Читать книгу Guerras do Alecrim e da Manjerona - Antônio José da Silva - Страница 2

Primeira Parte
Cena I

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Prado, com casario no fim. Entram Dona Clóris, Dona Nize, e Sevadilha, com os rostos cobertos; e Dom Fuas, Dom Gilvaz, e Semicúpio, seguindo-as.

Dom Gilvaz: Diana destes bosques, cessem os acelerados desvios desse rigor, pois quando rêmora me suspendeis, sois ímã, que me traís. (Para D. Clóris).

Dom Fuas: Flora destes prados, suspendei a fatigada porfia de vosso desdém, que essa discorde fuga com que me desenganais, é harmoniosa atração de meus carinhos; pois nos passos desses retiros forma compasso o meu amor. (Para D.Nize).

Semicúpio: E tu, que vem atrás, serás o seringa destas brenhas; e para o seres com mais propriedade, deixa-te ficar mais atrás, pois apesar doa esguichos de teu rigor, hei de ser conglutinado rabo-leva das tuas costas. (Para Sevadilha).

Dona Clóris: Cavalheiro, se é que o sois, peço-vos, me não sigais, que mal sabeis o perigo a que me expõe a vossa porfia. (Para D. G.)

Dom Gilvaz: Galhardo impossível, em cujas nubladas esferas ardem ocultos dos sóis, e se abrasa patente um coração, permiti, que esta vez seja fineza a desobediência; porque seria agravo de vossos reflexos negar-lhe o inteiro culto na visualidade desse esplendor; porque assim, formosa Ninfa, ou hei ver-nos, ou seguir-vos, porque conheça, já que não o sol desse oriente, ao menos o oriente desse sol.

Dona Clóris: (à parte): Que será de mim, se este homem me seguir?

Dona Nize: Já parece teima essa porfia; vede, senhor, que se me seguis, que impossibilitais o meio para ver-me outra vez.

Dom Fuas: Para que são, belíssimo encanto, esses avaros melindres do repúdio? Se já comecei a querer-vos, como posso deixar de seguir-vos? Pois até não saber, ou quem sois, ou aonde habitais, serei eterno girassol de vossas luzes.

Sevadilha: Ora basta já de porfia, senão vou revirando. (Para Semicúpio).

Semicúpio: Tem não, Sargeta encantadora, que com embiocadas denguices, feita papão das almas, encobres olho e meio, para matares gene de meio olho; são escusados esses esconderelos, pois pela unha desse melindre conheço o leão desta cara.

Dona Clóris: Isso já parece teima.

Dom Gilvaz: Isto é querer-vos.

Dona Nize: Isso é porfia.

Dom Fuas: É adorar-vos.

Sevadilha: Isto é empurração.

Semicúpio: Agora, isto bichancrear, pouco mais ou menos.

Dom Gilvaz: Senhoras, para que nos cansamos? Ainda que pareça grosseria não obedecer, entendei que a nossa curiosidade e amor não permitirá que vos ausenteis sem ao menos com a certeza de vos tornarmos a ver, dando-nos também o seguro de onde morais, para que possa o nosso amor multiplicar os votos na peregrinação desses animados templos da formosura.

Dom Fuas: Eis aí, senhora, o que queremos.

Sevadilha: Em termos, sem tirar nem pôr.

Dona Clóris: Pois, senhor, se só por isso esperais, bastará que esse criado nos siga; porque de outra sorte destruís o mesmo que edificais.

Dom Gilvaz: E admitireis a minha fineza?

Dona Clóris: Sendo verdadeira, por que não?

Dom Fuas: Admitireis os repetidos sacrifícios de meu amor?

Dona Nize: Sim, se dita me abona?

Dom Gilvaz e Dom Fuas: Que essa dita me abona?

Dona Nize: Este ramo de Manjerona.

Dom Fuas: Na minha alma o disporei, para que sempre em virentes pompas se ostente troféu da Primavera.

Dom Gilvaz: Mereça eu igual favor para segurança da vossa palavra.

Dona Clóris: Este ramo de Alecrim, que tem as raízes no meu coração, seja o fiador que me abone.

Dom Gilvaz: Por único na minha estimação será este Alecrim o Fênix das plantas, que abrasando-se nos incêndios de meu peito, se eternizará no seu mesmo ardor.

Semicúpio: Isso é bom, segurar o barco; mas a tácita hipoteca não me cheira muito, digam o que quiserem os jardineiros.

Dona Clóris: Cada uma de nós estima tanto qualquer dessa plantas, que mais fácil será perder a vida, do que elas percam o crédito de verdadeiras.

Semicúpio: Ai! Basta, basta, já aqui não está quem falou: vossa mercês perdoem, que eu não sabia que eram do rancho do Alecrim e Manjerona: resta-me também que tu, cozinheirazinha, vivas arranchada com alguma ervinha, que me dês por prenda, pois também me quero segurar.

Sevadilha: Eis, aí tem esse malmequer, que este é o meu rancho; estime-o bem, não o deixe murchar.

Semicúpio: Ditoso seria eu, se o teu malmequer se murchasse.

Dona Clóris: Pois, senhor, como estais satisfeito, desejarei estimásseis esse ramo não tanto como prenda minha, mas por ser de Alecrim.

Dona Nize: O mesmo vos recomendo da Manjerona.

Dona Clóris: Advertindo que aquele que mais extremos fizer a nosso respeito, coroará de triunfos a Manjerona, ou Alecrim, para que se veja qual destas duas plantas tem mais poderosos influxos para vencer impossíveis.

Dona Nize: Desejara que triunfasse a Manjerona. (Vai-se).

Dona Clóris: E eu o Alecrim. (Vai-se).

Semicúpio: Cuidado no bem-me-quer.

Dom Gilvaz: Ó Semicúpio, vai seguindo-as para sabermos aonde moram; anda, não as percas de vista.

Semicúpio: Elas já lá vão a perder de vista; mas eu pelo faro as encontrarei, que sou lindo perdigueiro para estas caçadas. (Vai-se).

Dom Fuas: Quem serão, Dom Gilvaz, essas duas mulheres?

Dom Gilvaz: Essa pergunta não tem resposta, pois bem vistes o cuidado com que vendaram o rosto para ferir os corações como Cupido; mas pelo bom tratamento, e asseio, indicam ser gente abastada.

Dom Fuas: Oxalá que assim fora; porque em tal caso, admitindo os meus carinhos, poderei com a fortuna de esposo ser meeiro no cabedal.

Dom Gilvaz: Ai, amigo Dom Fuás, que direi eu, que ando pingando, pois já não morro de fome, por não ter sobre que cair morto?

Dom Fuas: Elas foram aturdidas com palanfrórios.

Dom Gilvaz: Já que do mais somos famintos, ao menos sejamos fartos de palavras. (Entra Semicúpio)

Semicúpio: Já fica assinalada na carta de marear toda a Costa de Leste a Oeste, com seus cachopos, e baixios.

Dom Gilvaz: Aonde moram?

Semicúpio: são as nossas vizinhas, sobrinhas de Dom Lancerote, aquele mineiro velho, que veio das minas o ano passado.

Dom Fuas: Basta que são essas! Por isso elas cobriram o rosto.

Semicúpio: isso tem elas, que não são descaradas; antes são tão sisudas, que nunca encararam para ninguém.

Dom Gilvaz: uma delas sei eu, que se chama Dona Clóris.

Semicúpio: e a outra Dona Nize, isso sabia eu há muito tempo.

Dom Fuas: e como saberei eu, qual delas é a da Manjerona?

Semicúpio: isso é fácil, em sabendo-se qual é a do Alecrim, logo se sabe qual é a da Manjerona.

Dom Fuas: grande sutileza! Vamos Dom Gil.

Semicúpio: já que se vão, advirtam de caminho, que segundo as notícias, que tenho, bem podem desistir da empresa; porque o velho é tão cioso das sobrinhas como do dinheiro; a casa é um recolhimento; as portas de bronze; as janelas de encerado; as frestas são óculos de ver ao longe, que nem ao perto se vêem; as trapeiras são zimbórios tão altos, que nem as nuvens lhe passam por alto; as paredes do jardim são mestras, e as chaves das portas discípulas, porque ainda não sabem abrir, ma só um bem há, e é, que tendo tudo tão forte, só o telhado é de vidro. Com que, senhores meus, outro oficio, contentem-se com cheirar a sua Manjerona e o seu Alecrim; que amor que entra pelo nariz, não é bem que chegue ao coração.

Dom Gilvaz: Semicúpio, não temo impossíveis, tendo da minha parte a tua indústria, que espero de ti apures toda a força de teu engenho para os combates dessa muralha.

Semicúpio: Ah! Senhor Dom Gilvaz, o meu Aríete já se acha mui cansado com tanto vaivém, pois nem todo o artifício de minhas máquinas pode abrir brecha nessa diamantina bolsa, que tão cerrada se dificulta aos meus merecimentos.

Dom Gilvaz: Semicúpio amigo, tem ânimo, que se montamos a burra de Dom Lancerote, saltaremos de contentes.

Semicúpio: tal é a minha desgraça e a sua miséria, que ainda com esta burra me dá dois coices.

Dom Gilvaz: Dom Fuas, ficai-vos embora, que me vou armar de esperanças, para que nos combates de amor triunfe o Alecrim.

Dom Fuas: D. Gil, vamos a forro, e a partido pois que Semicúpio é tão destro na matéria.

Dom Gilvaz: por ora não pode ainda ser; deixai-me primeiro tentar o vau, que vós também navegareis no mar de Cupido.

Dom Fuas: isso não merece a nossa amizade.

Dom Gilvaz: se vós sois do rancho da Manjerona, já me podereis conhecer por inimigo declarado, seguindo eu a parcialidade do Alecrim; e como nas guerras destas plantas havemos os dois ser contrários, mal poderei socorrer-vos; e assim, ficai-vos embora, Dom Fuas, e viva o Alecrim. (vai-se)

Semicúpio: e viva o malmequer. (vai-se)

Dom Fuas: viverá a Manjerona apesar do mais intensivo ardor de opostos Planetas.

(Entram Fagundes com manto e capelo)

Fagundes: e bom sumiço! Aonde estarão estas meninas, que há mais de quatro horas que foram à Missa, e ainda não há fumo delas? Meu senhor, vossa mercê acaso veria por aqui duas mulheres com uma criada?

Dom Fuas: Que sinais tinham?

Fagundes: Tinha uma delas uns sinais pretos no rosto, e a outra uns sinais de bexigas.

Dom Fuas: E que mais?

Fagundes: Uma delas tem os olhos verdes, cor de pimentão, que não está maduro, e a outra olhos pardos, com raiz de oliveira; uma tem cova na barba, e a outra barba na cova, uma tem espinhela caída, e a outra um leicenço num braço.

Dom Fuas: Com esses sinais, nunca vi mulher nesta vida.

Fagundes: Meu senhor, uma delas trazia um ramo de Alecrim no peito, e a outra de Manjerona.

Dom Fuas: Vi muito bem, que são as sobrinhas de Dom Lancerote.

Fagundes: Essas mesmas são: ora diga-me, aonde as viu?

Dom Fuas: Promete vossa mercê fazer-me quanto lhe eu pedir?

Fagundes: Ai, que coisa me pedirá vossa mercê, que lhe não faça, dizendo-me aonde estão as minhas meninas?

Dom Fuas: Pois descanse, que elas aqui estiveram, e agora foram para casa.

Fagundes: Ai, boas novas tenha.

Dom Fuas: Ora, pois, em alvíssaras desta boa nova quero me diga como se chama…

Fagundes: Eu? Ambrósia Fagundes, para servir a vossa mercê.

Dom Fuas: Digo, como se chama a que trazia a Manjerona no peito?

Fagundes: Chama-se Dona Nize.

Dom Fuas: Pois, Senhora Ambrósia Fagundes, saiba que eu adoro tão excessivamente a Dona Nize, que me prêmio do meu extremo me franqueou este ramo de Manjerona.

Fagundes: É verdade, que pelo cheiro o conheço, que é o mesmo.

Dom Fuas: E como me dizem os impossíveis, que há de a poder comunicar, quisera dever-lhe a galantaria de ser minha protetora nesta amorosa pretensão; e fie de mim, que o premio há de ser igual ao meu desejo.

Fagundes: Meu senhor, difícil empresa toma vossa mercê; porque além da excessiva cautela do tio, que nisto não se fala, uma delas está para casar com um primo, que hoje se espera de fora da terra, e a outra qualquer dia vai a ser freira; com que, meu senhor, desengane-se, que ali não há que arranhar.

Dom Fuas: E qual delas é a que casa?

Fagundes: Ainda se não sabe; porque o noivo vem à escolha daquela que lhe mais agradar.

Dom Fuas: Como o vencer impossíveis é próprio de um verdadeiro amante, nós havemos intentar esta empresa, saia o que sair; que a diligência é mãe de boa ventura: favoreça-me vossa mercê, Senhora Fagundes, com o seu voto, que eu terei bom despacho no tribunal de Cupido; tenho dinheiro e resolução, e tendo a vossa mercê da minha parte, certo tenho o triunfo da Manjerona.

Fagundes: Pois por mim não se desmanche a festa, que eu não sou desmancha-prazeres; esta noite o espero debaixo da janela do cozinha; sabe onde é?

Dom Fuas: Bem sei.

Fagundes: Pois espere-me aí, que eu lhe direi o que há na matéria.

Dom Fuas: Deixe-me beijar-lhe os pés, ó insigne Fagundes, feliz corretora de Cupido.

Fagundes: Ai! Levante-se, senhor, não me beije os pés, que os tenho agora mui suados e um tanto fétidos; descanse, senhor, que Dona Nize há de ser sua apesar das cautelas do tio, e das carícias do noivo.

Dom Fuas: Se tal consigo, não tenho mais que desejar.

Canta Dom Fuás a seguinte

ÁRIA

Se chego a vencer

De Nize o rigor,

De gosto morrer

Você me verá.

Porém se um favor

Alenta o viver,

Quem morre de amor

Mais vida terá. (vai-se)


Fagundes: Estes homens, tanto que são amantes, logo são músicos; e eu neste entendo terei boa melgueira; e mais eu que sou abelha mestra, que hei de chupar o mel da Manjerona, e do Alecrim.

Guerras do Alecrim e da Manjerona

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