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I. A mensagem do Mestre.

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Alteradas estão do reino as gentes Co' o odío que occupado os peitos tinha.

camões, lus. cant. iv.


Era uma estranha romaria, para quem não tivesse noticia dos alvoroços a que a morte de Fernando 1.º e o casamento de Beatriz em Castella tinham dado causa, a que pelos meados de Maio de mil trezentos e oitenta e quatro sahia pelas portas da cidade do Porto que davam sobre o rio, e mais pela chamada Porta Nova. Se fosse facil conduzir o leitor a vêr do alto das torres que a defendiam aquelle gentio, acreditaria que elle tinha invadido algum arsenal a procurar disfarce entre o guerreiro e o burlesco. Um popular cobria a cabeça com um elmo adamascado, e, mostrando os joelhos através do grosso estofo das calças, com pés descalços pisava a areia onde o montante que arrastava deixava um sulco; um outro, parecendo ter em menos conta a cabeça do que o peito, abrigava este em uma couraça mais que farta, e deixava aquella ao sol e ao vento; este, vestindo apenas umas calças, se assim se podia chamar um cirzido de trapos, trazia suspenso de funda um escudo de couro, onde em tempos estivera pintada ou divisa ou brasão, pois não era já facil adivinhar o que fôra; de um cinto leonado pendia de um lado um estoque, do outro um punhal, e, como se não bastassem estas armas offensivas, empunhava um chuço enorme; aquelle levava um bacinete amassado e um gorjal ferrujento, e tinha por cinto de grosseira jornea uma funda, o provimento da qual, como se não fôra uma arma facil de encontrar a cada passo, pesava em um sacco lançado aos hombros. De tempos a tempos o bom povo, como lhe chamava o mestre de Aviz, abria aqui logar a um cavalleiro acobertado de ferro desde os pés á cabeça, seguido dos seus pagens, ou escudeiros, alem a outros mais exquisitamente vestidos pelo antiquado das armas, ou pelo incompleto. Havia capacete que, se Cervantes o visse, não o deixaria ser original descrevendo o que deu ao seu heroe no principio das perigrinações; peitos de aço polido, espelhando o sol, que disparatavam com umas grevas desconjuntadas, enegrecidas, remendo visivel; feixes de armas que desdiziam umas das outras pelo valor, casando-se a facha grosseira com um estoque cuja bainha acobertavam ornatos de prata, montantes de Toledo e adagas grosseiras. Os cavallos iam uns cobertos de ferro, outros apenas com os arreios necessarios para se poder cavalgar, e não poucos dos cavalleiros, e aos pares até, montavam em mulas. Os cidadãos que assim sobrecarregavam os pobres animaes, costume vulgar por esses tempos e por muitos outros, vestiam em geral a garnacha negra, distinctivo dos doutores e physicos. Com este mesmo traje, porém arregaçado pela ponteira da espada, deixando vêr a calça de duas cores e o borzeguim ponteagudo via-se tres ou quatro aspirantes áquella distincta classe de medicos e letrados, e com elles alguns monges, que tambem se mostravam affeitos ás armas pelo modo como seguravam o punho da espada e cobriam a tonsura com o bacinete. Um dos cavalleiros mais bizarros da romaria era tambem um ecclesiastico; pelo menos assim o demonstrava um roquete, que sobre armas soberbas vestia em vez de brial.


De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas, as torres, os eirados e soteas nada havia nesta procissão; de marcial havia muito, tudo, a avaliar pelo enthusiasmo com que a saudavam, e pelos vivas que se juntavam ás saudações. Tinha decorrido uma boa hora desde que correra na cidade que umas galés demandavam a barra, e, posto que houvesse quem affirmasse logo que eram portuguezas, como dos de casa havia tanto a recear como dos extranhos, todos se tinham prevenido para as receber. Um pagem levara já a Ayres Gonçalves e ao bispo D. João a nova de que eram expedidas pelo mestre de Aviz; porém estes senhores eram então authoridades quasi nominaes, e deixavam por tanto, para não perderem o tempo, fazer a sua demonstração aos bons populares e aos cavalleiros que não eram de suas casas, creação, ou serviço.


Ideia de que no seculo decimo quarto era uma guerra civil, acompanhada de uma invasão estrangeira, nem todos os que passam os olhos por este capitulo farão. Hoje hasteam-se duas ou tres bandeiras, ou mais, se quizerem, mas, o primeiro impeto passado, a machina civil lá vae funccionando peor ou melhor por conta dos governos provisorios; naquelles tempos, porém, ninguem se entendia por vezes. Cada fidalgo levantava o seu troço de gente e vendia e revendia a espada; hoje era ao serviço de um, ámanhã ao de outro; os alcaides dos castellos, a maior parte dominando as povoações principaes, juravam preito e perjuravam todos os dias, e as municipalidades lançavam, bom ou mau grado, pela manhã um bando em favor de um monarcha e á tarde acclamavam outro. No meio desta bella ordem havia caudilho que dava em ambos os partidos belligerantes, e sobretudo nos pacificos, aventureiros que se batiam por si e para seu proveito. Na menoridade do pae do regedor, como modesta e arteiramente se appellidara o irmão bastardo de D. Fernando, e em quasi todos os reinados antecedentes, a provincia de Entre Douro e Minho tinha tido a sua amostra destas amabilidades; mas o que a gente da ordem chama revolução e revolução politica não estalara em tempo algum como agora. Até ahi o povo contentara-se, salvo um ou outro caso, com evitar a ponta da lança dos nobres senhores e o virote dos seus homens d'armas, e ainda mais de lhe franquear as arcas e de correr os cordões da bolsa, o que raras vezes conseguia. Os burguezes do Porto, o mais desenquieto povo de toda a provincia e do reino, tinham já dado mostras da sua força aos bispos Martinho Rodrigues e Vasco Martins, porém, nestas revoltas se entrava politica era acobertada: elles não davam por tal. Desta vez o exemplo da capital fôra-lhes contagioso, e mesmo sem tão bons motores como Alvares Paes, desempenháram a sua tarefa por tal arte, que se póde dizer, que a lei por que se governavam era a sua. Ayres Gonçalves de Figueiredo, o governador de Gaya admirára da outra margem a valentia dos pulmões dos partidarios do novo governo, e, posto que não estivesse bem seguro das suas ideias quanto á legalidade da regedoria, e preferencia de direitos do mestre de Aviz sobre os do infante, dos deste sobre a irmã, ou vice-versa, para não lhes avaliar as iras tambem, contemporisara, soltando as mesmas acclamações. Na cidade havia um cahos. Os vereadores, governavam; governavam os juizes do povo e o juiz real; governavam os chefes das corporações; governava, porém menos, o bispo e os seus meirinhos; governavam até, ou mandavam, os prisioneiros, ou tidos por taes, como era o conde D. Pedro de Transtamara, que no campo de Coimbra tivera as suas aspirações á coroa de Portugal, e a ser o terceiro marido legitimado de Leonor Telles; finalmente, mandavam todos, se a mais ninguem fosse, cada um a si.


Do pequeno povoado que ficava extra-muros, composto de uma mescla de armenios, que nove annos antes tinham deixado cahir o throno de Livonio, o seu ultimo rei, aos golpes de espada do sultão do Egypto; de gregos da Asia, escapados á furia dos soldados de Amurath; de flamengos e genovezes aventureiros, de mouros, os cultivadores da encosta em que o bairro se abrigava; da pequena povoação, do bairro Armenio, augmentado ainda depois da tomada de Constantinopla com os piedosos guardas de S. Pantaleão, ajuntava-se á procissão sahida da Porta Nova uma chusma de curiosos, que pela variedade de vestuarios, lhe vinha dar realce. Como em taes casos succede, toda esta gente se embaraçava na marcha, peões a cavalleiros, cavalleiros a peões; todos fallavam, todos tomavam e davam concelho, e perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro encontrado uma versão correcta e augmentada com reflexões de lavra propria e extranha. O espaço que se estendia desde os muros até onde a Arrabida deixava apenas um caminho de cabras, aberto na rocha para quem se quizesse dirigir á Foz do Douro, não foi pois transposto em menos de uma hora, pela vanguarda: uma grande parte do exercito popular nem lá chegou. Os primeiros que encontraram uma das galés subindo o rio, gritaram para os tripolantes que lhes dissessem por quem vinham, e como estes respondessem que pelo Mestre, sem mais attenderem, voltaram atraz, dando vivas, como se fosse aquillo reforço inesperado, que os viesse tirar de apuros.


Nas galés não vinha reforço algum para os do Porto, unica terra de importancia ao norte do reino, que não acceitára como rei o marido de Beatriz, e tinha a braços setecentas lanças e dous mil infantes do arcebispo de Santiago e de outros senhores castelhanos e portuguezes, sem contar os aventureiros de Fernando Affonso, que não eram nem uma cousa nem outra.


D. João de Castella, feita em Santarem a cessão dos direitos á coroa por D. Leonor, a troco de vinganças promettidas no povo de Lisboa, que a respeito della e em rosto esgotára um vocabulario immenso de nomes, de que Fernão Lopes dá uma amostra, e a mimoseára com pedradas; D. João, resolveu-se, senão a cumprir o ajuste, pois se malquistára com a ambiciosa sogra por causa de dous judeus, a destruir a rebellião, como elle lhe chamava, no fóco, e avançára até o Bombarral, ao passo que aprestava uma armada que, fechado o assedio por terra, cerrasse tambem as communicações por mar.


Os arredores de Lisboa talados, as povoações saqueadas não podiam abastecer de viveres os sitiados; entre elles e Coimbra estavam os arraiaes inimigos, portanto recorria-se ao Porto, pedindo tambem um reforço de navios para impedir que o Tejo fosse bloqueado. D. Lourenço, arcebispo de Braga, azafamára-se para armar as galés que deviam levar estes soccorros, e o mestre de Aviz encarregára Ruy Pereira de uma missiva, em que aos bons burguezes se promettia mil regalias; pois D. João acceitára o conselho de dar tudo o que lhe fosse possivel dar, e prometter até o impossivel.


Os vivas e o appendice a todo o enthusiasmo politico de morras, naquella quadra aos castelhanos, aos traidores e aos scismaticos, prolongaram-se até que as galés em que vinham Ruy Pereira e Gonçalo Rodrigues vararam perto dos muros da cidade e principiou o desembarque destes e outros illustres personagens, e ainda maior foi a algazarra quando o estandarte real appareceu. O conde de Transtamara, como primo do rei de Castella, não era dos coristas mais fracos deste grande côro desafinado, e fôra dos primeiros cavalleiros que se apearam para receber os reaes mensageiros, com toda a cortezania. O povo sem fé naquella conversão e pouco acatador nesse momento das esporas de ouro, das cotas bordadas e cimeiras historiadas; o povo, deixando escapar desses epygrammas de que elle possue o molde particular, em vez de lhe abrir caminho, cerrava-se na sua passagem, fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisongeiro que tencionava prégar a Ruy Pereira. Ruy era uma notabilidade, como hoje se diz; porque então ainda se não tinha inventado as notabilidades, nem muitas outras cousas. Desde que explicára ao mestre de Aviz a opinião do povo a respeito da rainha Leonor, notando que quando andava para casar com sua mulher, fallavam todos em que se queria casar com Violante Lopes, e depois de casado ninguem mais de tal fallára; depois, sobretudo, que déra o golpe de mercê ao conde valido, abaixo de seu sobrinho, dos homens de espada com valimento na côrte, era o primeiro, e para quem estava nas circumstancias de D. Pedro, portanto, pessoa que era prudente lisongear.


Já então, como se verá no decurso desta narração, se attendia a conveniencias.


Em quanto os mesteiraes e burguezes embaraçavam o conde, Martim Gil, abbade de Paço de Sousa, substituia-o dignamente com duas rajadas de latim, a substancia do todo, que o mensageiro perdeu por não entender a lingua de Cicero, e uma enfiada de periodos em portuguez garrafal, que entenderia perfeitamente, se a algazarra tivesse cessado. Ruy Pereira satisfez-se com vêr abrir e fechar a bocca ao reverendo, e respondeu a toda esta eloquencia, fazendo-lhe um ponto no meio do recado, perguntando onde havia de pousar. Martim Gil indicou-lhe todas as boas casas da cidade desde os paços da Sé e o convento de S. Domingos, até algumas das vivendas particulares, e o tio de Nuno Alvares escolheu S. Domingos, mostrando mais pressa de descançar dos encommodos do mar, que de dar conta da sua missão. O abbade tentou então dar á entrada na cidade dos passageiros e tripolantes da galé de Gonçalo Rodrigues, e das outras que iam aproando ao longo da praia, um todo processional, porém luctava em vão; que era até difficultoso fazer desembaraçar os sitios de desembarque, onde o povo se apinhava, se acotovallava sem dar descanço ao pulmão. O Douro não tinha ainda, nas suas soberbas, arrojando as terras roubadas nas campinas d'encontro á praia; tornado esta tão larga como hoje; nem os homens haviam com parapeitos avançado sobre o leito daquelle. O espaço existente logo além de portas, onde havia povoado, era tão limitado, que, a distancia, parecia que as edificações tinham para a agua serventia, como os da cidade das lagunas, a rainha do Adriatico; o estado de exaltação, e animo revoltoso ou independente dos burguezes e vilões, porém, até em logares mais espaçosos tornava difficil a empresa do abbade.


Ruy Pereira, apesar de ter presenceado em Lisboa a revolta popular, fazendo-se popular elle mesmo, não o era tanto que levasse a bem aquella sem-ceremonia dos portuenses, e lançando sobre os mais proximos um olhar pouco amavel, reprimindo a custo a vontade que tinha de mandar abrir caminho a prancha de espada e conto de lança, lamentava in mente os bons velhos tempos—que já então havia bons velhos tempos—em que a cousa «peão» descortinando a vontade no gesto de um rico homem, logo obedecia sem mais tugir ou mugir.


Graças á intervenção dos juizes do povo e real, que, avisados da chegada dos navios e de quem eram as pessoas que elles conduziam, vinham para as accommodar em pousada decente e fazer todas as honrarias, que em tal caso competia, o embaraço terminou. As tres authoridades, duas municipaes, uma real, duas de muros a dentro, outra ribeirinha, foram felizes, deve-se confessar, naquella occasião, por não haver conflicto de poderes, nem recalcitração dos governados, o que era raro, e deveram esta felicidade a estar satisfeita a curiosidade dos burguezes, e não ser preciso empregar barqueiro ou pescador algum na amarração dos navios. A procissão começou pois a mover-se pelas estreitas ruas da cidade, e, em vez de parar em S. Domingos, seguiu até á casa da camara no meio sempre de grandes acclamações ao mestre de Aviz, defensor e regedor do reino, e morras aos castelhanos herejes, scismaticos e traidores, o que fazia tragar sem réplica a Ruy Pereira o ceremonial amofinador a que o submettiam os edis portuenses, e a pressa que tinham de saber em que podiam servir a sua senhoria, o futuro rei.



Os tripeiros romance-chronica do seculo XIV

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