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ALGUMAS FIGURAS

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Janeiro—1900.


Urbano de Castro, com um olho tôrto e um chapelinho afadistado, na aparencia reservado e sardonico, sae-se encantador na intimidade. Os seus amigos adoram-no, o Camara, o Schwalbach, a antiga roda do Correio da Manhã. Trouxe para o jornalismo uma grande leitura de classicos—conhece muito a lingua—e uma forma ironica e precisa: em meia duzia de linhas incisivas deixa o adversario a sangrar. Os politicos temem-no tanto, que uma das condições impostas pelo José Luciano, quando do pacto com o Hintze, foi que o Urbano terminasse na Tarde com o Espirito de S. Ex.a.


Eis algumas maximas de Urbano de Castro:


—A paciencia é uma virtude de capote e lenço.


—Quanto mais leve é a cabeça da mulher, mais pesada é a do marido.


—Os homens publicos são como os papeis de credito—o que hoje tem uma alta cotação, amanhã não vale, e inversamente.

—Quando tiveres muitos argumentos, não empregues senão os melhores. Quando não tiveres nenhum, emprega todos.


—A paternidade é, muitas vezes, um rotulo. A garrafa é a mesma, mas o vinho é outro.


—Viuva rica, com um olho dobra, com outro repica.


—No coração mora-me Deus, no figado o diabo.


—Mortal é o contrario de imortal. Imortal é o que é sempre. Logo, mortal—é o que não é nunca.


—Theologia—a arte de fazer comprehender aos outros aquillo que nós não entendemos.


—De todas as armas, a mais dificil de manejar é o pau... de dois bicos.


—Jornalista—fabricante da opinião publica. Cada um afirma que a unica genuina é a da sua lavra.


—Se os homens de mais juizo pensarem a serio em muitos dos seus actos hão de reconhecer que não teem juizo nenhum.


—O suicida tem para mim um lado sympathico—não se julga insubstituivel.


Junho—1903.


Deparo hoje com o Garrido, redondinho, baixo, de bigode grisalho e um ventre de proprietario. Nunca se altera nem perde a paciencia. Jovial? Não, triste e falando sempre baixinho. Tem ganho fortunas, tem dissipado fortunas com o mesmo ar inalteravel. Houve ocasiões em que todos os theatros do Rio representaram peças com o seu nome. Está cheio de dividas. E o seu ideal, o ideal d'esta existencia de acaso, com aflições de morte, ou dispersa pelo Brazil entre dois numeros de opereta—pan! pan! pan!—e dinheiro atirado a rodos, é um casebre no campo, duas arvores n'um retalho de horta viçosa e uma nora pingue que pingue no fundo do quintal. Paz. E não escrever uma linha.


Um agiota não o larga. É este velhinho paternal, de cabellos brancos, que faz recados, deita as cartas ao correio e leva coiro e cabelo. Parece inofensivo. Começou a vida por creado de servir e esfolou os patrões. Afirma que o Garrido é capaz de arrancar dinheiro a um morto:


—Este senhor Garrido dá-me cada aflição! Até me faz crear caspa!


Fevereiro—1900.


A paixão d'este homem é não ter um livro de geito. G... só escreveu trez folhetos, e por ahi ficou o seu talento. Espremido não deu mais nada. É no entanto uma figura epigramatica e nitida de conversador e um typo curioso de bohemio lisboeta. Dormiu nas escadas dos predios, pertenceu ao grupo que o Fialho arrastava pelas ruas até ante manhã, dispersando com elle o oiro da sua esplendida phantasia. Para essa meia duzia de bohemios improvisou o grande escriptor as suas melhores satyras. Uma noite, no café, G... aludiu á sua obra, e logo do lado o Fialho acudiu:


—A tua obra, bem sei... Vinte e cinco cartas a vinte e cinco amigos pedindo vinte e cinco tostões emprestados.


G... embezerrou. Mas passados minutos aproveitou uma pausa no dialogo, para perguntar com indiferença ao Fialho, que tinha ha pouco casado rico com uma prima, que gastou a vida a esperal-o no fundo da provincia:


—O Fialho fazes favor de me dizer que horas são... no relogio do teu sogro?


Fevereiro—1903.


Vejo sempre diante de mim o D. João da Camara, já cansado e e asmathico, olhando por cima das lunetas, e falando baixinho com receio, uma modestia no dizer, e um medo de magoar... A barba espessa, a grenha espessa e um chapelinho pôsto ao lado, completam a figura um pouco molle. É quasi um santo. Joga e jejua. Dá tudo o que tem. Exploram-no.


—O que me perdeu na vida foi não ter energia. Nunca me decido.—E mais baixo:—Isto vem talvez dos jesuitas que me educaram. Tive alguns condiscipulos que são homens notaveis e ninguem dá por elles.


Vive de noite, com uns e outros, ao acaso, nos bastidores dos theatros, ou encantado com uma ceiasinha na taberna, que descobriu no Arco da Bandeira. Se encontra o Pinturas está perdido: não se largam mais. Vae sempre para casa de manhã, e a sua vida é tão aflictiva que desejaria, como o Schwalbach, que o metessem algum tempo no Limoeiro, para não pensar no dia seguinte.


Hontem contou-me isto que é encantador:


—Não me importava nada de ter quatorze filhos em vez de sete. São muito meus amigos. O Vicente nunca sae de casa sem me dar um beijo. Eu estou sempre a dormir... Esta manhã—estava acordado, mas fingi que dormia, quando aquelle rapagão me entrou no quarto, pé ante pé, para não me acordar, e beijou-me...


E fica extatico.


Ás vezes fala-me das peças que ha-de fazer, do Sermão da Montanha e de outra com tipos de sonhadores, que se alimentam de mentira e de um passado que nunca existiu, forjado ponto por ponto. Assobia-se, por exemplo, um trecho d'opera, e logo este atalha:—Bem sei é da Dinorah!... Tempos que já lá vão! O que eu vivi com Fulano e Sicrano, e as ceias que demos juntos!—Tudo ilusão! tudo sonho! Vae-se a ver nem sequer conheceram as pessoas de quem falam... Outras vezes conta-me a sua vida:


—O que eu tenho sofrido! Tive muitos dias d'angustia... N'essa noite O Pantano cahira. Toda a gente dizia mal de mim. Nos bastidores a intriga fervia com a Lucinda á frente. Sahi do theatro a pensar no que havia de empenhar no dia seguinte. Fui para casa muito tarde.—Não haveria que pôr no prégo?—Por fim descobri uma casaca, e, ainda muito cedo, sahi com o embrulho debaixo do braço, n'um papel de jornal. O papel amolecia, a casaca rompia para fóra, e eu batia de prégo em prégo. Sete horas da manhã... Estavam todos fechados. N'um disseram-me com seccura:—Não emprestamos sobre casacas.—Fui a outro e esperei no portal que abrisse. Lembro-me como se fosse hoje. Chovia a potes. Defronte, estava uma carroça, com um cavallo branco. Era um burro pelle e osso, a cabeça metida n'uma linhagem, a comer. E eu no portal, com o embrulho já todo roto debaixo do braço, invejei aquelle cavalo!...


Já não joga. Mas antigamente ia todos os dias para casa ás cinco horas, tendo perdido tudo:—Foi n'essas noites que imaginei as minhas melhores peças...—Cuidadosamente punha sempre de lado um tostão para o americano—e quasi sempre succedia tambem que um velho fidalgo, das suas relações, lhe pedia o tostão emprestado para um calice de vinho do Porto, que se habituara a beber ahi pelas tres da madrugada. O D. João dava-lh'o, e lá ia a pé para a Junqueira, a sonhar nas peças, sob a lufada, molhado até aos ossos, de casaco de alpaca.


Columbano.—Auto-retrato.



Junho—1903.


Passei a noite em casa do Columbano, com o Raphael Bordalo Pinheiro. Durante o jantar falou sempre. Todo elle mexe, todo elle é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa, desenham e imitam.—Era um homem com um ôlho assim...—E logo o ôlho se lhe envieza. Em rapaz o seu sonho era o theatro. Chegou a ter lições do Rosa pae. Está um pouco cansado. Queixa-se muito. Amua.—Ninguem faz caso de mim...—Estranha quando o não vão esperar á estação—e está sempre a chegar das Caldas e partir para as Caldas. Depois esquece-se e põe-se a rir. Depois torna:—Eu não jogo, mas lá em casa todas as noites jogam e pedem-me dinheiro emprestado.—Agora arremeda este e aquelle de quem fala. Conta que em Paris ouviu o rei dizer:—Isto aqui é uma terra, lá é uma piolheira.—E que o infante, quando lhe perguntaram:—Então em Londres que tal, com aquelles principes todos?—Mal, mal... eu sou um principe aza de mosca...


E acaba—é nas vesperas do jantar que lhe vão oferecer no theatro D. Maria—por dizer:—Veja o senhor que desgraça a minha! Daqui a pouco não posso fazer a caricatura de ninguem!


Efectivamente lá estavam no banquete todos os homens imponentes, os conselheiros, os politicos decorativos, a serie completa das figuras do Antonio Maria. Não faltou ninguem á chamada. E nos camarotes aplaudiram-no com delirio as lisboetas palidas de que troçou em tantas paginas de genio. Confundiram-no e arrazaram-no. Creio que foi a primeira vez que perdeu a linha.


Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach que conta:


—O imperador do Brazil logo que chegava ao theatro metia-se no camarote, descalçava as botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma noite o Raphael, que estava então no Rio, foi pé ante pé, meteu a mão pela cortina e roubou-lhe as botas. O pobre homem não se desconcertou: sahiu em chinelos, atravessou em chinelos a multidão, saudando para a direita e para a esquerda, desceu ao pateo, e meteu-se em chinelos na carruagem.


Dezembro—1900.


Latino Coelho, contado por Maximiliano d'Azevedo:


Tinha coisas absurdas: estava sentado a conversar e levantava-se sem mais nem menos, compunha a trumpha, e ia espreitar á janella. Era todo de enguiços. Nunca sahia de dia. E que memoria! Dizia-se-lhe qualquer banalidade, e elle, d'ahi a mezes, repetia-a palavra por palavra. Discursos que revelam o conhecimento inteiro d'uma epocha, como o de Camões, que leu na Academia, e que foi escripto das sete ás onze da manhã, e lido ao meio dia, compunha-os com extrema facilidade.


D'uma vez estava elle em casa politicando com alguns amigos reformistas, o Mariano, o Lopo Vaz e não sei quem mais. Discutia-se a revolução de onze de maio. O Latino, dando um geito á trumpha, chegou á janella e viu o carro, puxado a mulinhas, do Saldanha:


—Ahi vem o duque... E aposto que vem para cá.


Efectivamente o carro parou á porta. Era o Saldanha. O Latino foi recebel-o n'outra sala, e, depois dos cumprimentos habituaes, o Saldanha perguntou-lhe:


—Sabe a que venho? Venho saber a sua opinião sobre o dia de hontem.


—Mas não tenho opinião nenhuma...


—Não se recuse, Latino. Peço-lho como amigo.


—Então, marechal, deixe-me dizer-lhe que quem como V. Ex.a conquistou um nome glorioso com a espada, não deve servir-se da canalha para fazer o que fez. A sua situação é deploravel.


—Não me diga isso! E se eu aproveitasse a situação para firmar de vez a liberdade em Portugal e salvar o paiz?


—Se V. Ex.a quizesse...


—Mas é que quero, e para isso venho ter comsigo.


Combinaram que o Latino redigiria os decretos ampliando as liberdades publicas, tornando-as efectivas, e convocando constituintes com poderes amplissimos.


—O maior segredo...—recomendou o Latino.


N'essa noite não dormiu. Acompanhado d'um amanuense do ministerio, redigiu os decretos, que no dia seguinte o proprio Saldanha foi buscar, metendo-os dentro da pasta. Mas fosse que os amigos que lá estavam em casa tivessem desconfiado; fosse que o Saldanha désse á lingua, o que é certo é que o rei foi prevenido a tempo por alguem que lhe disse:


—O Saldanha vae trazer-lhe uns decretos. V. Magestade não os assigne ou está perdido.


Quando o Saldanha chegou ao Paço o rei abraçou-o:


—Pois o duque ajudou a conquistar-me o throno e não quer que meus filhos reinem? Nem talvez eu chegue até ao fim da vida no poder...


Saldanha que era um fraco recuou. D'ahi a dias encontrou-se com o Latino que lhe disse:


—V. Ex.a não podia deixar-me dormir a minha noite socegado?


Por trez vezes, conclue Maximiliano, o Latino me contou isto. Já tenho querido descobrir os decretos. Devem estar em casa do irmão, n'um quarto interior, onde a traça vai roendo os papeis do grande escriptor...


*


Um dia o Saraiva de Carvalho foi propor a revolução ao Latino:


—Mas ha-de ser tudo assassinado—toda a familia real.


—Isso não!—protestou logo o Latino.


*


Morreu virgem, como Newton. No dia de sua morte, estava o cadaver na cama, apenas coberto com um lençol. Alguem disse para o Maximiliano:


—Bastaria arrancar aquelle lençol para descobrirmos o segredo de toda a sua existencia.


*


Junqueiro dizia de Latino:


—Sim, é um homem admiravel, que em logar de c... tem duas castanhas piladas!


Maio—1903.


Um jornal publica hoje esta noticia:


POVOA DE LANHOSO, 29—Faleceu, sepultando-se hoje, o sr. dr. Joaquim da Boa Morte Alves de Moura, da freguezia de Santo Emilião, bacharel formado em philosophia e mathematica pela Universidade de Coimbra.


O povo apelidava-o de santo, pelas suas sublimes virtudes christãs. Tinha 92 annos de edade; o falecido fôra frade agostinho.


O homem, a quem estas seccas linhas se referem, era na verdade um santo. Deixou tudo para viver pobre, perto de S. Martinho do Campo, entre cavadores e a gente humilde da terra que o adorava. Vi-o muitas vezes passar na estrada, todo branco, minguado, com o burel, que nunca quiz largar, no fio, e os sapatos rotos. Era efectivamente formado em philosophia e direito, e até por vezes fôra convidado para lente da Universidade de Coimbra. Recusou sempre, recusou tudo, preferindo a convivencia com a gente do povo e com a natureza que o rodeava. Ha entre as duas povoações, S. Bento e S. Martinho, que ficam á beira da estrada da Povoa de Lanhoso, uma fonte que brota da raiz de uma arvore. Perto fica a ermida. Alli se costumava o santo homem sentar, horas e horas embebido nas suas meditações. Em que scismava? Decerto no passado longinquo...


Lembram-se d'uma narrativa de Alexandre Herculano, que se chama, creio eu, «O ultimo dia de convento?» Um frade chora ao deixar para sempre a cella caiada, onde passou a vida inteira. É só isto, afóra a ternura, as lagrimas, a prosa do grande escriptor. Assim D. Joaquim da Boa Morte contava tambem as ultimas horas de convento. Velhinho, tremulo, vivendo de esmolas, recolhido por caridade em casa de duas mulheres, que o cuidavam, nunca esqueceu o convento, a cella, o dia de separação. E, ao pé da arvore, junto ao fio limpido d'agua, lhe ouvi mais d'uma vez contar o que sofrera.


—E dos seus companheiros lembra-se? Teve mais tarde noticias?


E elle, com os olhos razos de lagrimas:


—Viveram ainda dispersos por esse mundo. Ha annos, ha muitos annos, recebi, dum d'elles um recado, esta palavra:—«Adeus!» Foi o ultimo!


Agora acompanhava-o sempre um rapazinho. Com a vida, ia-se-lhe desfeito o burel, rôtos os sapatos. Deixára de dizer missa, mas o povo d'aquelles logares, que é ingenuo e crente, consultava-o nas suas doenças e nos seus sofrimentos. É que D. Joaquim fazia milagres. Excusam de sorrir... O milagre é uma comunicação entre pessoas que têm radicada e viva esta força enorme:—a fé. D. Joaquim da Boa Morte curava as creaturas simples, as mulheres, as creanças e os homens da serra que o iam visitar, com boas palavras, e, quando muito, com alguns cachos de uvas, que elle proprio colhera e lhes distribuia, depois de benzidos.


Antes de morrer pediu que o enterrassem embrulhado na manta coçada que pertencera a sua mãe e que alli tinha no fundo da arca. Essa velha manta como eu lh'a invejo! Era n'um farrapo assim, com um resto de calor e de ternura, que eu queria ir aconchegado para a terra. Nem a eternidade das eternidades, nem o isolamento, nem o frio dos frios, conseguiriam jamais trespassal-a.


Que descance em paz. Quem escreve estas linhas deve-lhe uma das maiores, mais elevadas e puras impressões que tem recebido na vida. A sua grande figura só desaparece da terra, depois de ter feito muito bem e estancado muitas lagrimas.


Julho—1903.


O Silva Pinto a respeito do Cardia, que ha tres dias, em plena mocidade, meteu uma bala no coração:


—Eu não faço como elle, não me vou embora, porque tenho duas creanças, o Mario e o Raul. Era de certo a isto que o Manuel se referia ao escrever: «Não faço falta a ninguem». Isto atura-se lá a sangue frio e determinadamente! Matava-me para me ver livre d'estes bandalhos!


E os olhos enchem-se-lhe de lagrimas, arrasta a perna apegado á bengala, e sacode a cabelleira branca. Parece um trapo ameigado, mas resistente ainda:—Arre bandidos!


De repente, sem transição, põe-se a rir:


—Sabe de que me rio? Lembrou-me o Camillo, que tinha uma lingua viperina e dizia mal de toda a gente. Um dia em Seide falei-lhe n'este e naquelle, disse mal de todos. Por fim:—Sempre me refugio em Victor Hugo, para ver se você tambem diz mal d'elle...


E o mestre:


—Esse velho não era nada tolo!


Ri-se. Depois fica outra vez triste:


—Aquellas paginas de Hugo quando o avô vê entrar o neto ferido pela porta dentro!


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