Читать книгу Os Filhos do Padre Anselmo - António José da Costa Couto Sá de Albergaria - Страница 8

II
Amôr e esperança

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Deixemos os mysteriosos irmãos da Mão-negra seguir o caminho que os havia de reconduzir ao mundo do qual por algum tempo semelhavam ter-se apartado, e sigamos o arrojado e corajoso adolescente que acaba de iniciar-se nos mysterios da terrivel seita.


Paulo, tendo sahido da quinta do Carvalhido em companhia do seu amigo Jorge, agora convertido em seu irmão, regressou á cidade no mesmo trem que o conduzira, apeando-se e despedindo-se do companheiro em uma rua proxima da de Cedofeita.


Eram tres horas da manhã e o vento continuava soprando rijo da barra, pondo negrumes de tempestade n'aquella noite desabrida.


O mancebo seguiu pela rua deserta até parar junto de uma casa de luxuosa apparencia, e que denunciava pelo exterior severo e pelo amplo jardim gradeado que lhe ficava contiguo, a opulencia dos seus habitantes.


Inflou as bochechas e, batendo-lhe com as mãos, imitou o canto da perdiz.


Era evidentemente um signal, porque algum tempo depois, uma das janellas do rez do chão, vedada por grades de ferro, abriu-se manso, e uma voz feminina disse, tremula e quasi sumida:


—Como vens tarde, meu amigo!


—Beatriz, perdôa, mas um assumpto do mais alto interesse e de que depende a nossa felicidade futura impediu-me de vir á hora costumada. Hesitei em vir despertar-te a esta hora; mas a ideia de que havia de estar sem te fallar e talvez sem te ver até amanhã á noute, obrigou-me a procurar-te, Beatriz.


—Eu esperava-te... Esperava-te, porque tinha tambem que te dizer... Oh! se soubesses como estou afflicta!


—Tu! Mas o que te succedeu, anjo da minh'alma?...


—Paulo...—gemeu a meiga voz que fallava do lado de dentro da grade—não sei como t'o hei de dizer... meu Deus!


—Falla, Beatriz, falla, pelo nosso amor t'o peço!—supplicou o moço—Não me tenhas por mais tempo n'esta cruel espectativa... Tu choras, tu pareces afflicta... Meu Deus! o que é que motiva a tua dôr?


Beatriz, cujo vulto mal podemos distinguir na penumbra do aposento, occultava o rosto entre as mãos buscando afogar os soluços.


—Paulo,—disse ella—meu pae... quer casar-me!


O mancebo recuou um passo como se lhe tivessem descarregado uma violenta pancada no peito.


—Quer casar-te!—exclamou.—E com quem?


—Com um rapaz que eu mal conheço... um rapaz que tem vindo duas ou tres vezes de visita a nossa casa, onde foi apresentado por um dos mais intimos amigos de meu pae...


—Dize-me o nome d'esse rapaz!—intimou desvairadamente o moço.


—Eugenio de Mello—soluçou Beatriz.


—Eugenio de Mello!—repetiu o mancebo.—Esse nome é completamente estranho para mim. Nunca t'o ouvi pronunciar.


—Se te digo que apenas veio duas ou tres vezes de visita a nossa casa, apresentado por um amigo de meu pae...


—Mas, emfim, como é que surge agora essa ideia de te casarem com elle? Acaso esse rapaz alguma vez te manifestou sentimentos de sympathia ou de amor? Falla-me com franqueza, Beatriz. Comprehendo que por uma bem entendida delicadeza da tua parte para comigo, julgasses dever occultar-me os galanteios d'esse rapaz, se porventura elles te eram indifferentes... Mas não comprehendo como teu pae pudesse ter a ideia subita de te casar com elle, sem mesmo tentar indagar se o teu coração não repelliria um semelhante enlace.


—Não! juro-te que nunca dos labios d'esse rapaz ouvi uma palavra que pudesse dar-me a perceber o mais tenue sentimento de amor por mim. Fóra dos cumprimentos e ceremoniosas attenções que as pessoas de boa sociedade usam ter para com uma senhora, não se trocaram entre nós quaesquer amabilidades que justificassem o pensamento d'este enlace que me surprehende!


—É extraordinario! E como é que teu pae pretende impor-te um casamento em que tu nem sequer tinhas pensado?


—Sabes que meu pae—volveu Beatriz—habituou-se a contar com a minha obediencia cega e passiva em todos os seus desejos, que para mim são ordens. Muito austero, educou-me sob um regimen de ferro em que a sua vontade é a unica que predomina...


—Isso, porém, não é rasão para que elle se julgue no direito de sacrificar o teu futuro de mulher aos seus caprichos de... pae.


—Meu pae ignora que eu te amo, Paulo! Julga o meu coração desprendido de qualquer affecto e crê que não me repugna a ideia de unir o meu destino ao de um homem que elle julga digno de mim.


—E se de facto te não repugna... obedece-lhe!—bradou o mancebo n'uma voz estridente em que ia todo o fel do seu desespero.


—Paulo! És injusto para comigo! Sabes que te amo, que não posso amar outro homem que não sejas tu; e quando me vês afflicta, atormentada ao peso da cruel exigencia de meu pae, em vez de suavisares a minha dôr, de me animares com o teu conselho a resistir á fatal imposição que me é feita, ainda me torturas mais com esse tom acrimonioso e hostil das tuas palavras! Não te mereço isso...


As lagrimas da joven interlocutora de Paulo que, se realmente possue um rosto tão meigo como as suas palavras, de linhas tão suaves e puras como é doce o accento da sua voz, deve de ser uma creatura encantadora, pareceu abrandar um pouco o irritado animo do mancebo.


—Mas o que queres tu que te diga, minha querida, se eu noto que era vez de pensares em repellir a despotica imposição de teu pae, ainda tentas desculpal-o?


—Não o desculpo... digo apenas o que elle pensa.


—Mas que tenho eu que saber o que pensa teu pae? O que desejo saber é o que pensas tu, minha querida! O que é que tencionas fazer? Que respondeste a teu pae? Qual é a tua intenção?


Beatriz pareceu hesitar na resposta.


—Desejava ouvir-te, primeiro, Paulo... desejava que me dissesses o que devo fazer...


—Eu?! Pois é a mim que compete dirigir os teus actos? É a mim que compete dictar a tua resposta? Consulta o teu coração, Beatriz... Elle que te responda e te diga a resolução que deves tomar...


—Paulo! O meu coração diz-me que só a ti pertenço, que só a ti eu desejo ter por marido... Mas, bem vês, quando eu disser a meu pae que te amo, e que por ti estou decidida a recusar outro qualquer enlace, por mais vantajoso que se apresente, meu pae ha de perguntar-me quem és...


—E tu dize-lhe que sou aquelle que julgas que eu seja. Ou vae tão longe a tua piedade por mim e o teu despreso por ti que, tendo-me na conta de indigno do teu amor, assim mesmo m'o concedes?


—Oh! não, não, Paulo!


—N'esse caso, o que receias?


—É que eu julgo-te com o coração; meu pae, porém, ha-de julgar-te com a cabeça; e entre o coração da filha e o cerebro do pae existe uma distancia tão grande, que eu receio bem que não possamos transpôl-a...


—Se essa é a tua convicção e te faltam forças para resistir e luctar, submette-te e... adeus! Adeus para sempre, Beatriz!...


Paulo ia a retirar-se. O animo orgulhoso e altivo d'este adolescente de 18 annos, que tinha já a energia e a vontade de ferro de um homem feito, não podia supportar sem protesto os timidos receios e as hesitações offensivas da mulher que adorava.


—Paulo!—tornou a chamar a joven.—Escuta-me! Que singular prazer tens em me atormentar, quando eu tanto preciso da tua compaixão e da tua piedade!


—Fallas-me em tormentos, Beatriz, quando desde que aqui cheguei outra coisa não tens feito senão revolver-me n'um perfeito inferno de torturas! Acabemos com isto, e vamos direitos ao fim sem tergiversações nem rodeios. Teu pae impôz-te o casamento com esse... rapaz, que deve ser por força rico, distincto... amavel, emfim. E tu acceitaste?


—Eu...


—Hesitas na resposta e a tua propria hesitação me responde: acceitaste e vens dizer-me que está tudo terminado entre nós...


—Oh, não!—accudiu a joven, com impeto.—Eu não acceitei nem respondi como desejava. Pedi que me deixassem reflectir, porque o meu primeiro pensamento foi ganhar tempo, para poder combinar comtigo o que devo fazer...


—O que deves fazer não seja eu quem t'o diga. Teu pae é rico, Beatriz; tu mesma és já herdeira de uma avultada fortuna, e eu sou pobre. Separa-nos, portanto, actualmente um abysmo... Cuidei que poderia contar comtigo solteira e livre até ao dia, que não viria longe, em que eu pudesse apresentar-me a teu pae, a solicitar a tua mão, sem que o pedido revestisse o caracter humilhante para mim de uma tentativa de penetrar no sanctuario da riqueza pela porta do coração de uma mulher. Vejo, porém, que o destino quer o contrário; que outro pretendente se apresenta com menos escrupulos ou mais dinheiro do que eu, e que da firmeza e constancia do teu amor nada tenho a esperar, se eu não me resolver a prestar-te o amparo incompativel com a minha dignidade de homem e com o programma que me tracei de só a mim dever o meu triumpho. Paciencia!


—Paulo, tu não me conheces! ou, —Paulo, tu não me conheces! ou, se me conheces, estás sendo para mim de uma injustiça que mais tarde te ha-de fazer remorsos... Escuta-me, meu amigo, escuta-me com serenidade e repara bem nas minhas palavras.


E Beatriz, com voz tremula de commoção, principiou dizendo:


—Não conheces o caracter de meu pae e não admira por isso que julgues sêr-me coisa facil o contrariar-lhe os propositos... Eu, porém, que o conheço, que por elle fui educada e com elle tenho vivido sob o jugo do seu genio rispido e severo, avalio bem que crueis amarguras e horriveis tormentos a sua colera me prepara na lucta que vou ser obrigada a sustentar, recusando-me a acceitar por esposo o homem que elle me escolheu. Não me intimida, porém, a perspectiva do soffrimento. Morrerei de bom grado na defesa dos sagrados affectos do meu coração e conservar-me-hei fiel ao juramento tantas vezes repetido do meu amôr. O que quero é ter a certeza de que a tua confiança me não abandona, Paulo; que quaesquer que sejam as mudanças que se operem no nosso modo de viver e de nos relacionarmos—mudanças que eu não posso prevêr por emquanto quaes sejam, mas que certamente hão de sêr as mais dolorosas para o nosso coração—eu terei no teu espirito e na tua lembrança o logar a que o meu amôr me dá direito...


—Beatriz!—exclamou o mancebo—quando se ama como eu te amo; quando se sente no peito a chamma ardentissima de um vivo e intenso amor que de todo nos senhoreia o espirito e nos absorve a existencia, lucta-se, soffre-se, morre-se, mas não se esquece jámais o nome d'aquella que nos inspirou tão fervoroso culto!


—Pois bem, meu Paulo! É possivel que o destino nos reserve dias bem sombrios de uma ausencia crudelissima, que ha-de retalhar-nos o coração e quasi volver-nos loucos de desespero. Sejam quaes forem as circumstancias em que nos encontremos, sejam quaes forem as apparencias que me condemnem, não duvidarás nunca da lealdade do meu affecto como eu não duvidarei, jámais da sinceridade da tua alma, não é verdade?


—Fazes-me estremecer de receio, Beatriz! Decerto exaggeras o pavoroso quadro dos nossos infortunios...—disse o mancebo, pallido de commoção.


—É que tu não conheces meu pae!


—Que poderá elle fazer, se tu recusares tenazmente esse enlace como uma violencia imposta ao teu coração? Antes de tudo, tu és sua filha; e um pae, por muito severo e rispido que pareça, não se transforma por simples capricho no algoz d'aquella a quem deu o sêr.


—Não sei... não posso dizer-te nada por emquanto, senão que tudo espero d'este funesto designio manifestado por meu pae... Mas seja como fôr, jura-me que não duvidarás nunca da mim, que has-de sempre confiar na tua Beatriz como n'aquella que mais te ama no mundo.


—Juro-te, meu amor, que serás minha e que não te has-de encontrar só na lucta e no soffrimento. Tenho amigos—continuou Paulo—amigos poderosos, contra os quaes não é facil nem prudente luctar... Com elles conto como irmãos e n'elles espero encontrar o auxilio de que ambos carecemos. Não te assustes nem te deixes dominar pelo terror. Hontem, ainda desprotegido, poderia talvez apavorar-me a ideia da minha fraqueza contra inimigos tão poderosos como é teu pae; hoje, conscio de que os brados intimos do meu coração ameaçado de morte encontrarão ecco n'outros corações que me são dedicados, levanto-me orgulhoso e altivo do teu amor, e digo-te: «Não succumbas, anjo da minha alma! Tem confiança em mim, que havemos de vencer».


O tom de absoluta segurança com que Paulo proferiu estas palavras pareceu transmittir novo alento á joven.


—Luctarei—disse ella—e agora com mais energia, desde que nas tuas palavras tenho o penhor de que não será perdido o meu sacrificio. Nada mais te pedia e nada mais te peço do que essa confiança inabalavel na constancia do meu amor. Ama-me como eu te amo, Paulo! e d'este sentimento, que é a vida, hauriremos forças para resistir aos embates de uma sorte cruel e adversa!


Trocaram-se ainda novas juras e protestos de constancia e amor sem fim, despedindo-se, e promettendo tornar a ver-se na noite seguinte.


O leitor, eivado do realismo da epoca, certamente está sorrindo do córte romanticamente amoroso e piegas d'este dialogo dos dois namorados.


Effectivamente, a menina tem a phrase um tanto brunida e lustrosa das heroinas dos romances d'outras eras, o que dá um tom de inverosimilhança ao lance ingenuamente sentimental.


Mas o romancista, se copía do natural como nós o estamos fazendo, não tem remedio senão acingir-se á verdade e reproduzir os seus personagens com os aleijões que a natureza, as condições do meio ou os acasos do nascimento e da educação lhes imprimiram no corpo ou no caracter.


Esta menina, assim romanticamente apaixonada, exprimindo-se em termos de um antiquado sabor litterario, não nos está revelando uma assidua e ingenua leitora das novellas de Camillo?


Claro está que ella reproduz incorrectamente o que de peor podia haurir na leitura do genial escriptor—a emphase, o arredondado do periodo, a declamação cantante, sem os esmêros da dicção, sem a impeccavel belleza e elegancia de fórma do grande Mestre. Mas o facto é que ella, em assumptos de coração, não podia exprimir-se de outra maneira, visto que, como mais tarde teremos occasião de averiguar, foi nas paginas soluçantes do «Amor de Perdição» que aprendeu a traduzir as primeiras balbuciações do seu amoroso coração de creança.


Paulo tambem, pela sua parte, influenciado pelas mesmas leituras, correspondia-lhe no tom e no gosto do seu arrasoado. Se, porém, esta linguagem póde ser capitulada de falsa, o mais espantoso é que ella exprimia um sentimento profundamente verdadeiro.


Os dois amavam-se com entranhado ardôr, e isso é o que mais importa saber ao leitor inimigo de divagações.


Ponhamos, pois, de parte a preoccupação de responder a reparos que a grande maioria certamente não fará e digamos em poucas palavras o que foi feito de Paulo, desde que, cerrada a janella da sua amada, teve que retirar-se a passos apressados para que a chuva, que começava a cair em grossas gôtas, o não surprehendesse na rua tristemente deserta.


O mancebo era estudante. Tinha completado o curso do Lyceu e matriculara-se no primeiro anno da Academia.


O padre Filippe, seu protector e amigo, era quem se dizia encarregado de lhe fornecer os meios de subsistencia e de estudo.


Não o tinha, porém, na sua companhia. Incumbira-o aos cuidados de uma familia honesta, onde era tratado como filho, e limitara-se apenas a exigir que o seu estudante o fosse visitar duas vezes por semana, nas quintas e nos domingos, á casa que elle habitava, na rua Chã.


Paulo não conhecera outra familia, além d'aquella em casa de quem o hospedaram aos doze annos. Até ahi, que se lembrasse, fôra alumno interno d'um instituto religioso, onde umas irmãs piedosas o trataram com o carinho de mães, ficando-lhe d'esse internato uma recordação tão saudosa que, ainda agora, ia a meudo visitar a abbadessa, madre Paula, que tinha no seu coração o primeiro logar.


Recolhendo a casa na manhã d'aquella noite accidentadissima, o mancebo não pôde dormir.


Agitadissimo, recordando o seu passado, em que parecia haver um ponto escuro que o mortificava, Paulo resolveu erguer uma ponta do veu mysterioso que encobria o seu nascimento.


No dia seguinte, pelas 10 horas, dirigiu-se a casa do seu protector, e sem mais preambulos, disparou-lhe esta pergunta á queima roupa:


—Diga-me, padre: quem é meu pae?


O padre Filippe, surprehendido pelo imprevisto da pergunta, pôz no mancebo os olhos espantados e ficou-se a consideral-o em silencio por alguns momentos.


—Porque me fazes essa pergunta, Paulo?—disse por fim.


—Porque sou um homem, porque tenho já dezoito annos, e desejo saber d'onde venho, para poder destinar para onde vou, ou para onde devo ir... respondeu o mancebo com firmeza.


O padre Filippe sorriu bondoso a esta replica do moço e continuou a olhal-o fixamente.


—Paulo—disse elle afinal—se dizes que és um homem, como póde influir no teu destino o saberes ou deixares de saber o nome d'aquelles a quem deves a existencia? És um homem; e todos os homens devem ser guiados pelo mesmo sentimento do bem, todos devem caminhar para o mesmo fim: serem uteis a si e á humanidade. Creio que o facto de cada um saber ou ignorar o nome de seus paes nada influe ou nada deve influir no destino que lhe está traçado.


—Perdão, meu bom amigo!—objectou Paulo—Todo o homem tem o direito, creio eu, de conhecer a sua origem, de saber o nome dos seus progenitores, não só para os respeitar e bemdizer pelo beneficio da vida que lhe concederam, mas ainda para nortear os seus actos pelas tradições da sua familia. Por isso insisto na pergunta: quem é ou quem foi meu pae?


—Teu pae—tornou o padre placidamente e agora de todo reposto do sobresalto que lhe causára a pergunta—teu pae é ou foi um homem. D'isso não te deve restar duvida, pois que homem te dizes já e como homem te apresentas.


—Mas não tinha nome esse homem?


—Se o tinha, não chegou nunca ao meu conhecimento.


—Nem o nome de minha mãe?


—Nem o nome de tua mãe.


—Como é, pois, que eu me chamo Paulo de Noronha?


—Naturalmente porque aquelles que te deram o sêr assim quizeram que te chamasses.


—Assim quizeram! A quem manifestaram elles essa vontade? São ainda vivos? Se o são, porque se occultam e me não apparecem? Se morreram, porque motivo deixaram envolto no mysterio o meu nascimento?


—A nenhum filho é licito discutir e muito menos censurar os actos de seus paes.


—Mas eu não censuro, nem sequer discuto!—obtemperou Paulo—eu apenas pergunto.


—Ha perguntas que envolvem censura, se não para aquelles a quem se fazem, pelo menos para aquelles de quem se fazem... Mas dize-me, Paulo, que estranha curiosidade é essa que assim te move a querer saber o que por emquanto deves ignorar?


O mancebo hesitou por alguns instantes e por fim disse:


—Padre Filippe, permitta-me que lhe falle com franqueza e lhe exponha as duvidas que ha tempo a esta parte me obcecam o espirito e me fazem reflectir na minha estranha situação...


—Falla, meu amigo, falla!—animou o padre bondosamente—e crê que, a não sêr madre Paula, ninguem no mundo merece tanto como eu a tua confiança.


—Pois bem!—tornou Paulo—ha muito tempo que eu dirijo a mim mesmo estas perguntas: Quem sou eu? De que familia descendo? Como se chamam ou se chamavam meus paes? Todos os meus condiscipulos dizem de quem são filhos, todos repetem com orgulho o nome dos paes ou relembram com saudosa ternura o nome das mães. Todos dizem: «a minha casa, a minha familia», só eu não posso dizer—meu pae, minha mãe, porque são entes que não conheço, de que nunca ouvi fallar, de quem não tenho a menor noticia. Dar-se-ha caso que eu não tivesse pae, que não tivesse mãe? Mas então a quem devo eu a minha existencia, o amparo e protecção que até agora tenho recebido? Sou um orphão? Sou um engeitado? Vivo e alimento-me do que por direito de nascimento me pertence, ou recebo a esmola de nobres almas compassivas? No primeiro caso, se tenho direitos, reclamo-os, porque esses direitos impõem-me deveres que eu quero respeitar e cumprir. No segundo, como sou já um homem e tenho o braço bastante robusto para ganhar o pão da existencia, não devo por mais tempo acceitar criminosamente a caridade que me trouxe até aqui e que póde fazer falta a outro desgraçado como eu!


—Paulo!—disse o padre Filippe, fundamente commovido—és ainda muito novo para te preoccupares com assumptos que, por emquanto, devem permanecer envoltos no véo do mysterio que os encobre aos teus e aos meus olhos. Eu nada te posso dizer, filho.


—É então á caridade de vossa reverendissima e de madre Paula que eu devo o pão que até agora me tem alimentado, não é assim?—perguntou o mancebo, extraordinariamente commovido e pallido.


—Não! Não!—atalhou padre Filippe.—Eu recebi de um meu superior, a quem assisti nos ultimos instantes, o encargo de velar por ti e de applicar ás despezas da tua sustentação e educação a quantia que mensalmente me é enviada por pessoa que desconheço e que já antes a enviava ao santo sacerdote que me legou este encargo. A mim nada me deves, meu filho, senão a grande estima que tenho por ti e o grande desejo que sinto de te vêr conquistar uma posição digna e honrosa na sociedade.


Paulo calou-se. As palavras do padre Filippe, repassadas de suavidade e doçura, impressionaram-n'o profundamente.


—Estou então condemnado—disse elle, passados instantes—a ignorar toda a vida o nome de meus paes?


—E de que te valeria o sabel-o?


—De que me valeria! Valer-me-hia de não ter que córar diante de quem me interrogar a esse respeito! Valer-me-hia de não ter que recuar envergonhado e confundido diante de uma familia honesta que, antes de me admittir como filho em seu seio, terá que perguntar-me o nome de meus paes! Valer-me-hia, emfim, de não me encontrar n'esta horrorosa situação de não saber quem sou, se o portador legal de um nome honrado, se o vil e abjecto fructo de uma acção indigna, de um amor bestial e criminoso!


Ouvindo esta retumbante tirada do moço, o padre Filippe sorriu ainda amoravel e observou-lhe:


—Os tempos mudaram e com elles a orientação da sociedade moderna, meu Paulo. Já nenhum homem se impõe hoje pela familia, pelas tradições dos seus antepassados, pelas chimericas e phantasticas illusões de uma arvore geneologica, bracejando vergonteas e rebentões inuteis pelos seculos fóra. Nenhum homem vale hoje pelo que valeram seus paes e seus avós... Hoje, cada um vale por si, pelos seus merecimentos proprios, pelas nobres qualidades do seu caracter, pelas brilhantes manifestações da sua intelligencia. A tendencia democratica dos nossos tempos de ha muito que pôz de parte as falsas convenções de uma sociedade que se desmoronou...


—Mas não pôz de parte, creio eu, os dictames da honra!—retorquiu o mancebo.


—Decerto. E alguem te impede de te affirmares sempre um homem honrado, Paulo? A honra está nos nossos actos, está no uso que fazemos das faculdades com que a natureza nos dotou, está na firmeza e altivez com que, através de todas as vicissitudes, cumprimos intemeratamente o nosso dever; não está nos acasos do nascimento, nos brios de passados avoengos, nos appellidos pomposos dos que nos deram o sêr. Faze, pois, por merecer a estima e o respeito dos teus concidadãos, Paulo, e não te preoccupe a ideia de não saberes de quem vens. Basta que apenas conheças para onde vaes e sigas sem tergiversar a linha do dever.


O mancebo guardou silencio por alguns instantes.


—É, pois, um mysterio impenetravel o meu nascimento? Mas com que direito se me occulta o nome de meus paes? Com que direito me condemnam a esta lucta permanente comigo mesmo, sem saber se o que me dão o devo receber como meu, se o devo considerar como uma esmola?


—Paulo! Por duas vezes já, desde que aqui entraste, proferiste a palavra esmola. As esmolas dão-se aos desgraçados, aos invalidos, aos que se encontram impossibilitados de, por esforço proprio, provêrem aos meios de subsistencia. Tu não estás n'esse caso. Quando muito, o que recebes de mão ignota que não precisas conhecer, é um adiantamento, uma divida que contrahes e que te será facil solvêr, correspondendo dignamente ás esperanças que em ti depositaram os que quizeram fazer-te um bom cidadão, um homem util a ti e aos teus semelhantes. E sobre isto, meu amigo, creio que temos fallado bastante. Dize-me—continuou o padre Filippe—tens ido visitar madre Paula?


—Ha mais de quinze dias que a não vejo.


—És ingrato, Paulo! A pobre senhora deve ter estranhado a falta da tua visita... Como é que pódes esquecer assim por tanto tempo quem tantas provas de carinhoso affecto te tem dado?


—Padre—disse Paulo, ruborisado—eu não esqueço, nem poderei esquecer nunca quanto devo a essa bondosa e santa senhora, que tem tido para mim desvelos e ternuras de... de mãe. Na minha vida, porém, começam a surgir tão imprevistas luctas, incidentes de tal modo inquietadores, que não sei se deva perturbar com a minha presença o suave remanso d'aquella existencia para mim tão cara!


—Luctas imprevistas, incidentes inquietadores...—O que é isso, Paulo? Falla-me com franqueza, dize-me tudo, rapaz! O que é que te acontece de estranho e de ameaçador? Não te esqueças de que deves considerar-me o teu primeiro e mais sincero amigo, meu filho! Creio que tenho direito á tua confiança... Ou não?


—Respeito-o muito, meu padre, para vir importunal-o com assumptos que lhe parecerão talvez pueris...


—Bem sei!... Negocios do coração... Temos amores no caso... São os primeiros rebates da virilidade no coração de um adolescente. Vamos! quem é a tua Virginia, meu Paulo?—perguntou jovialmente o sacerdote.


—A minha Virginia—disse o mancebo, com enthusiasmo—chama-se Beatriz, e não é menos formosa nem menos adoravel do que a immortal inspiradora do Dante.


—Bravo!—exclamou rindo o padre Filippe.—Temos, pois, em perspectiva uma comedia divina, para fazer confronto com a Divina Comedia...


—Se não tivermos antes um drama extraordinario, até agora inédito na historia dos soffrimentos humanos...


O padre encarou-o gravemente.


—Fallas serio, Paulo?


—Tão serio que me atrevi a vir interrogal-o, padre Filippe, sobre a historia do meu nascimento.


—Ah! era por isso que vinhas assim n'essa ancia, pedir-me a chave do enygma da tua existencia? Eu devia tel-o adivinhado... Só as mulheres são curiosas por indole...


—Não, não!—atalhou Paulo.—A mulher que eu amo ainda não me fez a menor pergunta que me difficultasse a resposta. Eu, porém, é que desejo saber quem sou para saber o que posso offerecer-lhe.


—Pois não é sufficiente o coração do homem que ama para a mulher amada?


—Padre, a mulher que eu amo não é livre; tem pae, que se julga com direito a intervir no seu destino e a impedir que sua filha busque a alliança de um homem de origem... desconhecida.


—Foi essa menina quem t'o disse?


—Disse-m'o a minha propria razão.


—Queres um conselho, Paulo?—perguntou inopinadamente o padre Filippe.


—Os conselhos de vossa reverendissima são para mim leis sabias e justas, que eu não posso deixar de acatar com o respeito e gratidão que lhe devo.

Os Filhos do Padre Anselmo

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