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II

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No dia seguinte, Julio de Lemos, o estudante de Alcacer do Sal, passeiava a sua paixão escholastica sob as arvores do largo das Almas, quando de repente lhe apparece, de physionomia completamente transtornada, o photographo ambulante. Que se encontrava n’uma situação afflictissima, disse-lhe o retratista. Um agiota de Lisboa, a quem devia cem mil réis, sabendo que estava fazendo interesses em Setubal, cahira sobre elle de chofre, tendo chegado no comboyo da manhã, para exigir-lhe o prompto reembolso de uma parte da divida. Que elle photographo se havia esquecido realmente de satisfazer as prestações estipuladas, que a mulher e os filhos gostavam muito de bifes, e que elle gostava não só de bifes mas tambem de moscatel de Azeitão. Que não tinha dinheiro algum de que podesse dispôr, e que o agiota queria retirar-se para Lisboa no comboyo da tarde, levando algum dinheiro. Sou um homem muito desgraçado! exclamava o photographo. E acrescentava: Portugal é um paiz perdido para os artistas! São todos como eu. (Referia-se certamente á pobreza, não ao moscatel e aos bifes).

O estudante ouviu-o tendo nos labios um sorriso de extranha superioridade, com as mãos nos bolsos das calças, enfunando-as á hussard. E perguntou ao retratista:

—O senhor viu alguma vez a Cora em D. Maria II?

—Vi, sim, respondeu promptamente o photographo. E acrescentou:—Uma só vez, sabe Deus com que sacrificio! para vêr o panorama do Mississipi, que me tinham gabado muito,—por amor da arte!

—Pois bem. Lembra-se como o Cesar de Lima fechava um acto?...

O senhor já viu alguma vez a Providencia? Pois a Providencia sou eu! Parece-me que era isto.

—Exactamente. É essa a phrase, observou Julio de Lemos. Em Lisboa a Providencia é o Cesar de Lima; em Setubal, sou eu.

—O senhor!

—Eu mesmo, me adsum.

E tirou do bolso do frak todos os retratos que na vespera á noite havia podido encontrar sobre a mesa do Hotel Escoveiro, para que D. Enrique Saavedra os não visse. Mostrou-os ao photographo dizendo-lhe:

—Vê isto?

—Vejo. São os retratos da senhorita Soledad, como o photographo, no seu calão de circo, costumava chamar sempre á bella andaluza. Mas não comprehendo!

—Pois não comprehende! extranhou o estudante. Vai comprehender. Hontem á noite, estando nós a ceiar no Hotel Escoveiro e tendo os retratos de Soledad sobre a mesa, entrou inesperadamente D. Enrique Saavedra.

—Oh diabo! exclamou o photographo. E elle soube que sou eu quem os tiro?!

—Qual historia! Quando elle entrou, eu tive a idéa luminosa de apagar o candeeiro...

—Então não foi luminosa, exclamou o photographo já tranquillo, e contente de si, por ter feito um dito gracioso.

—É boa! exclamou o estudante, rindo estrepitosamente, e dando dois piparotes no estomago do photographo. Apanhou-a bem!...

—É que d’estas coisas de luz, um photographo entende sempre.

E riram de novo.

—Ora bem, continuou Julio de Lemos. Eu tive a escura idéa de apagar o candeeiro, e de procurar em cima da mesa os retratos de Soledad. Durante a viagem das minhas mãos por sobre a toalha, introduzi uma d’ellas dentro de uma chicara de café, e estive para partir uma garrafa. Mas, felizmente, pude apanhar todos os retratos. São estes.

O photographo começou a comprehender; sorria velhacamente.

—Hoje, continuou o estudante, todos os hospedes do Hotel Escoveiro irão a sua casa procurar retratos de Soledad, e o sr. venderá estes mesmos, exceptuando o meu, se quizer acceitar as condições que lhe vou propôr.

O photographo ouvia attentamente, com uma curiosidade cheia de pontos de interrogação.

—As condições são dar-me a commissão de vinte por cento em cada um d’esses retratos...

Nos labios do photographo passou rapidamente um movimento de despeito. Litteralmente traduzida, essa crispação quereria dizer: Ah! maroto, que me comeste!

Mas em voz alta:

—Vá feito.

—Espere lá,—continuou o estudante, que havia tres dias estava sem dinheiro—o meu amigo ainda não pensou na possibilidade de ir alguem a Lisboa mandar copiar qualquer d’estes retratos, de modo a poder-se reproduzir um cliché por um preço muito inferior a 1$500 réis o cartão?

—Sim... lá isso... mas a despeza do caminho de ferro?... e o incommodo?... e sobretudo... o ter que ausentar-se da senhorita Soledad, deixando o campo livre ao inimigo!

Esta ultima advertencia do photographo tinha visivelmente por fim ferir a corda sensivel do coração do estudante, que se deu pressa em responder:

—Ora o meu amigo excede na arte de não saber photographar o proprio Marcel das Scenas da vida da bohemia (o livro predilecto do estudante) que tirava retratos aos granadeiros de Pariz com a similhança garantida por um anno. A imagem das suas photographias só pode ser garantida por quinze dias, o maximo. Portanto, d’aqui a oito dias, estes retratos estarão completamente apagados, o meu amigo terá novas encommendas, e eu continuarei a receber a commissão de vinte por cento, com direito a um retrato gratuito.

O photographo transigiu, pactuou. O estudante entregou-lhe os retratos de Soledad, que n’esse mesmo dia foram vendidos aos seus admiradores—pela segunda vez.

No dia seguinte, o photographo ia, com o producto d’esta receita inesperada, fazer uma patuscada a Azeitão, levando comsigo a mulher, a sogra, e os pequenos. O agiota de Lisboa tinha sido uma fabula inventada pelo desejo com que o photographo accordára de dar um rega-bofes a toda a familia. E o estudante habilitava-se a comprar ao feitor de uma quinta de Brancannes um bello ramo de flores com que corrêra a presentear Soledad, por isso que, inopia pecuniae, se havia deixado preterir n’este genero de galanteria idyllica.

D. Estanislada estava inteiramente restabelecida. O cirurgião ajudante de caçadores 1 fôra felicissimo na prompta applicação de um copinho de genebra de Hollanda, que pôde quebrantar os impetos do peixe-espada no estomago da afflicta senhora. Es usted un doctor completo! dizia ao outro dia D. Enrique Saavedra ao cirurgião, passeiando com elle na praia, e impingindo-lhe a centessima edição da historia oral dos acontecimentos de Hespanha. E como o doutor cahisse ingenuamente em dizer que andava fazendo estudos sobre a historia da poesia revolucionaria na peninsula, D. Enrique Saavedra começou a repetir-lhe, com uma facundia verdadeiramente hespanhola, varias quadras callejeras, como elle dizia, taes como estas:

Ay qué risa, qué risa, qué risa

Que Amadeo lo he visto en camisa!

Ay salero, ay salero, ay salero,

Que á Amadeo lo he visto yo en cuero!

Si nos cumplen la palabra

Zorrilla, Rivéro y Martos,

Le pondrémes á Amadeo

El passaporte en la mano.

Entretanto, D. Estanislada, Soledad e o grupo dos admiradores da bella andaluza haviam-se encaminhado para o Passeio da praia de Troino. Era convidativo o local, e a grande serenidade do Sado punha no horisonte da paizagem uma vaga doçura inexplicavel.

O sueco sentia-se bem deante do aspecto grandioso das aguas do rio, e do mar que se avistava ao longe. Era, em toda a sua pujança, n’esse momento, um homem do norte, habituado a vêr os grandes rios e os grandes lagos, sem se arripiar de frio, graças ao habito do clima septentrional e... ao kirsch. Como Soledad parasse ao pé do lago para lhe atirar uma pedrinha, que desappareceu descrevendo á superficie da agua ondulações concentricas, o sueco disse-lhe, na sua linguagem arrevesada, que se ella visse o lago Moelar, em Stockholmo, semeado de pequenas ilhas, ficaria verdadeiramente encantada, e baixo, ao ouvido, acrescentou: Senhora poderr irr comiga, se querr casa mim.

Como fosse o sueco quem n’essa tarde parecia ter adiantado terreno, os outros iam despeitados, e alguns, n’um grupo, faziam troça e iam chasqueando das suas calças curtas, das suas grandes botas rugosas, do seu passo de pachiderme, e da sua gaucherie amorosa. O conselheiro Antunes, fallando com D. Estanislada, aconselhava-lhe que para a outra vez se abstivesse do peixe-espada, que na sua opinião era muito reimoso.

Chegados á beira do rio, Soledad sentou-se, poz os olhos na corrente plácida do Sado, e tirou da sua alma de andaluza um suspiro que mandou ao Guadalquivir. Explicou ao sueco que a cidade de Sevilha ficava á margem do Guadalquivir, um bello rio, o mais formoso de todo o mundo! exclamou ella n’uma arrojada hyperbole hespanhola. O sueco sentiu-se ferido na corda do patriotismo, e replicou: Nó! nó! E procurou justificar a negativa citando os principaes rios da Scandinavia, enumerando o Tornea, o Lulea, o Pitea e o Umea. E o estudante, troçando, acrescentou do lado com ruidoso applauso dos circumstantes, e com a rapidez de quem está declinando nomes latinos: E o Gelea, o Gouvea, o Obrea, e o Lamprea.

O sueco fez-se encarnado como uma cereja, sem perceber ao certo senão que estavam rindo d’elle, e Soledad vibrou uma gargalhada sonora como um tinido de crystaes, que se houvessem encontrado na sua garganta.

Era que o estudante de Alcacer estava verdadeiramente desesperado. N’esse mesmo dia em que havia ido comprar um bouquet a uma quinta, a cuja porta um grande cão arremettêra contra elle ladrando encolerisado, n’esse mesmo dia em que com varia fortuna tivera a vantagem de só elle offerecer flores e a contrariedade das iras do cão, via-se preterido pelo sueco.

O estudante procurou desesperadamente no seu espirito uma idéa salvadora, que pudesse restituir-lhe a importancia que visivelmente ia perdendo. Queria a todo o custo deslocar o sueco da bella posição em que se encontrava, e pretendeu despertar na alma de Soledad as tendencias devaneadoras que por vezes se caracterisavam n’uma intermittencia de romanticismo. Propoz um passeio ao oratorio de Mendoliva, um sitio poetico, na encosta da serra de S. Filippe, quasi á beira-mar. Com effeito, o espirito da bella andaluza exaltou-se promptamente. Ella não sabia o que era Mendoliva, nem qual fosse a belleza d’esse local. Mas o seu delicado instincto de mulher e de andaluza adivinhou que se tratava de uma tradição romantica, de uma lenda nacional, e abraçou o alvitre.

O estudante delirou de alegria, julgou-se victorioso.

D. Estanislada perguntou a que distancia ficaria o oratorio. Indicou-lhe a direcção o Vianninha, o rapaz de Setubal, aquelle por quem a Sequeira estava bebendo anti-hysterico todas as noites. O alferes Ruivo e o tenente Epaminondas affirmaram que o sitio era delicioso. Mas o conselheiro Antunes recordou a D. Estanislada o preceito da eschola de Salerno:

Post prandium sta, post cœnam ambula,

e aconselhou-lhe que ficasse, que elle lhe faria companhia, com muito gosto e muita honra—palavras suas—, minha senhora. D. Estanislada acceitou a advertencia—por causa do estomago e de outros orgãos.

Partiu em direcção ao oratorio de Mendoliva o alegre rancho da bella andaluza e dos seus cavalleiros servientes. O caminho, á beira-mar, é em verdade delicioso. O sol, n’uma grande explosão de luz, lançava sobre o mar uma chuva de oiro. Manchas encarnadas, de um colorido á Rubens, punham no horisonte uns tons de purpura, que davam ao sol uma magestade olympica, como as cortinas de um throno asiatico. Chegaram com effeito ao local da antiga ermida de S. Braz, onde em outro tempo um soldado portuguez se elevou em extasis de asceta, havendo trocado a espada pelo habito.

Soledad gostou muito, comprehendeu a vaga poesia que se respirava ali, e pediu ao estudante a lenda do sitio.

Pobre estudante! Viu-se entalado, sem saber como havia de tirar-se d’aquelle mau passo. Concluiu por dizer que o sitio não tinha lenda. Foi um golpe de espada de Alexandre. O alferes Ruivo e o tenente Epaminondas foram da mesma opinião: que o sitio não tinha historia. O proprietario das Alcaçovas acrescentou com uma rudeza brutal que não podia ser assim: que Mendoliva havia por força de dizer alguma coisa. O morgado de Reguengos acudiu em auxilio do patricio, pela honra do Alemtejo: que Mendoliva havia de ter uma significação qualquer. Então o jornalista Aurelio Goes, que se havia conservado calado, com um sorriso de ironia nos labios, poz-se em evidencia: disse que o chronista Ruy de Pina contava que Mendo Gomes de Seabra fôra um cavalleiro do tempo de D. João I, que, mais tarde, já depois do desastre de Tanger, se apartára do mundo ermando ali, e que, passados annos, fundára o mosteiro de Alferrara.

Julio de Lemos, desesperado, apopletico de colera, observou que o jornalista estava confundindo Mendo Gomes de Seabra com D. Nuno Alvares Pereira, que fôra quem depois de ter militado nos exercitos de D. João I resolvêra vestir o habito monastico, e que provavelmente o povo setubalense confundiu os dois individuos na mesma lenda.

Aurelio Goes despeitou-se, e perguntou ao estudante se elle já havia feito exame de historia portugueza. O Lemos respondeu insolentemente: que sim, mas que talvez a tivesse desaprendido lendo os jornaes. O jornalista perguntou se se referia ao jornal de que elle era redactor. E o Lemos, querendo nivelar-se á altura de um Cid campeador perante a bella andaluza, respondeu que não podia referir-se a outro jornal, visto que o seu redactor confundia Mendo Gomes de Seabra com D. Nuno Alvares Pereira. Aurelio Goes ainda avançou para o estudante, mas o proprietario das Alcaçovas deitou-lhe a mão ao braço, como na vespera havia deitado as mãos ás guelas do sueco.

Soledad acompanhou com os seus bellos olhos penetrantes todos os episodios d’este conflicto. Comprehendeu perfeitamente tudo o que se havia passado, e quiz dissipar a nuvem negra que subitamente se formára. Lembrou que o sitio era encantador, que convidava á poesia, e pediu ao estudante que recitasse uns versos. Julio de Lemos desculpou-se, que estava indisposto, que se não lembrava de versos nenhuns. Ella insistiu, com imperiosa meiguice. Que não, que não podia, tornou o estudante. Soledad redobrou de instancias. O estudante, com as faces rubras como papoulas e os olhos congestionados, teve que ceder e começou a recitar, com uma precipitação colerica:

As flores d’alma que se alteiam bellas,

Puras, singelas, orvalhadas, vivas,

Têm mais aromas, e são mais formosas,

Que as pobres rosas, n’um jardim captivas.

Completamente fóra de si, fez uma longa pausa, procurando visivelmente lembrar-se da segunda quadra. Depois ia continuar com igual precipitação:

Sol bemfazejo lhes aquece a chamma

e, olhando n’este momento para Aurelio Goes, viu que elle sorrira. Sem mesmo perceber que se havia enganado, e dito uma tolice, o estudante exclamou: «Oh! é de mais!» Subitamente, Soledad levantou-se e disse com uma gravidade que ninguem podia decerto esperar: Caballeros, hagan usteds favor de acompañarme.

Seguiram-n’a todos, n’um cortejo silencioso. Mas, poucos passos andados, Soledad desfechou uma gargalhada crystallina, e, voltando-se para D. Ramon Mendoza, declamou com ares mysteriosos, com uma graça verdadeiramente andaluza:

...á fé mia,

Que estoy resuelto á mataros

Y no alcanzara á libraros

La misma virgen Maria.

As gargalhadas eram estrondosas, resoantes; o estudante, tendo dado o braço ao alferes Ruivo, dizia-lhe a meia voz, cheio de colera: «O que elle não sabe é que tem de se bater comigo! Por força!»

Sahiram-lhes ao encontro D. Estanislada e o conselheiro Antunes, aos quaes se haviam juntado D. Enrique Saavedra, e o cirurgião ajudante de caçadores 1.

—É bonito? perguntou D. Estanislada á filha, em hespanhol, ainda a certa distancia.

—Formosissimo! respondeu Soledad.

—Sabes tu! disse D. Estanislada, temos aqui um insigne cosinheiro, e indicou o conselheiro Antunes. Iremos ámanhã comer uma grande caldeirada... aonde?... como se chama aquillo? e apontou para a outra margem do rio.

—Troia, respondeu o conselheiro com a gravidade de um Páris de cincoenta annos.

—Excellente! commentou o morgado de Reguengos. As laranjas, essas, ficam por minha conta.

—Havemos de bater-nos, por força, tornou o estudante a dizer a meia voz ao alferes de caçadores.



As Netas do Padre Eterno

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