Читать книгу Romancistas Essenciais - Coelho Neto - August Nemo, John Dos Passos, Ellen Glasgow - Страница 5
IV
ОглавлениеA estalagem em que morava o Mamede, antiga chácara senhorial, abria por um portão nobre, com leões de louça nos pilares de pedra. Era um imenso e rumoroso viveiro, alveolado de renques de casotas baixas, de porta e janela, ao fundo de um jardinete, em umas escavacado e seco, em outras caprichosamente plantado até a cerca de ripas que o limitava.
Largo, vasto, subindo em capinzal para a montanha, o terreno era o logradouro comum, gramado em quadros ou com coradouros de pedra sob uma verdadeira teia de cordas onde trapejavam roupas.
No aclive, encostado à barranca, havia um estábulo e mais ao fundo, num cercado de pau-a-pique, muares soltos espojavam-se entre carroças tombadas sobre os varais. Tinas jaziam acanteiradas em fila ou de borco. Sentia-se o descanso domingueiro.
Só uma mulher, vermelha, anafada, com um largo chapéu de homem à cabeça, as saias arrepanhadas na cintura grossa, mostrando as pernas fortes e os pés rijos, em tamancos, ensaboava, jogando violentamente o busto, rebolindo os quadris nutridos. Os seios desabavam-se-lhe, moles e trêmulos, no papo da camisa e os seus braços másculos mergulhavam e reapareciam enluvados d'espuma.
Um mulato calvo, d'óculos, quase no limiar de um dos casebres, aproveitando a luz, cosia à máquina, cantarolando; e uma negra, sentada acaçapadamente, com o pito nos beiços, chupava fumaças distraídas, olhando o céu azul.
Ao fundo, alta e agreste, a montanha impunha-se e, por um caminho íngreme, escavado, uma cabra, aos galões, galgava o alcândor.
Fortum acre de barrela saturava o ar. Poças d'água cinzenta alumiavam ao sol em todo o vasto enxurdeiro.
Paulo sabia que a casa do Mamede era uma das últimas, querendo, porém, certificar-se perguntou a um pequeno que, em camisola e descalço, arrastava um comboio feito com caixas de fósforos. O interrogado partiu correndo e estendeu o braço indicando uma casinha pintada de azul, a cuja frente, além da cerca de ripas, verdejava uma latada.
— É ali.
Paulo agradeceu e encaminhou-se saltando um rego onde dormia, estagnada, uma água negra, velada e pútrida. Antes de bater esteve a olhar, como à espera de alguém. Cantavam na vizinhança, em tom monótono de acalento. Adiantou-se e bateu, tímido a principio, depois forte, bradando:
— Ó de casa!
— Quem é? - rosnaram de dentro, e um mulato espadaúdo, picado de bexigas, em mangas de camisa, cabelo em poupa, apareceu à porta, sungando as calças. Logo que viu o estudante abriu os braços, com alegria ruidosa:
— Ó nhozinho! Que milagre! Vosmecê por aqui? - E, sério, inclinando-se, com o sobrolho carregado: Alguma novidade lá em casa?
Paulo afirmou com a cabeça e o mulato, boquiaberto, num assombro, ficou algum tempo a mirá-lo; de repente, porém, passando-lhe o braço pelas costas, chamou-o: Mas entre, nhozinho; entre. Fez uma volta repentina na soleira e, sorrindo, com os dentes muito brancos, observou, pernóstico: não repare, isto é casa de pobre... e Ritinha ainda nem fez a limpeza.
Paulo encolheu os ombros e, deixando o chapéu a um canto, sentou-se numa cadeira tosca, que tinha o forro de palha muito esgaçado.
— Vai um golinho de café? - Paulo aceitou. - Isto é que é... Sempre o mesmo, hem, nhozinho? Bom como o velho. - E, atirando o corpo para trás, com um gesto largo do braço, descaído e lépido: Em casa de pobre não há outra coisa. Mas é bom! - afirmou com seriedade cômica. - Um instantinho.
Correu um leve reposteiro de chita escura, de ramagens, e desapareceu, gingando.
Paulo lançou os olhos à sala. Estreita, com uma janela e a porta à frente, duas portas ao fundo, encobertas pelos reposteiros de chita que o vento tufava; uma mesa de pinho, a cômoda com imagens de gesso e quinquilharias, quatro cadeiras e um banco com assento de couro. Nas paredes: cromos de antigas folhinhas, gravuras recortadas e uma cópia da Batalha de Avaí. A um canto, um feixe de bengalões mosqueados.
Na janela, empanada por uma cortina de filó, dois vasos de barro com malvas e, numa gaiola, um pássaro triste, amorrinhado, olhava o céu, piando. Um gato cinzento, esgrouviado, espichou-se, corcoveou e veio vindo, com preguiça, pelos varais da latada; ao vê-lo, porém, deteve-se, desconfiado, fitando-o, e, sem perdê-lo de vista, agachou-se, cravou as unhas nas ripas, raspando com frenesi; de repente, num salto, desapareceu no telhado.
Mas o mulato tornou, com a sua alegria ruidosa: "Que Ritinha estava arranjando o café", e, tomando de cima da mesa uma ponta de cigarro, acendeu-a e sentou-se cavalgando o banco, de pernas abertas, descaído, os cotovelos nos joelhos, o queixo entalado nas mãos, e perguntou com mistério:
— Então que houve, nhozinho?
— Violante fugiu de casa, Mamede.
O mulato empinou-se num ímpeto de espanto e, hirto, d'olhos esbugalhados, exclamou:
— Como, nhozinho!? Não me diga isto! Nhá Violante...! Com quem?
— Não sei.
— Quando, nhozinho?
— Ontem à noite.
— E vosmecê não desconfia de alguém?
— Ora, Mamede, eu, com a vida que tenho, pouco paro em casa. Não sei.
— E a velha?
— Mamãe, coitada!
— Ora, Nhá Violante! Uma menina que parecia uma santa... Vosmecê já foi à polícia?
— Fui ontem. Mas não confio naquela gente. O que eu quero é que tu me auxilies. Só conto contigo.
— Comigo!? - exclamou o mulato vaidoso, espalmando a mão no peito.
— Sim, tu conheces essas coisas. Contigo tenho certeza de descobrir o patife.
O mulato encolheu-se, modesto.
— Ah! nhozinho, também não é assim como vosmecê pensa, - disse escarvando a cabeça; - não é assim. Se a gente ainda tivesse uma dica... - Encolheu-se, pensativo, mordicando os grossos beiços, levantando o bico das chinelas. De repente, firmando-se, explicou: Aqui só há um meio - é a gente conversar com os cocheiros. Ela, com certeza, foi de carro, eu sei; ninguém faz essas coisas senão de carro e cocheiro é como mulher: não guarda segredo - o que um faz está na boca de todos. O meio é a gente sair pescando aqui, ali, nos pontos. Mas para isso é preciso andar com essa malandragem e esse serviço não é para um moço como vosmecê.
— Como não? Por quê?
O mulato sorriu superiormente, bambaleando-se:
— Não, nhozinho, eu mexo as coisas cá no meu lado, vá vosmecê tocando lá por cima. Essa gente miúda é o diabo! repetiu. Perto dum moço como vosmecê nenhum abre o bico, não se arranca isto, - e mostrou a unha aguda do polegar. - Comigo não, sou cabra da mesma romaria, ando no lote com eles e com uma misturadinha e uma pabulagem destripo o mais mitrado. Para mim o melhor mesmo é pegar os cocheiros. A gente vai no rasto, farejando, até botar a mão em cima do mestre, depois... o resto é nada. Mas com vosmecê, não. Vosmecê atrapalha os cálculos. Moço assim direito... qual! dizem logo, isso é tira, está sondando. Eu conheço os casos; - e riu. Logo, porém, reassumindo a gravidade, perguntou: E na vizinhança? A gente não pode apanhar alguma coisa? Vosmecê não tentou?
— Não.
— Pois é preciso, nhozinho. Então é assim que vosmecê quer pegar o meco? É preciso.
Nesse momento uma mulatinha cor de canela, afastando o reposteiro, apareceu com a bandejinha de café.
Muito nova, teria dezoito anos, pele fina, cetínea, olhos negros, faceiros e pestanudos, cabelo liso, abundante, roliça e lânguida. Os seios rijos espetavam o corpinho de cassa, e, pelas mangas frouxas, viam-se-lhe os braços morenos, torneados e nos punhos finas pulseiras de prata com berloques tinindo. Mamede apresentou-a:
— Esta é a minha barbiana, Ritinha, a mulata de mais caídos que eu conheço; - e atirou uma palmada ao quadril da rapariga, que fugiu com o corpo graciosamente.
— Olha, Rita, este é o filho do meu major. Eu vi este menino assim - e esticou o braço forte mostrando a altura - brincou muito aqui nos meus joelhos, era doido por mim. Nem vosmecê se lembra, hem, nhozinho?
Paulo, sorvendo o café, fez um aceno afirmativo; mas o mulato, estirando as pernas, arregaçando as calças, duvidou:
— Qual! Vosmecê era muito miúdo. - Ritinha sentou-se com a bandeja nos joelhos, mirando-o. Mamede, porém, entregando-lhe as xícaras, atirou-lhe nova palmada, que ela rebateu, ligeira, com um momo. - Vai um bocadinho lá dentro, mulata; nós estamos aqui numa menestra.
Ritinha levantou-se molemente e, com o seu andar quebrado, desapareceu; pouco depois a sua garganta mandou à sala a melodia de uma modinha sertaneja.
— Então, nhozinho, vosmecê não acha que eu penso bem? Eu vejo fundo nessas coisas. Vosmecê toca lá de cima, eu vou trabalhando cá por baixo, com o meu povo: assim, sim. Fechamos o bicho num cerco e, seja ele quem for, quanto mais graúdo melhor, há de chegar à fala. E depois, se eu puser os luzios nele, vosmecê pode ficar certo de que o mestre cumpre a obrigação. Ah! isso cumpre! Olhe, nhozinho, não é por vosmecê estar presente, mas pergunte à Ritinha se eu não vivo aqui falando lá de casa: do velho, da velha, de vosmecê, de Nhá Violante. Eu estimo vosmecês mesmo, não é prosa, estimo! Vosmecês cresceram nos meus braços, e então? Deus me livre! Achando, vosmecê pode ficar tranqüilo, porque o trucha ou cumpre a obrigação apagando a mancha, ou eu... ahn! Vosmecê não me conhece ainda, nhozinho. Eu não sou homem de muita conversa, esteja certo disso; não sou, mas quando digo, faço, nem que saiba ir parar no inferno. Assim como assim, a gente vive em qualquer parte, vive mesmo, mas com uma ânsia no coração, isso é que não, não é comigo.
Encolheu os ombros, esguichou, por entredentes, uma cusparada para o quintalejo e ergueu-se.
— Vou pôr os manos em serviço e se eu, com eles, não descobrir, também a polícia não descobre, isso juro!
Afastou a cortina e bradou:
— Ritinha, que é da cana? Vosmecê não bebe?
— Não.
— Pois fique descansado, nhozinho, que eu vou trabalhar com gosto. Hoje mesmo começo, hoje é bom dia, que é domingo. É verdade que eu tenho um negocinho nas corridas, mas não há dúvida: primeiro a minha gente. Mas que maluquice de Nhá Violante! Uma moça bonita, que podia fazer um casamento importante...
"Mas é essa malandragem que anda por aí solta, desencaminhando as moças. A cidade está perdida, só mesmo um chefe teso, que mande varrer tudo, a torto e a direito. É uma pelintragem que faz medo: uns pindaíbas, sem lasca de guita, muito engravatados, batendo a calçada e fazendo estrupícios. E por isso que há tanta perdição por aí.
"Muitas vezes vosmecê lê nos jamais que um homem enfiou uma língua de ferro no bucho do outro, à toa. À toa?! pois sim, trate de indagar e há de ver. Só um maluco mata por matar, há sempre uma razão. Eu mesmo já tenho estado para esfriar mais de um, por causa de desaforos, não com a Ritinha, qu'isso, então, era logo; por causa de outras coisas. Foi algum vagabundo que virou a cabeça de Nhá Violante, mocinha nova, sem experiência do mundo... - Suspirou: Eu, de quem tenho mais pena é da velha... Tão boa, coitada! Uma santa!"
— Passou toda noite em claro, chorando.
— Imagino! Eu sei como ela é para vosmecês! Eh! quando um dos filhos tinha qualquer coisa, uma febrinha de nada... Nossa Senhora! ficava que até fazia pena, quanto mais com isso agora. Eu nem sei, coitada!
Paulo pôs-se de pé.
— Então estamos ajustados? Vais trabalhar?
— Hoje mesmo, já não cuido de outra coisa. Vá vosmecê tocando de cima qu'eu espero cá embaixo.
— Achas que devo voltar à polícia?
— Acho. Vosmecê não conhece algum delegado?
— Não.
— Mas isso é fácil. Vosmecê arranja um cartão lá no jornal e vai mesmo ao chefe. E deixe correr o barco. - Ritinha, já íntima, entrou com a garrafa e dois cálices. Mamede, porém, foi logo dizendo: Nhozinho não bebe, - e serviu-se, pigarreando grosso, com o cálice entre os dedos. Virou de um trago, caramunhando, olhos semicerrados.
— Então até logo, Mamede. Ainda vou dar uns passos por aí.
O mulato deu um safanão às calças:
— Pois é: vosmecê faz por seu lado qu'eu vou mexendo cá no meu mundo. E vou trabalhar com gente direita - pode ficar certo de que se eu farejar o rasto, trago o mano nos grampos. Vá descansado.
E estendeu a mão ao estudante. Ritinha, sempre lânguida, encostada à cômoda, olhava-o com os seus grandes olhos negros, aveludados que, por vezes, pareciam adormecer à sombra dos longos cílios. Paulo adiantou-se para falar-lhe com reserva e ela, como a custo, levantou o braço e entregou-lhe a mão, passivamente, num abandono. Tomou o chapéu e, já no quintalejo, sob a folhagem lustrosa, disse:
— Então até logo, Mamede; e trabalha.
— Não precisa pedir, nhozinho: eu entro nisso com o coração. - Paulo, porém, atraía-o e, quando o viu fora, longe das vistas de Ritinha, entre os velhos caixotes de plantas, perguntou-lhe em segredo: Estás armado? - O mulato recuou, como ofendido; o estudante, porém, já com a mão no bolso, continuou: Sem cerimônia, meu velho; entre nós deve haver franqueza. Eu posso passar algum.
— Que é isso, nhozinho! Então eu vou receber dinheiro de vosmecê?! Isso não! não senhor!
— Tu precisas, Mamede.
— Ora quê! Dinheiro arranja-se.
— Qual arranja-se, - insistiu o rapaz, tirando do bolso algumas notas amarfanhadas.
O mulato sorria, meio vexado; e a voz fresca de Ritinha recomeçou languidamente a modinha sertaneja. O estudante dobrou uma nota e meteu-a, à força, na mão calosa do mulato, que recuava, sorrindo.
— Que é isso nhozinho! Tenha paciência, isso não.
— Ora... - Afastou-se e, voltando-se da cancela, recomendou: E trabalha! Vamos ver se conseguimos descobrir o miserável.
— Não há dúvida. Eu saio já; é só o tempo de botar alguma coisa na boca.
Paulo acenou um adeus, e o mulato, agarrado à cerca, sorrindo, inclinou-se, recomendando:
— Lembranças, nhozinho.