreveu a Henrique IV, de Castella, o homem que a havia repudiado, cedendo n’elle todos os seus direitos á coroa de Navarra. Essa carta, que tem a data de 30 de abril de 1462, não póde lêr-se, segundo a expressão de um escriptor hespanhol, sem que se enterneça o coração mais duro. Lafuente, referindo-se á carta de Branca, diz que a infeliz princeza recordava a Henrique IV os antigos vinculos que os haviam unido, e os crueis transes que atravessara desde que fôra repudiada. Segundo Zurita, Branca pedia a Henrique IV que vingasse a sua morte e a do principe Carlos.

A que mãos de poltrão confiava a infeliz senhora tão nobre empresa! Vê-se que a esposa repudiada ficara conhecendo tão pouco o rei como o marido.

N’aquelle mesmo dia foi Branca, de Navarra, reconduzida ao castello de Orthez, onde permaneceu encerrada mais de dois annos, sob a vigilancia de uma dama da condessa de Foix, que acabou por envenenal-a.

Todos os chronistas hespanhoes têem phrases de maviosa compaixão para com a memoria da infeliz Branca. Citaremos apenas dois, Zurita, o chronista de Aragão, e Flores, o chronista das rainhas castelhanas. Zurita recorda que ella fôra repudiada pelo marido, perseguida pela irmã, e abhorrecida pelo pae, e que não teve mais em quem depositar a sua ultima esperança senão o homem de quem maior affronta havia recebido. Flores lembra que os ultimos suspiros d’esta desventurada princeza «foram echos no céo para os desgraçados fins dos condes de Foix, e dos seus descendentes», acabando o reino de Navarra n’aquella familia.[5]

E conclue dizendo que enterraram D. Branca na cathedral de Lescar, desde donde puede predicar á todo el mundo perpetuos desengaños.

Henrique IV, de Castella, impressionou-se pouco com a dilacerante carta da infeliz Branca, sua primeira mulher.

O céo ou Beltrão de Lacueva havia-lhe dado uma filha; bastava esta só alegria para absorver-lhe todas as attenções.

Dois mezes depois do baptizado, o rei ordenou que a infanta D. Joanna fosse, em côrtes de Madrid, proclamada princeza das Asturias e herdeira do throno.

Muitos fidalgos não quizeram jurar; entre elles, D. Luiz de Lacerda, conde de Medinaceli, a quem o rei prometteu mil vassallos para que jurasse, sem que o conde cedesse.

D. Affonso e D. Isabel, os jovens tios da infanta recem-nascida, juraram, sujeitos, como estavam, á tutela do rei.

A voz publica deu um cognome irrisorio á infanta. Chamou-lhe a Beltraneja. Este cognome recordava a sua origem adulterina: Beltraneja, a filha de Beltrão. Mas o rei Henrique nada d’isto sabia, ou queria saber. No dia dos seus annos deu a Beltrão o senhorio de Ledesma e o titulo de conde; chamou-o aos conselhos e governação do reino, e...

E estimulou-o d’este modo a atear cada vez mais, por cupidez de maiores honras e proveitos, o fogo do seu amor á rainha.

De feito, em 1463, foi declarado que D. Joanna ia novamente ser mãe. Mas um caso imprevisto mallograra essa esperança. Referindo-se á rainha, diz Lafuente:

«Tinha o costume de humedecer e amaciar o cabello com um liquido, sem duvida inflammavel, e um dia, achando-se na sua camara, um forte raio de sol que entrava por uma janella e se projectava sobre a sua cabeça, incendiou-lhe o cabello, de modo que se as damas não fossem tão diligentes em acudir-lhe, haveria corrido o perigo de carbonizar-se. Mas tanto bastou para que o susto antecipasse o parto de um feto de seis mezes, que nasceu sem vida, e que pela circumstancia de ser varão produziu no rei maior pesar. Fizeram-se sinistros agoiros sobre o caso, e não faltou quem vaticinasse desgraças para o rei e a rainha.»

Bem agoirado corria o tempo, mas era para D. Beltrão de Lacueva, que, graças á posição a que se guindara, tratou casamento com uma filha do marquez de Santilhana. D’este modo conseguia aparentar-se com a poderosa familia dos Mendonças. Estava na esteira para o méstrado de S. Tiago. Fazia sombra e receio ao marquez de Vilhena. Levantava-se n’um pedestal de oiro, e a conspiração, tão vulgar em todas as côrtes, principalmente na de Castella, principiava a minar-lhe o pedestal.

Entretanto, sobre as finas hollandas e custosas sedas, que alfaiavam o catresinho da princeza das Asturias cahia, como um enorme pingo de lama e fel, a risada sarcastica das multidões, appellidando-a de Beltraneja.

E essa alcunha havia de ficar-lhe para toda a vida, como um ridiculo cruel agrilhoado ao seu triste destino.

Rainha sem reino (Estudo historico do seculo XV)

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