Читать книгу Os tripeiros romance-chronica do seculo XIV - Antonio José Coelho Louzada - Страница 10

II. Um rapaz travesso.

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He elle um par bem 'scolhido.

gil vicente.—v. da horta


Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente levado pela porta, que tempos depois deu a um poeta com o nome um trocadilho para um requerimento em verso, no marulhar de curiosos e patriotas que se empuxavam, forcejando por abrir caminho para aquelle gargalo, um burguez que tornava respeitavel o sizudo do traje, uma barriga proeminente, onde batia uma gorda bolsa de couro e um esguio punhal, cabello branco, patrioticamente cortado, luctava para não ser levado na corrente, dando mostras pelo inquieto do olhar que procurava alguem. A força da corrente era grande, porém, e arrastou-o pouco a pouco até junto de uma das torres de defesa, onde a ressaca o fazia tomar todas as direcções e posições possiveis no meio dos gritos das mulheres abafadas, das crianças trilhadas, do estalar das armaduras, que, permitta-se a imagem, eram os crustaceos que as ondas daquelle mar lançavam d'encontro ás rochas. Mestre Gonçalo Domingues suava por todos os póros e formava com os cotovellos um amparo ao abdomen e quebra-mar á maré, receando ser lythographado no muro, resmungando ao passo uma ladainha contra o causador daquelle desastre, segundo se lhe affigurava, um sobrinho que o acompanhára momentos antes, e que perdera de vista. Resolvido já a deixal-o por sua conta, pois não estava já em edade de se perder, e a escapar-se daquelle aperto, começava a recuar, servindo-se dos cotovellos como de uma alavanca, quando sentiu umas mãos callosas pousarem-lhe no hombro, sustendo-o na marcha. Sentindo aquella resistencia, sem vêr quem a oppunha, pois lhe era impossivel voltar o rosto, e receando de novo ser levado para o muro, empregou contra o individuo que assim lhe cortava a retirada um cotovellão, que estava na razão directa da força que o impellia: tudo isto acompanhado por uma praga:


—Más terçãs te colham, cabeça de bogalho!


A praga a meio, e uma das mãos a erguer-se a descer fechada em murro, estourando no costado de mestre Gonçalo Domingues, que soltou um regougo, cambaleou e perderia de certo o equilibrio, se um mesteiral, que estava na frente, o não amparasse na queda. O burguez, incommodando com o peso o seu primeiro ponto de appoio, este o saccudiu para um dos visinhos, que o recambiou sobre o homem do murro, appresentando-lh'o de cara.


—Se te apanhára aqui, maldito! tornou a exclamar mestre Gonçalo, soltando outro gemido: punha-te as orelhas a fumegar. Tu m'as pagarás!


Esta exclamação a meia voz, dirigida ao ausente sobrinho, foi interceptada a meio pelo homem de murro, um marinheiro, que, vendo o rosto afflicto do bojudo cidadão, se contentou com dar-lhe um grande encontrão, resmungando, como goso que vê em perigo o osso que esburga:


—Pois junte lá mais isso á conta, meu baleote.


Mestre Gonçalo estava affeito a ser mais bem tractado intra-muros: doeu-se da chufa dirigida ao seu physico pelo maritimo, e fez-se mais vermelho do que estava; fez-se roixo, se póde dizer, desde a raiz do cabello até aos queixos, mas não reagiu. A sua indole era pacifica, apesar do punhal que o acompanhava; e demais, não via perto de si senão caras desconhecidas e rostos queimados pelo ar do mar, que podiam ser de vassallos da coroa, e estes, posto nessa occasião estivessem em harmonia com os vassallos da mitra, e já um pouco apagadas as divisões antigas, era de crêr que por elle não tomassem partido. Comtudo, não se ficou, sem responder:


—Se não está bom, deite-se, ou vá travar razões com petintaes, espadeleiros ou outra gente da sua egualha; não se metta com quem não se mette comsigo.


—Olhem o outro! resmungou o marinheiro; abalroou-me com os cotovellos pelos peitos, e diz que se não mette com a gente; traz aquella cara que parece mesmo um odre a rever, e grita que um homem cá está toldado!


Gonçalo Domingues, doendo-se da nova zombaria, tornou mais apropriada a imagem do marinheiro, e cerrando os punhos exclamou:


—Veja como falla!


—Graças a S. Pedro; meu advogado, redarguiu o homem do mar, levando a mão ao barrete—não é facil de dizer se em attenção ao santo-apostolo, se em cortezia zombeteira, pelo esgar que fez, ao senhor Gonçalo—graças a S. Pedro, fallo sem trave. E não me faça biocos nem arremessos, accrescentou com ar mais carregado: que, se me sobe a maré aos cascos?!...


—Que é lá isso, mestre Gonçalo? perguntou quasi ao mesmo tempo um cidadão de pouco menos edade que o interrogado.


—É este excommungado, que se metteu onde não era chamado, e me poz a paciencia em maior apuro do que já a trazia.


—Excommungado é elle! resmungou o marinheiro, recambiando o apódo que lhe fôra dirigido, e fitando ora o novo, ora o antigo interlocutor.


—Olhe, mestre Gil, tornou o burguez rubicundo, dirigindo-se ao recem-chegado; ia eu amofinado por causa daquella cabeça de vento de meu sobrinho...


—E que tenho lá eu com seu sobrinho? tornou o marinheiro.


—Isso mesmo queria eu que me dissesse! acudiu o senhor Gonçalo.


E, voltando-se para o seu collega, continuou:


—Ia eu, como lhe dizia, amofinado, porque o maldito do rapaz se me escapou—ora sei eu lá para onde!—e não sei que digo de mim para mim, quando essa creaturinha, como se não tivesse da sua egualha mais com quem desenferrujar a lingua, travou-se de razões...


—Isso nada vale, mestre Gonçalo! atalhou o homem a quem vimos dar o nome de Gil, dirigindo-se para o galeote, que lhe voltou as costas, fazendo uma careta muito expressiva para um companheiro, que, com uma mão pousada no hombro delle, parecia, na posição que tomava, querer dizer que alli estava para ir em seu auxilio, se preciso fosse, que não era.


O gordo burguez, vendo o antagonista voltar-lhe as costas, desafogou contra elle, com o seu amigo, a cholera, que o ameaçava com uma apoplexia; e em seguida desafogou tambem a respeito do causador, o estouvado sobrinho, que desapparecera. Apesar de ter escoado a multidão pela porta da cidade, de estar já desembaraçado o transito, á volta dos altercadores havia uma reunião de curiosos, como de costume, cujo nucleo era uma boa duzia de garotos pertencentes, pelo que dos trapos vestidos se divisava, a tres religiões; pelo typo, a tres raças, e ao qual se juntavam por um segundo, que mais não fosse, os arrastados daquella procissão e todos os que por alli o acaso conduzia. Uma velha que regressava aos lares com os aviamentos para a ceia, comprados na tenda d'ao pé da porta, soalheiro do bairro, não escapou, apesar de carregada, á força attrahente das lamentações de mestre Gonçalo; e, sabida a causa destas, se appressou em dar-lhe remedio.


—Quer saber do seu sobrinho que esteve no convento, mestre Gonçalo? Bem se vê que o rapaz não tinha queda para os latins e o hábito; aquillo é um levantado! Tome sentido com elle, mestre! Agora o vi eu a correr pela bitesga que vai por pé da casa de João Ramalho. A modos que elle...


A reflexão da velha, se na phrase ficou incompleta, não o ficou no gesto. A traducção deste era que o rapaz começava a inclinar-se ás saias. (Como demos a traducção, ajuntaremos, em nota intercalada no texto, que a boa santinha parecia, no ar malicioso que tomou, recordando-se dos seus tempos, ter delles saudade.)


Gonçalo Domingues, sem mais attender á mulher da alcofa, tomou a direcção do sitio indicado como o seguido pelo sobrinho, resolvido a descarregar nelle o mau humor excitado pelo seu desapparecimento, pelos apertões que levára, o cortejo que perdera, e, sobretudo, os apodos e murros do galeote. Em quanto para lá se dirige, ruminando aquellas passadas attribulações, saibamos o que fazia o travesso rapaz.


Como já viu o leitor, no antecedente capitulo, no tempo em que estas cousas succediam, as habitações, em Miragaya, estavam mais perto do rio, ou melhor, o rio corria mais perto das habitações. Entre S. Pedro e os muros, havia, no espaço que abre a montanha, algumas bitesgas, de que ainda se conserva uma amostra, povoadas umas, outras correndo entre cercados e muros; em outros sitios, um fraguedo deixava apenas o logar preciso para algum carreiro não muito viavel. A povoação cerrava-se, apinhava-se mais para o pé da velha egreja de S. Pedro, e rareava progressivamente para o oriente e poente. Perto dos muros, havia tão sómente uma fieira de casas á beira d'agua; depois o declive rude do monte onde se edificou o convento dos Agostinhos, coberto de silvados e matto, que vinha angustiar mais o passo para a cidade. Onde se tornava mais suave a encosta, subia um carreiro, que, depois de serpear por detraz de algumas das moradas do bairro do rei, se bifurcava, levando um braço a uma daquellas ruas, lançando outro pelo monte, serventia a casaes que se communicavam egualmente com a cidade pelo lado do Olival. Por este carreiro é que tomára Fernando, ou Fernão Vasques, o sobrinho do senhor Gonçalo Domingues, mal viu absorvida a atenção deste nas galés reaes e seus passageiros. O rapaz correu por algum tempo sem tropeçar, para o que preciso era estar bem affeito a trilhar similhante caminho, e só affrouxou o passo quando se approximava de uma casa de boa apparencia, cuja frente dava para a praia, habitação de uma das notabilidades do bairro, e que o foi depois, na historia, do piloto e mercador João Ramalho.


A casa para o lado do rio nada appresentava de notavel na fachada: era um edificio de madeira como muitos dessa epocha; para o lado do monte, porém, era bastante pictoresca. A parte inferior escondia-se em uma moita de arbustos de um pequeno cercado, onde tambem se levantavam algumas arvores de fructo, uma das quaes, rompendo, com um braço lançado á flor da terra o muro de pedra insossa, saccudia sobre o caminho a folha, a flor e mesmo o fructo, se a gula dos garotos esperava pelos effeitos do tempo. Acima do verde dos arbustos descortinava-se uma varanda de pau, onde, no parapeito, davam passagem ao ar e á luz aberturas symetricas, figurando folhas de trevo, e na parte superior, zelozias em xadrez, tudo pintado de encarnado vivo e verde esmeralda, com que realçava o branco que tingia o tabique. De ambos os lados da varanda descia uma escada, cujos maineis se perdiam entre os arbustos, depois de se ligarem em um patamar, ao centro, para de novo se separarem, formando da sorte um corpo saliente na fachada. Por cima da varanda abriam-se duas janellas, todas lavradas, ornadas de zelozias tambem, e tendo por baixo, sobre traves salientes, em cada uma das quaes artista rude esculpira um animal sonhado, dous caixões com terra. Em um, apar do qual duas longas canas formavam um estendal, onde se via roupa a seccar, a providencia domestica semeára salsa e a precaução contra feitiços dispozera um pé de arruda; no outro, havia um pé de amores perfeitos e outro de madresilva marinhando por cordões passados para o guarda-chuva de madeira que os abrigava.


Quando Fernando Vasques se aproximou da casa, depois de alguns assobios, entre a trepadeira e por cima dos amores, appareceu, aberta a zelozia, uma cabeça bem propria para encaixilhar entre aquellas flores. Imaginae um rosto oval, de uma carnação que se não podia dizer branca, mas a que se não podia chamar trigueira, porque o não era; uma pallidez, sem ser dessas que denunciam uma natureza enfesada, doentia; uma pallidez que lhe dava um todo de brandura, de carinho, que fazia por vezes realçar um carmim vivissimo e trahia um olhar travesso, de travessura infantil, innocente; imaginae uma bocca de um lindo desenho, formando em cada extremo uma covinha engraçada; uma bocca que parecia sorrir sempre, mesmo quando a fronte scismava ou as lagrimas desciam pelas faces; imaginae que o nariz fôra modelado pelo de uma estatua antiga, e imaginae, sobretudo, uns olhos castanhos rasgados, assombrados por uma franja de cilias tão cerrada, que pareciam negros como a baga do loureiro; uns olhos, emfim, expressivos, verdadeiros espelhos d'alma, como lhes chamam os poetas, e tereis uma ideia das feições de Irene. Esta encantadora cabeça enfeitava-se com o mais soberbo cabello que se póde ter aos quinze annos; negro, longo, serico, ligeiramente ondeado. Para maior realce da côr, parecia feita á moda que vogava. As tranças, que vinham pousar no collo, alvo como marfim, eram intermeiadas por fitas de lã de um vermelho vivo, que se cruzavam depois na cabeça e vinham cahir soltas, dos lados, terminando em pingentes de metal dourado.


As leis que faziam distinguir, pela cabeça, as solteiras das casadas e estas das viuvas cahiam em desuso.


A filha de João Ramalho, apesar da curta edade, era uma bellesa. O sangue de sua mãe, uma dessas bellas moças da Asia, em que se confundiam dous typos, o grego e o armenio, predominando, desenvolvera aquelle corpo garboso; dera-lhe na adolescencia o acabado, a morbidez que só mais tarde, em geral, em outra edade se alcança. Com o corpo desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o a esmerada educação materna, que distava bem da vulgar entre a nossa burguezia naquelles tempos, e os carinhos da boa mulher, que o senhor João não comprehendia bem, entretido sempre nas suas viagens e rude, voltados todos para aquella filha unica, em que se embellezava cultivando-lhe o coração, aformosearam-lhe a alma. Uma bella alma faz um rosto, senão formoso, amavel; a intelligencia reproduz-se nas feições como aureola que lhes dá realce; a natureza, já o dissemos, fôra madrinha e não madrasta para com Irene: a bella menina, reunindo, pois, todas as formosuras, despertava a admiração e o amor ao mesmo tempo. A impressão produzida no sobrinho de Gonçalo Domingues fôra esta, e que o amor naquelle peito tinha boas raizes, dizia-o a confusão em que elle ficou, mal á janella appareceu a gentil cabeça. Fernando, um rapaz jovial e resoluto, como o diziam uns olhos castanhos cheios de fogo, um nariz ligeiramente curvo, os lábios delgados, accentuados na extremidade por um ligeiro buço; Fernando baixou os olhos, fez-se vermelho, sentiu que os joelhos se dobravam, enfraquecidos, e, sem se attrever a fitar de novo aquella apparição, bom tempo gastou em puxar o barrete de um para o outro lado da cabeça e amarrotal-o nas mãos, nem creança bisonha que se dispõe a abrir brecha na bolsa paterna, ou tem de responder por avaria feita, acabando por desafivelar o cinto da jornea, como se carecesse de tomar largo folego para levar a cabo a sua empresa.


Não era esta a vez primeira em que alli se encontrava em taes embaraços, porém nunca tão graves tinham sido as circumstancias. A gravidade não provinha da escapula feita a seu tio, que já nem de tal se lembrava, mas da resolução que tomára de realisar as suas ambições e sonhos, as combinações de tantas horas; de passar além de alguns gestos e sorrisos e umas saudações feitas do cimo da encosta, não fallando em uma enfiada de sons, que palavras se não podiam dizer, pois nem elle lhes soubera o sentido, soltados á porta de S. Pedro entre uns como arrepios, que attribuiu ao modo porque o encarou a cultivadora da arruda, a creada a quem o senhor João Ramalho, por morte de sua esposa, confiára o governo da casa e a guarda da filha.


Quasi egual á força da resolução fôra o abalo, como nestas cousas é de costume, mas Fernando não estava resolvido a deixar perder mais uma occasião: puxando o barrete sobre a nuca, subiu a um comoro, ao lado da quelha, ergueu os olhos e abriu a bocca, porém a palavra engasgou-se-lhe a um gesto de Irene. O pobre não prevera que prégar a sua confidencia daquelle sitio fôra, querendo que ella a ouvisse, mettel-a tambem nos ouvidos dos visinhos, ou pelo menos das pessoas de casa, e a moça, levando um dedo aos lábios e indicando-lhe com um gesto que descia á varanda para encurtar a distancia, se no enleio, no rubor se mostrava mal affeita áquellas artimanhas, professadas pelo amor, ou quem suas vezes faz, como do sexo a que pertencia, se mostrava mais prudente. Irene desceu, mas vencido a meio o inconveniente da distancia, furtava-se, encoberta pelo cercado da horta, ás vistas de Fernando. Este eclypse, como diria um poeta, foi que deu ao namorado um animo de que elle proprio se espantou por muitos dias depois: atreveu-se a subir ao muro e marinhar pela arvore que se debruçava sobre a estrada, a esconder-se entre a ramagem.


Os discursos naquelle dia tinham má sorte: como o que fôra destinado a Ruy Pereira, o pensado e repensado do sobrinho de Gonçalo Domingues não vingou. A erudicção do abbade de Paço de Sousa achatara-se de encontro á paciencia do fidalgo; as flores escolhidas para ornar a declaração feita a Irene (tão rico dellas é o coração em que rebenta o amor!) as flores de estylo queimou-as um olhar lançado ao mancebo, traduzindo tanta cousa, que só um desses olhares podia dar bons tres capitulos como este em que se conta e commenta tanto successo. O olhar de uma donzella, como a filha do piloto, nestas confidencias de um primeiro amor—deixem dizer que o amor, o verdadeiro amor só vem muito mais tarde, deixem; que elles treleem, e julgam que o egoismo aquilata a paixão—; o olhar de uma donzella assim, encerra um mixto de affecto carinhoso, de volupia indefinivel, de pudor e innocencia, de receio e ousadia, que, para delle dar uma ideia, a poesia mesmo é uma linguagem descolorida.


Fernando, mal se viu frente a frente com a moça namorada, sentiu um formigueiro nos pés, turbara-se-lhe a vista, e teve de se agarrar aos ramos da arvore, para não cahir; quiz procurar o cabeçalho da sua declaração, porém nem uma só ideia lhe vinha á mente; por mais de uma vez abriu a bocca, e teve de a fechar sem formular um unico monosyllabo. Irene, na varanda, com a approximação tambem se acanhára, e occultava o seu embaraço, ou, antes descobria-o, passando a mão pela fronte, levantando uma trança para logo a abaixar, enrolando e desenrolando uma das fitas, afogando e desafogando o pescoço com o singelo colleirinho do corpete. Os minutos que assim passaram não foram poucos. Recuar depois de ter chegado até alli era desairoso e difficil.


O sobrinho de Gonçalo Domingues fez o supremo esforço para não perder tudo.


—Irene, Irenesinha! disse elle, amarrotando o barrete com a mão que tinha desembaraçada.


A moça fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos foram desperdiçados, se desperdiçado se póde dizer aquelle tempo passado em enleio, rápido na passagem, mas que depois enche com a recordação tantas horas de vida.


—Irenesinha! tornou Fernando, continuando a procurar a musa no barrete.


A moça continuou a fitar o embaraçado rapaz, aguardando que alguma palavra mais seguisse á invocação. O barrete não absorvera, ao que parecia, os galanteios estudados, amimados por tanto tempo, pelo que, depois de larga pausa, Fernando desceu das regiões do amor a cousas mais terrestres, na linguagem; procurou, se, o que é mais provavel, se não agarrou á primeira idea visada, um ponto de partida nos successos do dia, e titubeou:


—Não sabe que chegaram ahi umas galés de Lisboa?


—Sei; respondeu a joven, baixinho, depois de olhar para todos os lados a vêr se alguem poderia ouvir aquella conversação amorosa. Meu pae para lá foi.


—Foi? interrogou machinalmente o mancebo.


—Foi, repetiu Irene, debruçando-se pela varanda e fazendo com uma das mãos junto do ouvido uma concha para não perder uma só palavra.


—Pois veem nellas muitos fidalgos de Lisboa. Não os viu desembarcar?


—Vi.


—Disseram-me que iam em procissão á cidade, e que traziam um recado do senhor D. João!


—E não foi vêr?...


—Olhe, Irene, atalhou Fernando em voz mais baixa e intercortada, por muito que tenham que vêr, eu antes quero estar aqui. A menina é que não sei como não vai para o lado da praia.


—Para que? Tão longe fica o lugar onde vararam as galés, e está um gentio...


—Então, se podésse vêr, não estava ahi.


—Porque não? disse Irene, córando.


—Porque... porque, titubiou Fernando, baixando os olhos; porque aquelles fidalgos com as jorneas bordadas, aquellas armas a espelhar são mais para se verem...


—Da janella, tornou a moça, encolhendo os hombros; da janella não se podem admirar esses alindes.


Fernando baixou a cabeça, desconcertado o seu intento. A moça não vinha para o campo para que elle a queria trazer: não o entendia, pensava elle, e se o não entendia é porque o não amava. Se soubesse avaliar a entonação de certas palavras não pensaria daquella sorte; porém todos os namorados assim são: não reparam nas rosas e colhem os espinhos.


—Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem fazer uma leva para a guerra contra os scismaticos de Castella? tornou o mancebo, procurando levar a conversação ao fim desejado.


—Para que pensar nessas cousas!


—E se me levassem? insistiu elle.


—Mas elles não veem para isso; não, senhor Fernando? disse a donzella com uma inflexão de voz, que pintava o receio de que uma affirmativa fosse a resposta.


O sobrinho de Gonçalo Domingues não notou esta expressão e proseguiu:


—Não se lhe dava que eu fosse?


—Eu?


—Sim; parece que não teria pena alguma.


—Não diga essas cousas!


—Pois devéras magoava-a a minha partida?


—Devéras; disse Irene, passando a mão pelo rosto, para occultar as tintas do pejo, que a elle assomavam com esta confissão.


—Não diz o que pensa, acudiu o mancebo, imprimindo, cheio de alegria, um tal abalo á arvore, que esta, oscilando o roçando de encontro ao muro, fez desprender algumas pedras.


—Jesus! vai cahir! exclamou a donzella, tornando-se pállida.


—Ai! Irenezinha, só para vêr se o que diz é certo, de boa vontade quebrava a cabeça.


A moça, em vez de responder, com um gesto impoz silencio ao seu conversado. Do lado de baixo ouvia-se os passos de quem para alli se dirigia, e pouco depois appareceu Gonçalo Domingues.


—É meu tio, disse Fernando, com voz tão sumida, que para si tão só parecia fallar, e no momento em que o rotundo burguez passava distrahido junto do muro, querendo esconder as pernas que deixava pender de um e outro lado do galho em que cavalgava, de novo oscilou a arvore violentamente, mais arruinando o muro a que se encostava.


—Oh velhaco, que fazes ahi empoleirado?


—Eu, senhor tio? accudiu o pobre rapaz, coçando na cabeça com toda a furia.


—Sim, tu, Belzebuth! Salta cá para baixo, que te ensino a andar a roubar fructa pelos cerrados.


—Oh meu tio, a arvore não tem fructo; olhe bem.


—Então que fazes ahi?


—Eu estava a vêr...


—O que, rapaz de má morte, cabeça ôcca?


—A vêr se o via por algures, proseguiu o desconcertado mancebo.


—Levadigas te colham! Procuraste atalaya bem longe do caminho. Ora, desce, que eu te vou ensinar chanças melhores.


—Cuidei que ia pela Aljama.


—Algemia é isso que tu estás a prégar. Desce, velhaco!


—Lá vou, tio; disse Fernando, descavalgando, porém deixando-se suspenso pelas mãos do seu poleiro. Mas...


—Mas o que? Por tua causa em boas me vi, e tu m'as pagarás juntas. Eu farei de modo que não tenhas mais vontade de ir devassar hortas e cercados. Se vais por esse caminho, acabas nas mãos da justiça! exclamou o senhor Gonçalo Domingues, com sobrecenho provocado pela recordação de desaguisado da praia.


Fernando deitou á donzella, que toda trémula se conservava encostada á varanda, um olhar a furto, não se attrevendo, por envergonhado de ser assim, alli na presença della, tractado como uma creança, a uma despedida; com outro relance d'olhos avaliou se as ameaças do tio não teriam, na execução, algum desconto, e lentamente, soltando um suspiro, desceu da arvore em que, ao modo das aves, tinha soltado as primeiras confidencias do amor. Tão depressa sentiu nos pés o contacto do pedregulho da bitesga, como sentiu nas orelhas o da mão de mestre Gonçalo, que acompanhava cada puxão com um epitheto pouco amavel, terminando pelo de «ladrão».


—Ladrão não! exclamou o rapaz dando um salto, ferido pela insistencia do tio naquelle ruim conceito.


—Então que fazias alli, rapaz dos meus peccados?


Alguem, não o interrogado, se encarregou de responder. Á janella onde vecejava a arruda assomou um rosto encarquilhado, meio occulto em uma enorme touca de linho a feição das que usam as freiras, e gritou com uma voz de canna rachada, debruçando-se:


—Menina Irene! menina Irene!


Gonçalo Domingues suspendeu as suas iras, e estendeu o lábio inferior com um gesto que queria dizer muita cousa, e, entre outras, que atinava com o motivo de ter o sobrinho trocado a procissão dos fidalgos por uma ascensão ás arvores do senhor João Ramalho. Lembraram-lhe as palavras e os momos da velha da praia.


—Já agora vamos pela Aljama, e de passo fallarei com meu compadre; disse em seguida, dando um encontrão ao mancebo e indicando o carreiro que subia a montanha.


Mettendo-se a caminho, voltou a cabeça, como a voltára Fernando, para a casa do mercador, e viu na janella do andar superior, por entre a zelozia meia aberta, o rosto da gentil menina.


—Á fé, disse elle por entre dentes, que o rapaz não tem ruim gosto; e ella...


A palavra foi terminada por um sorriso, olhando para Fernando, como desvanecido do seu sangue. Gonçalo Domingues era um excellente homem, apesar de toda a sua aspereza apparente.



Os tripeiros romance-chronica do seculo XIV

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