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III

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N’essa noite, foi no Club Setubalense que se improvisou a tertulia. Soledad e mais tres senhoras hespanholas constituiam todo o feminino da sala; mas por muitos que fossem os satellites, e por mais brilhante que palpitasse o lume de seus olhos castelhanos, Soledad, o bello astro da praia, a todos offuscaria com a graça picante dos seus sorrisos, dos seus olhares, e do seu desembaraço andaluz. Não havia, portanto, necessidade de mais senhoras ali. Em estando Soledad, ella só bastava a encher de torrentes de vida a sala e os corações. A irradiação da sua belleza era como a da lua, nas formosas noites de verão.

No elemento masculino notava-se, porém, uma certa agitação n’essa noite. Os admiradores de Soledad entravam e sahiam frequentemente da sala, cheios de uma certa preoccupação mysteriosa. O proprio conselheiro Antunes desapparecêra. Algumas pessoas envenenavam este facto, fazendo notar que Dona Estanislada não estava presente. Mas bem podia ser que o conselheiro Antunes, entrando nas suas funcções de cosinheiro, corresse a cidade em todas as direcções, procedendo aos preparativos indispensaveis para a caldeirada do dia seguinte. Elle comprehendia perfeitamente que todos os conselheiros portuguezes ficariam compromettidos na sua respeitabilidade de classe, se o pic-nic disparasse n’um enorme fiasco culinario. De mais a mais, a sua reputação individual de Vatel amador, affirmada por muitas vezes nas patuscadas aristocraticas de Santarem, encontraria nas areias de Troia um verdadeiro Waterloo, uma deploravel ruina.

Isto pelo que respeita ao conselheiro. Quanto aos outros, a causa da sua preoccupação era diversa. Sentia-se effectivamente que andava no ar um acontecimento extranho, extraordinario, alarmante. N’um gabinete interior conferenciava-se em tom discreto; entravam uns, sahiam outros, e o marcador do bilhar, que espreitava cheio de curiosidade por um pequeno buraco do tabique, chegou a suspeitar de que estivessem bebendo á socapa,—julgando-se até certo ponto desconsiderado por lhe não haverem distribuido o papel de Ganimedes do festim.

O marcador era um tolo, um guloso, para não dizer um borracho. Ali, no gabinete, não se tratava de beber vinho; se havia sêde, era de sangue. O estudante de Alcacer queria sugar as veias do jornalista de Lisboa, escorropichar-lhe as arterias, mastigar-lhe o coração. Uma carnificina! O alferes Ruivo dirigia os preliminares do duello, e dizia facetamente que, coisas d’esta natureza, em que elle entrasse, haviam de acabar por força em sarrabulho. Que não era para brincadeiras, que tinha uma farda, que devia honral-a, e que estava n’essa firme convicção. Que o duello havia de ser de morte, a poucos passos de distancia, á pistola, pelo menos; por não estar em costume bater-se ninguem a canhão, porque seria esse o meio mais racional de dois sujeitos se metralharem.

No botequim da praia contava-se, commentava-se o escandalo d’aquelle dia. Que o Lemos e o Goes não só se haviam insultado de palavras, na presença de Soledad e por causa d’ella, mas que tinham mesmo chegado a vias de facto, arrancando os cabellos, e não sei se os olhos, um ao outro. Alguns curiosos foram ao lugar do conflicto para verificar se havia no chão nodoas de sangue, e algum olho perdido. Não encontraram nada. Acrescentava-se que o administrador do concelho já tinha tomado conhecimento do facto, que o poder judicial receberia participação, e todo este escandalosinho era saboreado a pequenos goles, como um vinho generoso. Em Setubal, quando algum acontecimento extraordinario occorre, põem-n’o de escabeche para durar mais tempo. Sabem tratar muito bem do peixe e do escandalo de conserva. Depois, os commentarios saltavam. Uns velhos sacudiam o seu caruncho em phrases desdenhosas: «Que tolos! são uns asnos! Tudo isto por causa de uma hespanhola que os anda a comer!» E outros, mais philosophos: «Todas as mulheres são da mesma massa, tanto faz que sejam hespanholas como portuguezas.» E um bregeirote, do lado: «Se ella fosse de massa não se massavam elles tanto!...» «Aquillo é para lavar e durar!» commentava um capitão de navios, vermelho e grosso, já entrado na genebra de Hollanda, que bebia aos copinhos, de um só sorvo.

No gabinete do Club resolveram que era melhor o estudante apparecer na sala da dança, para dissipar suspeitas. Quando o marcador o apanhou na casa do bilhar, depois de haver sabido por um frequentador do botequim, que ali entrara a historia exagerada do conflicto na praia, chegou-se-lhe ao ouvido, e disse com os ares de superioridade de quem está de posse de um segredo: «Então o senhor tira a desforra, hein?» «Chut! respondeu Julio de Lemos. Eu cá sou assim, ha de ser duello de morte!» O marcador ficou entalado: «De morte?» perguntou. E como o estudante lhe voltasse as costas, saboreando a sua reputação de duellista, o marcador foi vêr ao livro dos fiados a quanto montava a divida do estudante. E sommou: Cinco partidas de bilhar, dois charutos, um copo de vinho do Porto: total, 360 réis. O Lemos fez a sua entrada na sala, apparentando uma serenidade heroica, a serenidade fria de um Cassagnac; julgava-se circumdado de um resplendor glorioso. Mas Soledad parecia não o haver comprehendido, mostrava-se uma digna representante de um paiz de antigos brigões de capa e espada, e de modernos toureiros audaciosos. Não fez caso do heroe. Estava apertando a cravelha amorosa ao sueco, conseguindo extrahir d’elle, do Stradivarius que todo o homem tem no coração, notas de uma melifluidade assombrosa nas raças do norte. Ella tinha-o embriagado com o Kirsch-Wasser dos seus olhos. Estava tonto de amor o sueco, bebado de salero, e, no grand’-chaine dos Lanceiros, as suas mãos enormes, duras e grossas, pareciam ter uma delicadesa de sensitiva, as contracções nervosas dos tentaculos de um caranguejo, ao colherem os dedos avelludados e finos de Soledad.

Depois da dança, rendeu-se culto á poesia. O estudante, que estava sempre na vanguarda dos recitadores, menos do que nunca se fez rogar n’essa noite. Recitou versos de Alvares de Azevedo, o mais genial, o mais nacional dos poetas brazileiros, talvez. E de pé, tendo na voz todas as commoções ao mesmo passo epicas e lyricas do homem que vae expôr-se heroicamente á morte, estando psychologicamente mais vivo do que nunca, declamou:

As Netas do Padre Eterno

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