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A VILLA

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13 de novembro


Ouço sempre o mesmo ruido de morte que devagar roe e persiste...


Uma villa encardida—ruas desertas—pateos de lages soerguidas pelo unico esforço da erva—o castelo—restos intactos de muralha que não teem serventia: uma escada encravada nos alveolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos intersticios das pedras e d'ellas extrae succo e vida. A torre—a porta da Sé com os santos nos seus nichos—a praça com arvores rachiticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutaveis teias de silencio e tedio e uma cinza invisivel, manias, regras, habitos, vae lentamente soterrando tudo. Vi não sei onde, n'um jardim abandonado—inverno e folhas seccas—entre buxos do tamanho d'arvores, estatuas de granito a que o tempo corroera as feições. Puira-as e a expressão não era grotesca mas dolorosa. Sentia-se um esforço enorme para se arrancarem á pedra. Na realidade isto é como Pompeia um vasto sepulchro: aqui se enterraram todos os nossos sonhos... Sob estas capas de vulgaridade ha talvez sonho e dôr que a ninharia e o habito não deixam vir á superficie. Afigura-se-me que estes sêres estão encerrados n'um involucro de pedra: talvez queiram falar, talvez não possam falar.


Silencio. Ponho o ouvido á escuta e ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que roe há seculos na madeira e nas almas.


15 de novembro


As paixões dormem, o riso postiço creou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutralisa, e só um ruido sobreleva, o da morte, que tem deante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui odios que minam e contraminam, mas como o tempo chega para tudo, cada anno minam um palmo. A paciencia é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a côr da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparencia é a insignificancia a lei da vida; é a insignificancia que governa a villa. É a paciencia, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde:—Tem paciencia—e os seus dedos ageis tecem uma teia de ferro. Não há obstaculo que a esmoreça.—Tem paciencia—e rodeia, volta atraz, espera anno atraz d'anno, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciencia... paciencia... Já a mentira é d'outra casta, faz-se de mil côres e toda a gente a acha agradavel.—Pois sim... pois sim... Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os habitos lentamente acumulados. O tempo moe: moe a ambição e o fel e torna as figuras grotescas.


Reparem, vê-se daqui a villa toda... Lá está a Adelia, o Pires e a Pires como figuras de cera. Ninguem mexe. N'um canto mais escuro a prima Angelica não levanta a cabeça de sobre a meia. Tanta inveja ruminou que desaprendeu de falar. Chega o chá, toma o chá, e apega-se logo á mesma meia, a que mãos caridosas todos os dias desfazem as malhas, para ella, mal se ergue, recomeçar a tarefa. Um dia—uma semana—um seculo—e só o pendulo invisivel vae e vem com a mesma regularidade implacavel—p'ra a morte! p'ra a morte! p'ra a morte!


Passou um minuto ou um seculo? Sobre o granito salitroso assenta outra camada denegrida, e as horas caem sobre a villa como gôtas d'agua d'uma clepsydra. De tanto vêr as pedras já não reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos pés e ninguem ouve seus passos. Todos os dias os leva, todos os dias toca a finados. O nada á espera e a D. Procopia a abrir a boca com somno, como se não tivesse deante de si a eternidade para dormir. Tudo isto se passa como se tudo isto não tivesse importancia nenhuma, tudo isto se passa como se tudo isto não fôsse um drama e todos os dramas, um minuto e todos os minutos...


Não há annos, há seculos que dura esta bisca de tres—e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma meza do jogo. O jogo banal é a bisca—o jogo é o da morte... O candieiro ilumina e a sombra roe as phisionomias, a magestosa Theodora, a Adelia, a Eleutheria das Eleutherias, o padre. Salienta-se do escuro uma boca que remoe, a da D. Bibliotheca. Os padres exaltam-na, a Egreja exalta a sua caridade, que rebusca a desgraça para lhe dar tres vintens. Só destingo, despegadas dos craneos, as orelhas do respeitavel Elias de Melo e do impoluto Melias de Melo, lividos como dois fantasmas. Ambos regulam a consciencia como quem dá corda a um relogio. Dividas são dividas. Tudo isto parece que fluctua debaixo d'agua, que esverdeia debaixo d'agua. A luz do candieiro ilumina as mãos da D. Leocadia, que põe acima de tudo o seu dever, e que leva para casa uma orfã a quem sustenta e que lhe entrapa as pernas: osseas e seccas enchem a sala toda, o mundo todo...


Não sei bem se estou morto ou se estou vivo... Decorre um anno e outro anno ainda. O relento sabe bem, e o tempo passa, o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero augmenta não se traduz em palavras. A D. Procopia odeia a D. Bibliotheca, mas nem ella sabe o que está por traz d'aquelle odio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua á vida. Matar matava-a eu, mas varias palavras me deteem. Detem-me tambem um nada... Chegamos todos ao ponto em que a vida se esclarece á luz do inferno. Mas ninguem arrisca um passo definitivo.


As velhas com o tempo adquiriram a mesma expressão, com o tempo chegaram a temer um desenlace. Debruçadas sobre a meza as figuras não bolem. Não bolem outras figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa não são as palavras do padre—Jogo;—nem o que a Adelia diz baixinho á Eleutheria, para que a velha temerosa ouça:—A nossa Theodora está cada vez mais moça!...—o que me interessa são as figuras invisiveis: é a dôr d'essas figuras imoveis, e sobre ellas outra figura maior, curva e atenta, que ha seculos espera o desenlace.


A villa petrifica-se, a villa abjecta cria o mesmo bolor. Mora aqui a insignificancia e até á insignificancia o tempo imprime caracter. Moram na viella ingreme e cascosa, que revê humidade em pleno verão, velhas a quem só restam palavras, presas, alimentadas, encarniçadas, como um doido sobre uma corôa de lata que lhes enche o mundo todo. Mora d'um lado o espanto, do outró o absurdo. E todos á uma afastam e repelem de si a vida. Mora aqui a Telles que passa a vida a limpar os moveis, só e fechada com os moveis reluzentes, talvez resto d'um sonho a que se apega com desespero, e velhas só mesuras, só baba, só rancor. Ter uma mania e pensar n'ella com obstinação! Creal-a. Ter uma mania e vêl-a crescer como um filho!... Mora aqui a D. Restituta, sempre a acenar que sim á vida, e a Ursula, cuja missão no mundo é fazer rir os outros.


Cabem aqui sêres que fazem da vida um habito e que conseguem olhar o céo com indiferença e a vida sem sobresalto, e esta mixordia de ridiculo e de figuras somiticas. Mora aqui, paredes meias com a colegiada, o Santo, que de quando em quando sae do torpôr e clama:—O inferno! o inferno!—Moram as Telles, e as Telles odeiam as Souzas. Moram as Fonsecas, e as Fonsecas passam a vida, como bonecas desconjuntadas, a fazer cortezias. Moram as Albergarias, e as Albergarias só teem um fim na existencia: estrear todos os semestres um vestido no jardim. Moram os que moem, remoem e esmoem, os que se fecham á pressa e por dentro com uma mania, e os que se aborrecem um dia, uma semana, um anno, até chegar a hora pacata do solo ou a hora tremenda da morte.


Mora aqui o egoismo que faz da vida um casulo, e a ambição que gasta os dentes por casa, o que enche a existencia de rancores e, atraz d'anno de chicana, consome outro anno de chicana. Cabem aqui dentro as velhas scismaticas, atraz de interesses, de paixões ou de simples ninharias, dissolvendo-se no ether, e logo substituidas por outras velhas, com as mesmas ou outras plumas nos penantes, com os mesmos ou outros ridiculos, fedorentas e maniacas; os homens a quem se foram apegando pela vida fóra dedadas de mentira, promptos para a cova—e o Gabiru e o seu sonho. Cabe aqui o ceu e as lambisgoias com as suas mesuras, a morte e a bisca de tres. E cabe aqui tambem uma velha creada, que se não tira deante dos meus olhos. Obsidia-me. Carrega. Obedece. Serve as outras velhas todas. A Joanna é uma velha estupida.


Serviu primeiro na villa, serviu depois na cidade. Serviu um anthropologista exotico, que fundira cem contos a juntar caveiras, e de quem a Joanna dizia ao amollecer-lhe os edêmas dos pés:—Este senhor é um 2.º Camões!—Serviu a D. Herminia e a D. Hermengarda. Serviu com uma saia rôta, as mãos sujas de lavar a louça, uma camisa, os usos e seis mil reis de soldada. Lavou, esfregou, cheira mal. Serviu o tropel, a miseria, o riso, que caminha para a morte com um vestido d'aparato e um chapeu de plumas na cabeça. Para contar fio a fio a sua historia bastava dizer como as mãos se lhe fôram deformando e creando ranhuras, nodosidades, codeas, como as mãos se foram parecendo com a casca d'uma arvore. O frio gretou-lh'as, a humidade entranhou-se, a lenha que rachou endureceu-lh'as. Sempre a comparei á macieira do quintal: é inocente e util e não ocupa logar. A vida gasta-a, corroem-na as lagrimas, e ella está aqui tal qual como quando entrou para casa da D. Hermengarda. Faz rir e faz chorar. Os meninos borraram-na—adorou os meninos. Os doentes que ninguem quer aturar, atura-os a Joanna. Já ninguem extranha—nem ella—que a Joanna aguente, e a manhã a encontre de pé, a rachar a lenha, a acender o lume, a aquecer a agua. Há sêres creados de proposito para os serviços grosseiros. Por dentro a Joanna é só ternura, por fóra a Joanna é denegrida. A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste tambem as arvores.


É uma velha alta e secca, com o peito raso. O habito de carregar á cabeça endireitou-a como um espeque, o habito das caminhadas espalmou-lhe os pés: a recoveira assenta sobre bases solidas. Parece um homem com as orelhas despegadas do craneo e olhos inocentes de bicho. É d'estas creaturas que dão aos outros em troca da soldada o melhor do seu sêr, que se apegam aos filhos alheios e choram sobre todas as desgraças. E ainda por cima dedicam-se, e quando as mandam embora, porque não teem serventia, põem-se a chorar nas escadas.—É preciso escodeal-a—asseverou a D. Hermengarda quando lhe foi em pequena para casa. Escodeia-a. Noite velha e já ella bate de cima com a tranca no soalho, a chamal-a.—E não te servindo a porta da rua é a serventia dos cães.—Mas ella apega-se. Nunca teve outra ama como aquella senhora. Venera-a. Annos depois diz das pancadas:—Merecia-as.—Já não é preciso chamal-a: a Joanna ergue-se n'um sobresalto, alta noite, noite negra, e dorme com um olho fechado e outro aberto. Velha, tonta, abre de quando em quando os olhos, põe o ouvido á escuta num movimento instinctivo, á espera de uma imaginaria ordem: ouve sempre a voz da D. Hermengarda a chamal-a.


Mal se comprehende que depois d'uma vida inteira, esta mulher conserve intacta a inocencia d'uma creança e o pasmo dos olhos á flôr do rosto. Trambulhões, fome, o frio da pobreza—o peor—e, apezar de amolgada, com uma saia de estamenha, no pescoço pelles, as mãos gretadas de lavar a louça, uma coisa que se não exprime com palavras, um balbuciar, um riso... Misturou á vida ternura. Misturou a isto a sua propria vida. Aqueceu isto a bafo.


Tem as mãos como cepos.


16 de novembro


Debaixo d'estes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificancia. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificancia, edificar um muro feito de pequenas coisas deante da vida. Tapal-a, escondel-a, esquecel-a. O sino toca a finados, já ninguem ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimonia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu podesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o môfo, e a villa a côr de mataborrão. Seres e coisas criam o mesmo bolôr, como uma vegetação cryptogamica, nascida ao acaso n'um sitio humido. Teem o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, resurgem sem razão aparente d'um dia para o outro n'um palmo do universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos saes, exhalam os mesmos gazes, e supuram uma escorrencia phosphorecente, que corresponde talvez a sentimentos, a vicios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.


Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos habitos. Construimos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até á cóva com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, teem a espessura de montanhas. São as palavras que nos conteem, são as palavras que nos conduzem. Toda a gente forceja por crear uma atmosfera que a arranque á vida e á morte. O sonho e a dôr revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada.


Remoem hoje, amanhã, sempre as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. Toda a gente fala no céo, mas quantos passaram no mundo sem ter olhado o céo na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com elle. Nenhum de nós repara no que está por traz de cada sylaba: afundamos as almas em restos, em palavras, em cinza. Construimos scenarios e convencionamos que a vida se passasse segundo certas regras. Isto é a consciencia—isto é o infinito... Está tudo catalogado. Na realidade jogamos a bisca entre a vida e a morte, baseados em palavras e sons. E, como a existencia é monotona, o tempo chega para tudo, o tempo dura seculos. Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada sêr, como dentro das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e no silencio, teias de escuridão e de silencio. Na botica somnolenta ao pae succede o filho sobre o taboleiro de gamão. Quero resistir, afundo-me. Começo a perceber que o habito é que me fez suportar a vida. Ás vezes acordo com este grito:—A morte! a morte!—e debalde arredo o estupido aguilhão. Choro sobre mim mesmo como sobre um sepulchro vazio. Oh como a vida peza, como este unico minuto com a morte pela eternidade peza! Como a vida esplendida é aborrecida e inutil! Não se passa nada! não se passa nada e eu sinto aqui ao lado outra vida que me mete medo e que não quero vêr. Essa vida talvez seja a minha verdadeira vida. Mas o peor é que eu percebo que, se se apodera de mim, não posso mais viver. Agarro-me com desespero ao habito e ás palavras. Tu não existes! tu não existes! O que existe é isto com que lido todos os dias, as palavras que digo todos os dias, os sêres com quem falo todos os dias.—E tu rodeias-me, tu reclamas-me e queres viver comigo para todo o sempre. Não te posso vêr!...


Se há momentos em que o caixão que um galego leva ás costas me chama á realidade, ao espanto, desvio logo o olhar e reentro á pressa na vida comesinha. Finjo que sorrio e esqueço. Mas sempre não posso! Anno atraz d'anno não posso! Não há mais nada! não há mais do que estas figuras paradas, e as horas verdes que de espaço a espaço caem como gôtas d'agua no fundo d'um subterraneo. Outro anno ainda! outro passo ainda para a morte! Sinto uma dôr sem gritos por traz da immobilidade. Cada hora é menos uma hora na minha vida. E o tempo foje, o tempo côr de mataborrão que ao granito salitroso junta camada denegrida, e ás almas sepultadas outra pazada de cinza... Há momentos em que as figuras teem tanta vida como os santos imoveis nos seus nichos—mas há momentos em que cada um redobra de proporções, há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. Há momentos em que cada um grita:—Eu não vivi! eu não vivi!—Há momentos em que deparamos com outra figura maior que nos mete medo. A vida é só isto? Por mais que queira não posso desfazer-me de pequenas acções, de pequenos ridiculos, não posso desfazer-me de imbecilidades nem d'este sêr esfarrapado que vae de pólo a pólo. Tenho de aturar ao mesmo tempo esta idéa e este gesto ridiculo. Tenho de ser grotesco ao lado da vida e da morte. Mesmo quando estou só o meu riso é idiota. E estou só e a noite. Por traz daquella parede fica o céo infinito. Para não morrer d'espanto, para poder com isto, para não ficar só e o doido, é que inventei a insignificancia, as palavras, a honra e o dever, a consciencia e o inferno.


E ainda o que nos vale são as palavras, para termos a que nos agarrar.


É então um mundo de formulas a que eu obedeço e tu obedeces? Sem elle não poderiamos existir. Se vissemos o que está por traz não podiamos existir. O nosso mundo não é real: vivemos n'um mundo como eu o comprehendo e o explico. Não temos outro. Estamos aqui como peixes n'um aquario. E sentindo que há outra vida ao nosso lado, vamos até á cóva sem dar por ella. E não só esta vida monstruosa e grotesca é a unica que podemos viver, como é a unica que defendemos com desespero.—Pois sim... pois sim...—Estamos aqui a representar. Estamos aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca de tres. Estamos aqui a matar o tempo. Este passo, que é unico e um só, damol-o como se fosse uma insignificancia. Mais fundo: não existem senão sons repercutidos. Decerto não passamos de echos. Submeto-me, subjugas-me. Já não reparo, já vejo turvo.—Jogo!—E de repente todo o meu sêr é sacudido pelo espanto que tacteia á minha roda. Raras vezes entramos em contacto, mas sinto-o aqui ao meu lado—sem nos chegarmos a entender. Nem quero! nem quero! Se me alheio um momento dou um grito de dôr. Escaldo-me.


Na verdade o que eu não posso é vêr, o que eu não quero é vêr! A villa regula-se por habitos e regras seculares—mas há outra coisa enorme para lá do scenario de que me rodeio. Para não ter medo criei eu isto, para a não vêr criou o Santo o inferno. Há outra coisa esfarrapada e dorida.—Jogo!—Cada vez me sinto mais reles, cada vez as palavras me parecem mais gastas. Há outro sêr que vae de pólo a pólo... Esta figura grotesca não é a minha figura. O salitre roeu os santos nos seus nichos—roeu-os tambem o sonho... Curvado sobre a mesa repito os mesmos gestos inuteis para não desatar aos gritos.—Jogo!—Isto para fingir que é indiferente o que nos rodeia, que estamos habituados ao que nos rodeia, que sorrimos ao que nos rodeia! Está alli a morte—está aqui a vida—está aqui o espanto—e só a ninharia consegue deitar raizes profundas.


20 de novembro


Fecho os olhos. A chuva desaba interminavelmente do céo, e na luz turva vejo sempre a villa, com as mesmas figuras de museu sentadas na mesma sala... Insignificancia, insignificancia, insignificancia. Portas chapeadas que rangem nos gonzos como portas de prisão, fachadas com os vidros partidos, e uma, duas, tres camadas de pó sobrepostas. Lojas terreas d'onde vem um bafo humido que trespassa... Como todas as almas, todas as janelas estão perras, e o tempo vae substituindo uma figura por outra figura, uma pedra por outra pedra. Ponho-as em fila deante de mim, com os seus penantes usados, grotescas e maniacas. Considero. Vejo vir os gestos, as cortezias, as acções do confim dos seculos. Isto é nada—é vulgar e quotidiano. É uma aparencia.


A villa é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro.


Atraz desta villa há outra villa maior. A lentidão, o gesto usado, a meia tinta mesmo em plena luz, toldam-me a visão. Sobre cada sêr cahiu uma camada de pó. A villa é isto—e a villa não é isto. Que me importa a Adelia, um dia d'inveja, um dia de aquiescencia, um sorriso, baba, mesura atraz de mesura? Outra velha mexe por traz desta velha mesquinha. As lettras assignadas, as lettras protestadas d'este sêr absorto, o exagero minusculo, teem outra significação. A realidade é a manha, a astucia que cada um põe em jogo. Não há velhas com cartas na mão; há orgulho, soberba, inveja paciente. Há intuitos, cautela de quem caminha na ponta dos pés. Há forças e experiencia, avareza e astucia. E mais fundo outro, outro sobterraneo... Todas as palavras que se empregam teem, além da significação banal, uma significação que cada um peza e calcula,—e outra significação superior. Há palavras que requerem uma pausa e silencio, e há palavras que é preciso afundar logo n'outras palavras. Há pelo menos dois sêres n'este homem que toda a gente conhece, pautado, regrado, methodico. Elle e o doido morto por fazer esgares. Elle e o doido que só consegue comprimir á força de pontualidade. Esta velha não é a velha com quem lidamos—é outra. Tem tido um trabalhão para fazer mal, nunca conseguiu fazel-o. Se se arrisca, há-de contar comsigo mesma para se contrariar. É uma discussão que não acaba, com a bocca amarga, arrependimento—e por fim não realisa uma catastrophe authentica, que a engrandeça. Curvada sobre o lar remexe sempre as mesmas cinzas frias...


Todos se defendem. Por isso existe uma certa grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa. O homem só vive de detalhes e as manias teem uma força enorme: são ellas que nos sustentam.


Reparo melhor na vida secreta e na vida subterranea. Comprehendo como é dificil viver todos os dias e todas as horas, como atravez de tudo é forçoso seguir um fio invisivel—e ser reles e sorrir. Gasta-me uma força superior, e com todas as chagas e todos os vicios, com a vida mesquinha e a vida quotidiana, o nada, o penante usado, o fel e o vinagre, tenho de arcar com uma coisa immensa de que me separa apenas um tabique. Tudo o que faço é um arremedo. Está alli outra coisa quando falo, quando me calo, quando me rio. E falo mais alto porque a ouço mexer... Todos suportam o drama de todos os dias, o cinzento de todos os dias, as aflicções e a usura que tornam as figuras ridiculas e coçadas. Todos suportam os tratos que envelhecem e preparam para a cóva, os pequenos interesses, a inveja, a ambição, a dôr phisica. Todos os dias a Hermengarda amarga os brazões da Bibliotheca, a Bisborria todos os dias scisma na sua respeitabilidade, e aturam o azedo que pouco e pouco se deposita nas almas—e com isto uma coisa desconforme, que se levanta e deita comnosco, não se tira do nosso lado, em quem ninguem fala e com quem temos por força de cohabitar; deante de quem é forçoso ser vulgar e dissimulado, fazendo que a não vemos e com ella á cabeceira da cama...


Atraz da insignificancia andam os céos, os mundos, os vagalhões doirados. Anda o desespero. Anda o instincto feroz. Atraz disto andam as enxurradas de soes e de pedras, e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Atraz do tabique e das palavras anda a Vida e a Morte e outras figuras tremendas. Atraz das palavras com que te iludes, de que te sustentas, das palavras magicas, sinto uma coisa descabelada e phrenetica, o espanto, a mixordia, a dôr, as forças monstruosas e cegas.


Em certas ocasiões, se as palavras e a insignificancia desaparecessem da vida, só ficava de pé o espanto.


Só a insignificancia nos permite viver. Sem ella já o doido que em nós prega, tinha tomado conta do mundo. A insignificancia comprime uma força desabalada.


Para não vêr, para não ouvir, é que nos curvamos sobre a mesa de jogo. Para te não ouvires a ti mesmo, para não vêres o que te gasta a todos os minutos e a todas as horas, usura immensa que não sentes e que te vae levar para o escantilhão sofrego, que te vae mergulhar no silencio profundo. Usura de todos os instantes. Gasta-nos, desgasta-nos. E todos os dias acordamos mais velhos, todos os dias acordamos mais inuteis. Todos os dias acordamos com mais fél. E todos os dias com mesuras, sem gritos de terror, nos curvamos sobre esta mesa de jogo, não vendo, fingindo que não existe, o espanto que está ao nosso lado, e o espanto peor que trazemos comnosco. Chama-se a isto o quotidiano. Isto não tem importancia nenhuma. Com isto enchemos a vida até chegar a morte. Esta mesa de jogo é a nossa existencia vulgar, a vida de todos os dias, com o galope da outra vida ao lado. Não se passa nada! Não se passa nada! No verão o calor sufoca, d'inverno a mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amollece, dissolve pilares das janellas, casebres e a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas. Em volta um circulo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragedia—e as montanhas não desistem. De quando em quando, na solidão que á noite redobra, cahem do alto da Sé as badaladas, uma a uma, pausa a pausa. O som tem um peso desconforme.


Estamos aqui todos á espera da morte! estamos aqui todos á espera da morte!



Humus

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