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V

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Descendo, sempre alvejado pelos olhares curiosos da gente da estalagem, o estudante sentia-se vexado. Dir-se-ia que aquele povo simples, olhando-o e cochichando, comentava, como se o conhecesse, o segredo que ali o levara. Precipitou os passos e, achando-se na rua, atirou-se a um bonde que passava sem saber ao certo o rumo que devia seguir.

Sentou-se, muito encolhido, e logo o tipo sensual de Ritinha surgia-lhe como uma visão. Onde a teria o Mamede encontrado, tão nova, tão linda, bem diferente da Libânia, sua antiga companheira, uma bexigosa relaxada, que andava em mangas de camisa, tresandando a sarro, cuspilhando nojosamente, sempre em rusgas com a vizinhança da casa da Rua do Conde? Invejou o mulato. Devia ser delicioso viver com uma rapariguinha como aquela, vê-la, senti-la sempre, dobrando-a a um ligeiro aceno, sujeitando-a com um ardente olhar, como uma humilde, submissa escrava do amor.

Tão distraído estava com os pensamentos lúbricos que não deu pelo condutor - foi necessário que ele lhe tocasse o braço; voltou-se e, precipitadamente, desculpando-se, meteu a mão no bolso e pagou.

Depois de uma curta parada, de muda, diante da estação, o bonde seguiu rápido, ladeira abaixo, aos trancos.

Quando avistou os Arcos o estudante perguntou a si mesmo: "Mas para onde vou eu?" Não sabia, deixava-se levar ao acaso, sem indagar. Talvez encontrasse Violante.

No Largo da Lapa esteve para descer vendo uma fila de bondes engatados que seguiam para Botafogo. Sim, naquele bairro é que ela devia estar, num chalezinho risonho, entre flores. Àquela hora dormia ainda, decerto, sobre as sedas macias do leito infame com a cabeça no braço do amante, nua e fatigada. E, lá em casa, consumida de angústia, a pobre velha andava pelos cantos, como uma trapeira, reunindo as lembranças: aqui um veludo que apertara as tranças da ingrata, um livro desmantelado, um lenço, um cromo, coisas que falavam dela, que conservavam a impressão dos seus dedos ou o aroma da sua carne. Pobre velha!

E foi com os olhos aguados que ele viu o Passeio, as grandes árvores, os tabuleiros verdes e aquela gente que ia para ali respirar a brisa saturada do aroma da folhagem ou a que vinha do mar, cheirando a salsugem.

Às janelas das casas, criadas batiam tapetes, levantando uma densa poeira. Das portas dalguns prédios corriam lençóis d'água negra para a calçada. Carros rodavam, tirados por trotadores de raça, cruzando-se com os apressados tílburis; passavam carroças, rangendo pesadamente e uma diligência, velha e imunda, desconjuntada, subia lenta, com oscilações, puxada por dois muares, atarracada de legumes que tufavam em grandes cestos, feixes de canas, jacás de galinhas, caixotes e, por entre a carga, agarrados aos balaustres, ou sentados em sacas, homens descalços, em mangas de camisa, oscilando com os solavancos da traquitana, que ameaçava desmanchar-se na primeira cova em que entrasse as suas rodas; mas lá ia, e as chicotadas sucediam-se no lombo dos animais que arrancavam com esforço.

Quando o bonde chegou à praia de Santa Luzia, Paulo comoveu-se vendo as árvores, que fazem uma cerrada abóbada, coando a luz pelas abertas da folhagem, ao longo da rua, larga e direita, que enfrenta com a Misericórdia.

No terreno que desce para a praia redes secavam, estendidas em espeques; barcos, pintados de fresco, reluziam, emborcados; uma carena apodrecia ao sol, como um esqueleto monstruoso. Pescadores teciam malhas, outros remendavam velas que o forte vento do largo estraçalhara. E a vaga rumorejava, refervia na praia por entre as pedras aveludadas de sargaço.

Longe estacionavam os navios. Um rebocador cortava as águas lisas, levantando a mareta na qual jogavam as pirogas esguias dos pescadores praieiros. Roupas grossas secavam em cordas, panejando com o vento da barra. Gaivotas voavam ou, pousadas n'água, apareciam e desapareciam, com a arfadura do mar.

Voltando-se, porém, deu com o frontão da Misericórdia - a escadada, a grande porta, larga e alta, que levava à sala do banco. Havia gente, enfermos pobres que iam à consulta, outros à espera de remédios. Alguns, sentados nos degraus da escada, abatidos, melancólicos, a cabeça entre os joelhos, pareciam cochilar; mulheres com crianças ao colo, velhos subindo tremulamente os degraus e uma negra que descia, de cabeça alta, olhos escuros, tateando cautelosamente, às cegas. Um tílburi estacionava embaixo.

Paulo respirou angustiado. Era dali que ele devia sair para a vida, depois de praticar à beira dos leitos de sofrimento, esvurmando pústulas, talhando carnes, recebendo nas mãos a vasa imunda das podridões humanas, acudindo à agonia de um, ao estertor de outro, subjugando um delirante, animando um tímido, levando o cordial a um abatido, com o termômetro de axila em axila, a tomar a temperatura de corpos queimados pela febre, túmidos de inchaços ou descarnados pela tuberculose.

Era aquela estrumeira humana que fazia vicejar a flor sempre bela da ciência; era aquela infecção que preparava a saúde. Aqueles corpos eram como compêndios nos quais, logo que esmoreciam, mestres e alunos, abrindo-os a golpes, estudavam na morte os segredos da vida misteriosa. Dali devia ele levar o diploma desejado. Era daquela imensa alcaçova, espécie de presídio da Morte, que ele devia tirar o pão, o agasalho, o conforto, a riqueza e a glória de amanhã...

Mas o edifício da Escola apareceu e Paulo, pensando na irmã, receoso de ver um dos colegas, sem lembrar-se de que era domingo, baixou os olhos e só descansou quando o bonde deu volta para o Largo do Moura.

Um brado chamou-lhe a atenção: partira de um beco, em cujo fundo, entaipado por uma muralha, abria-se o largo portão do Arsenal de Guerra. A esquerda, ficava o velho quartel, com o muro baixo, apuado de baionetas simbólicas, entre as quais, de espaço a espaço, desta cavam-se pequenos canhões e, em frente, todo de branco mármore, avultava o sacelo fúnebre do Necrotério.

Os passageiros descobriram-se respeitosamente. Uma velha mulher, baixando a cabeça, fez o sinal-da-cruz; ele lançou os olhos à capelinha e viu um cadáver ocupando uma das primeiras mesas.

Por uma rápida associação de idéias lembrou-se da Roda e já o bonde ia longe, através do largo, por onde andavam lavadeiras, quando ele se voltou para lançar um derradeiro olhar à capelinha.

A Roda... e foi pensando nos dois abrigos que se ligam pela mesma misericórdia - um recolhendo os inocentes anônimos, repulsas da miséria e do crime, outro dando guarida aos mortos desprezados ou desconhecidos. São como duas conchas de uma balança - em uma a creche, em outra o esquife - e a mesma Senhora da Piedade, que velava à cabeceira dos que não haviam contemplado a luz da última hora, que haviam expirado em devesas escuras, vasquejando prostrados pelo homicida ou no fundo das águas, presidia o dormitório dos desamparados, acalentando os pequenitos, cujos vagidos não acham o carinho do colo e dos lábios maternais.

Tão preocupado seguia que só levantou os olhos na Praça 15 de Novembro, diante da estátua de Osório que, em atitude enérgica, contendo o ginete, parece esperar os esquadrões gaúchos para arremeter com a fúria que o tornou lendário.

Em várias igrejas os sinos tintinabulavam e um carrilhão ressoava uma ária profana como se os próprios templos, esquecidos do misticismo, despegados do mistério, viessem, com desplante, confabular na orgia humana, repetindo, com as vozes dos seus campanários, os estribilhos devassos.

Desceu diante do Carceller e esteve um momento irresoluto, a olhar os que passavam - uns de volta do mercado, com as compras, outros a caminho das igrejas em formigar rumoroso.

Para onde iria? Pôs-se a olhar as casas, os bondes que chegavam, os vendedores de frutas que arranjavam as suas cestas. De repente sentiu-se agarrado - voltou-se. Era o Bruno.

— Que é isto?! - O "decadente" estava amarfanhado, d'olhos vermelhos e esmorecidos; um hálito quente, nidoroso, saía-lhe da boca seca. O colarinho estava todo esmagado, em gelhas, a gravata espocava. - Ah! meu amigo, que noite! Vamos tomar alguma coisa. - E, passando-lhe um braço pelas costas, lá o foi levando para o botequim. Sentou-se, tirou o chapéu. Estava com os cabelos empastados como se houvesse saído dum banho. - Dois cognacs! - pediu e, inclinando-se, com os cotovelos na mesa, exclamou de novo: Que noite, Paulo!

— Mas donde vem você?

— Imagina! Ontem, depois que saí da revisão, bati para os Fenianos, com o Brites.

— Com o Brites?

— Então? Ah! pensas que o Brites é sempre aquele mazorro que prega a moral de Corate? Fora da filosofia é um pândego de marca. Fizemos o diabo! Não imaginas. Encontrei lá uma rapariga, a Lívia, conheces? uma morena, que tem um sinal no canto da boca... Ora! Uma que esteve com o Bastos!...

— Não conheço.

— Ora, não conheces!...

— Palavra!

— Conheces! - afirmou o Bruno nervoso e, depois de haver virado o cognac, continuou: Dancei com ela e... coisas... tu sabes. - E. com os olhos lampejantes: quase viro aquilo tudo! Se não fosse o Brites... não sei. Tu sabes, eu não sou mole e com alguma coisa na cabeça não vejo nada diante de mim. Pois um sujeito, um tipo, porque me viu com a Lívia, e entendeu que me devia tomar à sua conta. Eu... ahn!

— Brigaste?

— Não, não briguei porque, tu sabes, aparecem sempre pacificadores, os tais da ordem. Mas que mulher, Paulo! Venho de lá agora. Não imaginas!

— E para onde vais?

— Vou descansar um bocado. Hoje tenho folga. E tu?

— Estou de serviço.

— Pois é verdade... - O Bruno, porém, lançou um olhar inteligente ao amigo e, com malícia, sorrindo: Tu também, aqui entre nós, não passaste a noite em oratório... Estás com uma cara!...

Paulo estremeceu e mirou-se ao espelho achando-se pálido, desfigurado.

— Não, passei a noite em casa.

— De quem?

— Na minha.

— Pois sim. Todos vocês são uns santos, eu é que sou o debochado, porque conto o que faço. Eu devia fazer como vocês - não há como a hipocrisia. O Brites também é um homem sério, filósofo, abstinente... Vai vê-lo nos Fenianos.

— Mas tu nunca me viste em bailes.

— Mas há outras coisas e... piores. Enfim, isso não é da minha conta. E vou-me embora que estou morto. Imagina, depois daquele trabalho estúpido que tivemos ontem, um deboche até às seis... Ainda não preguei olho: também caio agora na cama e vou até às quatro. Adeus.

Chamou o caixeiro, pagou e saíram. Justamente havia um bonde de Riachuelo. O Bruno despediu-se e precipitou-se esbaforido.

De novo só, recaindo na preocupação, Paulo resolveu chegar à polícia para saber alguma coisa: talvez já estivessem na pista do raptor. Teve uma repentina decisão, partindo imediatamente para a Rua do Ouvidor. A esquina, porém, deteve-se indeciso:

"Não, não podiam ter ainda encontrado o homem. Certamente a diligencia começara de manhã e não era assim tão fácil descobrir um criminoso que, sem dúvida, procurara, com tempo, refúgio seguro para gozar as primícias de um corpo jovem e formoso. Iria à noite saber. Conversaria com o delegado ou com o próprio chefe." Demais, sentia-se fatigado como se, só então, lhe pesasse o cansaço da grande agitação da véspera: as pernas vergavam-se-lhe, ardiam-lhe os pés e um suor viscoso untava-lhe todo o corpo; tinha uma sensação de febre, pulso agitado, boca ressecada e saburrosa. Saía um bonde da Rua da América, tomou-o.

Até a casa foi numa inércia mole, como adormecido, sem sentir a viagem, pensando vagamente em coisas diversas: ora nos próximos exames, ora na mãe, na irmã ou em Idalina, uma loura a quem fazia versos e que o esperava à janela, com flores e bilhetinhos, tresandando a essências reles. Outra como Violante...

Repentinamente, porém, numa mutação introspectiva, viu o Bruno e o Brites, afogueados, girando como dois convulsionários, agarrados a mulheres. Teve uma súbita irritação, uma revolta surda contra a imaginação desvairada - queria apenas cuidar da irmã e o seu espírito cambiava em ziguezagues, avançando, retrocedendo, ora em sonhos, ora em recordações. Mas já o bonde ia perto da casa. Estavam vizinhos à janela e ele descobriu Felícia conversando com uma mulher gorda que comprava a um quitandeiro. O sangue ferveu-lhe no coração e seus olhos cravaram-se, com furor, na velha negra.

Já no estribo, sem corresponder aos cumprimentos dos vizinhos, fitava-a duramente. Quando ela o viu saltar, despediu-se da mulher, à pressa. Ele amiudou os passos para alcançá-la e, à porta, enquanto ela metia a mão pelo postigo para dar volta à taramela, interpelou-a em voz surda e colérica:

— Já foste bater língua pela vizinhança, Felícia!...

— Eu?! Eu não, nhozinho. Minha boca não se abriu pra falar em Nhá Violante. Eu estava falando dumas costuras.

Entraram e Paulo irrompeu explodindo:

— Pois eu não quero conversas com vizinhos. Não tenho nada com essa corja.

A negra foi-se resmungando e Dona Júlia, que ouvira a voz do filho, apareceu arrastando os passos, ansiosa e abatida como se saísse de longa enfermidade; e perguntou:

— Então, Paulo?

— Falei ao Mamede.

— E a polícia?

— Qual polícia! - Atirou o chapéu para cima da mesa e sentou-se. Olhe, estou aqui que não posso comigo, já não tenho pernas e a senhora... nem como coisa. Eu posso morrer porque mamãe, apesar de tudo, ainda há de ter mais pena de Violante. É assim mesmo; - e amuou.

— Mas que é isso agora? Que te fiz eu? Pois então não hei de pensar nela? - Já os seus olhos iam-se alagando e, dirigindo-se a Deus, a pobre velha pôs-se a dizer: Eu não mereço isto, meu Senhor! não mereço. Se eu havia de sofrer assim, por que não me levastes em lugar dele? Que fico fazendo no mundo, se os meus próprios filhos não me estimam? - Pôs-se de pé, grossas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.

— Eu não mereço isto!

Paulo teve um movimento frenético e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto. Dona Júlia, prostrada, ficou soluçando na sala, baixinho, para não incomodá-lo. Ele, porém, reaparecendo em mangas de camisa, esbravejou:

— Que não se podia ter um segredo naquela casa que a senhora Dona Felícia não fosse logo bater boca na vizinhança. Vira-a de prosa com a tal Dona Lucinda, a maior enredadeira do quarteirão, com certeza a contar que Violante saíra, que ele fora à polícia, tudo, enfim.

E, aos berros, para que a negra ouvisse na cozinha:

— Pois fique sabendo que não quero trela com vizinho. Viva cada um em sua casa, com as suas mazelas. Que tem Dona Lucinda com o que se passa aqui? É melhor que cuide do filho, um vagabundo, que vive com a molecagem, a assaltar os bondes e a apedrejar quintais. Súcia!

Dona Júlia, levantando a cabeça, exclamou:

— E eu não quero ficar mais nesta casa, vou procurar um canto por aí. Aqui não fico mais. Não estou para essa gente vir perguntar por Violante. Eu sei... Se não a virem hoje começam logo com recadinhos: Que tem? por que não aparece? se está doente. Eu já disse à Felícia que respondesse a todos - que ela foi passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho. Só assim...

— Pelo que ouço, a senhora entende que somos obrigados a dar satisfação da nossa vida à vizinhança... Por quê? Não faltava mais nada! Não é por meu gosto que a senhora conversa com essa gente. Quando nos mudamos para aqui eu lhe disse, lembre-se bem: nada de relações com vizinhos, vamos viver independentes: "Bom dia, Boa noite" e mais nada, senão começam os presentinhos, as visitas e os empréstimos de coisas e, um dia, metem-se-nos em casa. Dito e feito. Eu não posso andar à minha vontade porque, volta e meia, está aí gente à porta pedindo uma coisa e outra.

— Mas que queres, Paulo? eu nem à janela chego. Quem fez amizade por aí foi Violante; eu estou sempre metida aqui dentro, cuidando do meu serviço. Elas vêm aí, que hei de fazer?

— Pensam que não sei que me chamam de orgulhoso? Pois sou, sou mesmo! Não quero saber de amizades, vivo muito bem só. Está aí em que deram as amizades. Quer mudar-se?

— Decerto. Não tenho cara para ficar aqui.

— Nem eu. Mas eu sei que, onde quer que estejamos, há de ser sempre a mesma coisa: conversas, visitas...

— Comigo!? - exclamou a velha espalmando a mão no peito.

— Não, comigo...

— Estás enganado. Eu, tenho o meu descanso, pouco me importo com o mundo.

Houve um silêncio. Paulo passeava nervosamente pela sala, arrepelando os cabelos, arrependido de haver magoado a boa velha, que ainda os soluços agitavam como os últimos relâmpagos de uma tormenta. De repente, estacando, perguntou:

— A senhora já almoçou?

— Eu tenho lá fome...! Tomei uma xícara de café.

Calaram-se.

Comovido, apuado pelo remorso, Paulo sentou-se perto dela, e meigo, adormecendo a cólera que o agitara, pôs-se a falar da mudança:

"Que não podiam continuar naquela casa, mesmo por ela, que havia de estar constantemente a lembrar-se de Violante."

— Ah! meu filho, ainda me parece um sonho. Há pouco estava lá dentro na sala de jantar quando ouvi rumor no quarto dela. E estremeci toda, fiquei fria, gelada e deu-me uma pancada no coração, tão forte que pensei que ia morrer. Fui devagarinho e espiei. - Suspirou e calou-se, dizendo depois duma pausa angustiosa: Como é que uma filha faz uma coisa assim? E não há lei?! Pois então um malvado seduz uma moça, atira-a na desgraça e fica muito bem sem um castigo? - Elevou então os olhos e, de mãos postas, erguendo-se tremulamente, tomou Deus por juiz: Ah! mas quem faz paga... Deus é grande! Deus não dorme. Só se eu não a criei nestes peitos com o meu sangue.

Paulo passeava sem dizer palavra, enternecido com aquelas doloridas queixas.

Um sino dobrou lentamente e Dona Júlia, agarrando-se aos braços da cadeira, foi derreando o corpo, ajoelhou-se e ficou a rezar. Nova badalada rolou e um galo cantou no fundo do quintal.

Era a hora maior do sol, a hora do esplendor máximo. Como que a natureza quedava em humilhação estática, adorando silenciosamente o grande astro a pino, na glória de toda a sua magnitude, dominando d'alto a terra que se prostrava como uma fêmea que se agacha sentindo o peso do macho sobre o seu corpo vibrante de emoção lúbrica.

O silêncio dilatava-se abafando todos os rumores como se a vida fosse, aos poucos, parando - só um piano, na vizinhança, zaragalhava em notas fanhas, que discordavam do grande e solene arroubo daquele luminoso espasmo.

Paulo pisava de leve como para não interromper a oração da mãe, mas bateram à porta apressadamente. Dona Júlia ergueu-se e saiu em pontas de pés, ele meteu-se no quarto, revoltado e, quando Felícia acudiu para ver quem era, entreabriu a porta e ficou à escuta, retorcendo nervosamente o buço. Era um pequeno da vizinhança que pedia o jornal emprestado.

Felícia fechou a janela enquanto ia buscar a folha e, quando tornou, disse amuadamente: "que tinha ido passar uns dias fora, no Engenho Novo, com o padrinho."

Tratava-se de Violante - era a curiosidade da vizinhança que começava a aguçar-se. Paulo estremeceu de furor e pôs-se a resmungar contra a corja e, quando a negra fechou a janela, rompeu do quarto. colérico:

— Quem é?

— É o filho da viúva, nhonhô.

— Que viúva?

— A mãe de Dona Isaura, aquela mocinha bexigosa.

— Veio para indagar?...

— Não, senhor; veio pedir o jornal. Perguntou por Nhá Violante, mas eu respondi como sinhá mandou: Que ela tinha ido passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho.

E foi-se pelo corredor, como a fugir à fúria do estudante que a seguia, sempre a invectivar aquela súcia de bisbilhoteiros. Dona Júlia, na sala de jantar, encostada à mesa, esperava a negra; vendo, porém, o filho não teve ânimo de fazer a pergunta que já lhe estava nos lábios e pôs-se a disfarçar, arranjando uns embrulhos. Paulo adiantou-se:

— Vê a senhora? Já querem saber. Até parece que essa gente fareja. Só porque Violante não apareceu hoje já estão todos de orelha em pé. É um horror! Às vezes tenho ímpeto de responder com uma grosseria. Pois não! é demais! Não vou à casa de ninguém, vivo aqui metido, nem à janela chego e estou sempre com a casa cheia. A amizade é um pretexto, o que eles querem é ver como vivemos, que comemos, como nos arranjamos e lá se vai a nossa vida comentada, discutida de casa em casa como um trapo filado e estraçalhado por uma matilha de cães. Não quero saber de relações, dispenso-as. Amanhã, bem cedo, ponho-me na rua procurando casa e hei de achar, seja onde for.

Dona Júlia concordou passivamente:

— É mesmo.

— Quando mamãe está doente nem aqui aparecem. Muito bons para os pagodes e para a maledicência. Não quero! Se não fosse o meu trabalho no jornal eu procurava casa bem longe, num arrabalde, para livrar-me dos tais conhecidos. Infelizmente não posso: estou preso à cidade.

— Mas há tantas ruas...

Ele não respondeu. De repente, chegando à porta que levava à cozinha, chamou a negra. Felícia apareceu, de mangas arregaçadas, enxugando o braço ao avental.

— Como é o tipo do soldado? perguntou.

A negra baixou os olhos e ficou um momento imóvel, pensativa. como a recordar as feições do homem que ela tantas vezes vira na calçada fronteira, rente ao muro, indo e vindo, com os olhos em Violante. Dona Júlia voltou-se interessada encarando a negra que, por fim titubeou:

— É um moço assim como vosmecê, mais cheio de corpo. - Logo, porém, arrependida, como para o livrar de suspeitas, afirmou: Mas não foi ele não, nhonhô, não foi. Ind'agorinha mesmo, pouco antes de vosmecê chegar, ele passou por aqui, mais outro, e lá foram para os lados da Rua da América.

Paulo deu volta coçando a cabeça e Dona Júlia, perdida aquela esperança, sentou-se à mesa, raspando distraidamente umas migas de pão.

Os dois não achavam palavra. Paulo detinha-se, olhando as paisagens cinzentas do papel da sala, passava os dedos seguindo os contornos dos cães, dos caçadores que, em desabalada corrida, levando os cavalos a toda a rédea, seguiam um grande cervo ramalhudo. Súbito um som fanhoso rompeu o silêncio - era um realejo que soava na rua, perto, tristemente, vagarosamente.

Dona Júlia levantou a cabeça e ficou imóvel, a ouvir. Paulo voltou-se também para a porta, olhou depois para o quarto de Violante. Logo, porém, vendo a mãe debruçar-se sobre a mesa, sacudida por um pranto nervoso, arrojou-se para a sala, revoltado contra aquela música pecadora que despertava tantas saudades, toda a sua infância e a dela...

Ah! se Violante ali estivesse já andaria, como uma criança, a fazer voltas de dança rindo às gargalhadas. Era doida por aquela música fanhosa, chegava até a mandar dinheiro ao homem para que a prolongasse monotonamente e a rir, muitas vezes descalça, cabelos soltos, trincando fatias de pão, volteava, volteava, indo, não raro, buscar Felícia à cozinha, quando não arrastava a mãe que com o seu enorme corpo, as pernas muito inchadas, encolhia-se toda, tomada de riso, a agarrar-se aos móveis para opor-se àquela maluca.

E o realejo gemia. Era o homem que a chamava como se também a quisesse arrancar da miséria. E como que o instrumento sentia, porque se ia tornando cada vez mais triste, mais triste, na rua clara e silente, toda em sol. Faltava o riso de Violante, faltava a sua linda mocidade alegre.

De repente Dona Júlia levantou a cabeça e, passando a mão pelo rosto, desfeito e molhado, disse arrancadamente, em arquejo doloroso:

— Não! Não fico mais aqui... Não posso!

E o realejo tristonho, depois duma pausa, recomeçou a ária melancólica.

Romancistas Essenciais - Coelho Neto

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